Gospodi pomilui (II)

O objectivo perseguido polo estranho ioga cristão empenhado em sincronizar o ritmo da respiraçom com o latido do coraçom e a repetiçom incessante da prece de submissom incondicionada à vontade divina, era aceder ao inefável sentido da unicidade do ser e alcançar a subtil fronteira que conecta inconsciência com transcendência. Umha variante da pratica ascética dos místicos de todo o tempo e lugar na sua procura da iluminaçom. A paixom empenhada na invocaçom contínua do divindade acabou impregnando os mais diversos estamentos sociais da Rússia nos albores do século XX, desde os mais humildes aos mais eminentes, entre eles os mais insignes matemáticos.

O nexo conector da mística com a matemática foi, como era de esperar, o desmesurado conceito de infinito. O responsável de ceivar tam ominoso génio da filosófica garrafa em que descansava foi George Cantor (Sam Petersburgo, 1845; Halle, Alemanha, 1918). Em 1872, George Cantor, um moço de apenas 27 anos, acedia à cátedra de matemáticas em Halle. Dous anos depois publicava o seu primeiro trabalho sobre teoria de conjuntos – qualquer colecçom de objectos ou números – e começava a investigar as propriedades dos conjuntos de dimensom infinita. O empenho de medir o infinito foi a paixom da sua vida.

O primeiro conjunto a medir era, obviamente, o dos números naturais (1, 2, 3...), mas já nele surgiam paradoxos. As sucessivas potências do conjunto de números naturais eram, obviamente, conjuntos infinitos da mesma dimensom: (1, 2, 3, ...) ↔ (12, 22, 32, ...) ↔ (13, 23, 33, ...), etc. Mais ainda, Cantor conseguiu demonstrar em forma simples e engenhosa que o conjunto dos números racionais ou fraccionários, aqueles que se podem escrever como (a/b), tenhem a mesma dimensom do conjunto dos números naturais.

Libertado o génio da garrafa já nom deu trégua. Cantor acometeu entom a tarefa de medir o conjunto dos números irracionais, esses estranhos seres caracterizados por cada um deles contarem com infinitos números decimais: π, e outros igual de misteriosos. Assombrosamente, cada número irracional arrasta tantos decimais como o conjunto completo dos números naturais. Cantor viu-se obrigado a concluir que o conjunto dos números irracionais era mais infinito do que a família dos naturais e os seus parentes. Nom estará de mais lembrar que na actualidade o recorde de decimais calculados para o número π  um só no conjunto dos irracionais  supera os 10 bilions de dígitos distribuídos em forma imprevisível.

Resulta prodigioso comprovar como ambos infinitos, o dos naturais e o dos irracionais, cabem, perfeitamente ordenados, no eixo X, esse segmento ideal que traçamos do zero “até o infinito”. Nom é difícil situar, aliás, cada número no seu lugar preciso no eixo X. A colocaçom dos números naturais e fraccionários é trivial, mas também a dos irracionais. Assi, podemos situar o número  sem mais que abater sobre o eixo X a diagonal de um quadrado de lado 1. O número π situará-se no ponto final de um círculo de diâmetro 1 que roda sobre o eixo X. O inocente eixo cartesiano parece absorver todos infinitos sem a menor dificuldade.

A mente lógica de Cantor nom sofreu inquietaçom pola proliferaçom de infinitos; procedeu simplesmente a ordená-los por tamanho. Para começar, etiquetou o primeiro infinito dos naturais e racionais com o cardinal transfinito alef 0, em homenagem à primeira letra do alfabeto hebreu. Quanto ao infinito dos irracionais, de dimensom inconcebivelmente superior ao anterior, baptizou-o como alef 1 e conseguiu comparar a sua dimensom com o do conjunto anterior em forma precisa: alef 1 = 2alef 0. Nascia assi a inquietante linhagem dos alef para numerar o inumerável. A dimensom de alef 1 é incrível; todos conhecemos a história do prémio consistente em pôr 1 grao na primeira cela de axedrez, 2 na segunda, 4 na terceira...263 na cela número 64. A suma total equivale a 18 trilhons de grãos (!), cifra superior à produçom mundial de trigo em 200 séculos.

Kronecker, o mestre de Cantor, qualificou a teoria de loucura matemática mas Cantor nom cedeu na titánica tarefa de estabelecer a misteriosa hierarquia dos conjuntos infinitos abismando-se em inquietantes paradoxos: haverá algum alef entre alef 0 e alef 1? Quantos alef pode haver? Pode conceber-se um infinito absoluto como metáfora definitiva de Deus? A matemática e a religiom assediavam a poderosa mente de Cantor decidindo-o a vestir o infinito de caracteres hebraicos, como Deus com o alfabeto grego ou cirílico.

Trás de Cantor e o seu inquietante séquito vinhérom os franceses – os Lebesgue, Borel, Baire – e atrás deles os subtis matemáticos da escola russa: Egorov, Luzin e a sua impressionante estirpe. Foi entom quando a titánica linhagem dos infinitos e as desconcertantes antinomias da continuidade entrárom em diálogo com a esquiva tradiçom dos homens santos.

A prática da oraçom do coraçom foi difundida polo starets Hilariom que professo no Monte Athos. Em 1907 viu a luz o seu livro As montanhas do Cáucaso em que descrevia a prática da oraçom contínua. O mosteiro de Óptina acolheu com entusiasmo a santa prática do oraçom incessante. O movimento foi condenado nos mais severos termos pola hierarquia ortodoxa mas o seu fascínio acabou contagiando o mapa dos infinitos de Cantor.

A escondida espiritualidade dos suplicantes ameaçava os precários equilíbrios políticos no momento e lugar mais inoportuno. O descomunal império russo decidiu cortar de raiz a insidiosa infecçom. Corria o ano 1913. Em junho desse ano, um canhoneiro da marinha de guerra imperial acompanhado de dous navios de transporte atracou no porto do sagrado Monte Athos. Traguiam ordem expressa do imperador Nicolás II de pôr fim de grado ou por força ao culto ao divino nome que infectava o mosteiro de Sam Pantaleom. Os monges bloqueárom portas e janelas para resistir o assalto dos 120 infantes de marinha designados para executar a operaçom. A comunidade resistia bradando desde o interior do mosteiro: Gospodi pomilui, Senhor tem piedade!

A intervençom imperial estava justificada pola instabilidade da situaçom do Monte Athos e as suas potenciais consequências na regiom. O império otomano vira-se obrigado a abandonar o Monte e os monges pretendiam constituir-se agora em república teocrática independente, objectivo que a Grécia, assediada por intermináveis conflitos com o império otomano, nom estava disposta a tolerar.

As ordens eram terminantes. A infantaria imperial emprazou metralhadoras frente ao mosteiro e começou a atacá-lo com canhons de água. Vencida finalmente a feroz resistência dos monges e rechaçada por estes a mediaçom do arcebispo Nikon de Vologda ali presente, a comunidade monacal foi classificada polas suas convicçons: 661 monges declarárom fidelidade ao magistério ortodoxo, 517 mantivérom-se inflexíveis na defesa da espiritualidade hesicasta e 360 mais negárom-se a declarar ante o bispo. Uns e outros fôrom declarados heréticos e espalhados por diversos mosteiros e pequenos oratórios rurais do imenso império.

Foi neste preciso momento da virada de século quando nasce a imponente escola matemática russa. Um livro fascinante de recente publicaçom1 relata a sua dolorosa história. Os autores som Loren Graham (1933), Universidade de Harvard, membro da Sociedade Filosófica americana, e Jean Michel Kantor (1946), da Paris VII, membro da redacçom da Gazette des mathématiciens. O relato dos dous matemáticos constitui umha apaixonante viagem pola biografia dos grandes mestres da escola e as suas vinculaçons com a oculta sabedoria da oraçom mental incessante.

A incrível fratria matemática dos Egorov, os Luzin e os Florenski era conhecida na Universidade moscovita como a Lusitánia, nom sabemos se polo impressionante transatlántico homónimo de 240 metros de comprimento, afundado por um submarino alemao em 1915, ou quiçá em irónica homenagem a Luzin. Igual que Egorov e Luzin, Florenski fora discípulos de Nikolái Bugáiev, presidente da Sociedade Matemática de Moscovo, criador da teoria das funçons descontínuas e pai de Andrei Bely, amigo de todos eles e mestre da literatura simbolista russa.

Em setembro de 1930 prendérom a Egorov e a quarenta crentes mais, acusados de adulterar o pensamento matemático com crenças religiosas e pertença a seita contra-revolucionária. O respeitado mentor da escola matemática russa foi encerrado no Hospital de Kazán onde seguiu praticando a oraçom mental. Afinal negou-se a comer e acabou por ser trasladado á casa de um matemático amigo onde finou recitando um salmo. Foi enterrado numha fossa comum sem assistência de séquito por temor ao controlo policial. Posteriormente, os amigos conseguírom recuperar os seus restos e pôr-lhes lápida para preservar a sua memória.

Foi preciso esperar até a abertura dos arquivos de KGB em 1991 para conhecer os últimos anos de Florenski, esse enigmático personagem que aos 22 anos obtinha a licenciatura em matemáticas com a tese Sobre as peculiaridades das curvas planas como lugar de descontinuidades para matricular-se a seguir no Seminário Teológico de Moscovo e doutorar-se com umha obra que combina doze meditaçons teológicas com eruditos apêndices sobre os infinitos de Cantor, a lógica de Lewis Carrol e os números irracionais considerados por ele pertinentes para apoiar as meditaçons: A coluna e o fundamento da verdade.

Em 1921 encontramo-lo leccionando teoria do espaço na Faculdade Superior de Arte, frequentada por alguns dos mais grandes artistas da vanguarda soviética, e mais tarde oficiando de engenheiro no programa de electrificaçom da Uniom Soviética. Mijaíl Nésterov deixou-nos a sua imagem  sotaina branca, longo bastom e negro capuz  passeando com o filósofo e economista Serguéi Bulgákov. O quadro, Os filósofos, foi assinado em 1917 e pode ser admirado actualmente na Galeria Tretiakov de Moscovo.

Florenski foi condenado a reclusom num campo de trabalho forçado instalado nas ilhas Solovki onde transcorrérom os cinco últimos anos da sua vida até o momento do seu fusilamento em 8 de dezembro 1937 “por actividades contra-revolucionárias”. A sua memória perde-se numha fossa comum nas proximidades de Leninegrado.

Afinal, Luzin conseguiu salvar a vida num angustioso processo travado entre a embaixada soviética na França e a comunidade matemática francesa. Luzin costumava viajar a França a convite dos matemáticos franceses, sem por isso decidir-se a abandonar Moscovo onde guardava amores e amizades. Ia ser o seu amigo e eminente físico soviético Piotr Kapitsa quem contribuiria mais eficazmente a salvar o matemático. Kapitsa  premio Nobel de física em 1978  argumentou ante os burocratas de KGB que o perseguiam: “Newton, a quem devemos a lei da gravidade, era um maníaco religioso, Cardano...um borracho e um libertino... Qual seria o destino deles na Uniom Soviética?

O relato de Grahan e Kantor deambula por biografias e íntimas crenças que marcárom a assombrosa árvore genealógica da matemática russa moderna que o livro oferece no seu esplendor. Percorremos a sua incrível enramada tendida sobre um oprobrioso cenário de terror e delaçom. No fondo parece-nos escuitar ainda, a maneira de insistente baixo contínuo, o escuro rumor do Gospodi pomilui que resistiu com firmeza à Revoluçom triunfante.

 

1-  Graham, Loren; Kantor, J. M. (2012): El nombre del infinito. Un relato verídico de misticismo religioso y creatividad matemática, Acantilado, Quaderns Crema, Barcelona.

 

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