Imagine um esteio indestrutível

Antón Vilar Ponte Dominio Público Arquivo da RAG

Imaginem uma pessoa que, cem anos atrás, amasse este país e a sua língua.

Imaginem que ela começasse a ler em português ou viajasse a Portugal durante uns dias.

Imaginem que ficasse admirada com as semelhanças e começasse a ouvir mais, a ler mais os clássicos, a estudar a própria língua ... Imaginem que essa pessoa encontrasse outras como ela que vissem com preocupação o galego sendo falado residualmente nas cidades, e com pior qualidade. Que fosse um falar mal visto, considerado rude, pouco útil, próprio de pessoas rústicas, sem estudos, sem cultura letrada. Um linguajar associado à pobreza de um povo atrassado e sem futuro.

Imaginem que essa pior qualidade linguística, que essa consideração inferior estivessem ligadas ao facto de uma outra língua, oficial no estado, ter ocupado a prioridade absoluta nos espaços públicos e ser considerada a única língua nacional de cultura.

Imaginem que essas pessoas quisessem encontrar soluções a essa situação de subalternidade. Imaginem que não aceitassem como destino inevitável a inferioridade cultural, a substituição linguística, a eliminação duma cultura nacional ancestral com uma história anterior ao nascimento de Castela, ou Portugal (pois teve a Galiza Reis antes do que Castela leis).

Imaginem que essas pessoas, envolvidas na procura de soluções coletivas tivessem reparado em que o português mantém o vigor, a qualidade literária que lhe foi roubada ao galego; que descobrissem ainda que partilhavam um acervo cultural comum com o norte de Portugal. Imaginem que essas pessoas tivessem começado a se organizar e constituíssem… sei lá: um partido, uma constelação de organizações culturais, uma editorial, agrupamentos musicais, seminarios de investigação, escolas para ensinar a língua...

Que tivessem saído eleitos deputados e que construíssem uma maré de dignidade popular e coletiva com um projeto de autogoverno maciçamente apoiado pelos governos municipais. Que tivessem sido amplamente reconhecidos nas suas áreas profissionais, que estivessem à vanguarda em projetos de investigação e desenvolvimento, que tivesse surgido, enfim, mais uma vez, num novo século, uma nova elite cultural e política.

Suponham tamɓém que tivessem reatado laços com o outro lado do Minho. Imaginem que tivesse existido mesmo sintonia. Que se tivesse falado até com normalidade na mesma língua em reencontros, em incorporar usos perdidos através do português para descastelhanizar o galego.

Que tivessem constituido academias e institutos para regenerar a língua e integrá-la com o resto de variedades nacionais. Que nos primórdios do século XX galeguista fosse rima consoante com vanguardista.

Imaginem agora que uma guerra “nacional” tivesse aterrado de um dia para o outro nesse país. Que matassem, exilassem, torturassem, metessem em prisão 80% dessas pessoas e de todo e qualquer sindicato ou democrata. Que roubassem os seus negócios e economias, que castigassem as suas famílias. Que galeguista fosse de repente sinónimo de criminoso ou razão de óbito.

Talvez desse modo entender-se-ia melhor que o saudosismo galego superará sempre qualquer sebastianismo, qualquer Inês de Castro, qualquer fatalidade ou Olivença. Mas pronto, não convém imaginar esta parte por muito tempo, a risco de encontrar bágoas como sinónimo de lágrimas, mestre morto como grupo nominal, cadáveres a rimar com semente.

Imaginem que durante 40 anos isto deixasse de poder ser até mencionado dentro de casa. Imaginem que pessoas pudessem ser multadas, sancionadas, presas, exiladas por usarem o galego em palestras, ensinarem na escola matérias nessa língua, escreverem livros, publicarem revistas ou cantarem músicas enquanto ganhava mais um jogo o Real Madrid, nasciam eufemismos como otro bandolero muerto, o ser humano chegava à Lua, nascia a televisão....

Imaginem o lápis-azul da censura aplicado não apenas a torto e direito, mas também às línguas. Imaginem ter que escrever publicamente sempre em outra língua que não a vossa e apesar dissso serem constantemente vigiados. Imaginem que abril nunca tivesse chegado e vocês se vissem obrigados a pactuar uma transição com os gajos dos três efes. Fado, Fátima, Futebol. Franco, Fraga, Filgueira. Fonix, fogo, fd-s! (que como todo o mundo sabe significa fim de semana).

Imaginem que o tempo avança e aos poucos o galego vai ser oficialmente permitido e ensinado na escola pública. Que umas regras ortográficas de uso obrigatório são criadas com base no castelhano para evitar excessos ou sabe-se lá que tentações. Que docentes são reprimidos se usarem um galego "português demais". Que lusista fosse de repente uma palavra depreciativa, um insulto, motivo para sanções, critério de não selecção, inabilitação, denúncia ou impedimento em trabalhos públicos. Que livros não pudessem ser comprados nas bibliotecas nem pudessem receber subsídios públicos segundo o como estiverem escrito. Que o português ficasse definido em normas legais como língua alheia, estrangeira.

Ponhamos por caso que se passam mais 40 anos onde as pessoas são educadas num conto de fadas em que há príncipes e princesas nas democracias, as línguas não ultrapassam as fronteiras dos estados, Fraga foi um democrata galeguista e Madrid fica bem mais perto de nós do que Braga, Viana ou Chaves...

Imaginem ainda que houvesse pessoas que se agruparam, reclamaram, protestaram, construíram de novo alternativas... procuraram vias ou apoiaram, também, como vocês, a causa timorense, viva o Renetil, avante a Fretilin, "estudar e na guerrilha", ou cantaram, Apesar de você e das porradas, o Grândola a altas horas...

E agora imaginem que, não por acaso, um lindo dia é promulgado no parlamento o interesse geral em introduzir o português nas escolas numa lei de vínculos com a Lusofonia.

Imagine uma pessoa que amasse hoje o galego, mas não soubesse nada disto, como milhares a quem isto foi ocultado.

Imagine que também você amasse o galego.

Imagine que sendo uma pessoa galega pudesse hoje em dia assistir a aulas de português, envolver-se com este país, lutar contra a assimilação, militar num sindicato, criar uma revista, fazer memória da luta antifascista, escrever um poema ou redigir um artigo combativo onde espanha fosse escrito à portuguesa. Imagine que sendo você portuguesa pudesse ajudar os galegos dalgum modo. Que você pudesse também fazer diferença.

Imagine para concluir que a lembrança dum colante da década de 90 trouxesse à tona um sorriso, uma pergunta atirada ao ar, uma revolta juvenil, uma inquietação, umas memórias. Um colante anónimo, simples, pequenino, colado em sinais de trânsito, contentores e locais noturnos, você...também se lembra dele?

Um colante humilde com mensagem, como garrafa atirada ao mar. Um colante a preto e branco, uma mulher de cara tapada, quem sabe palestina, que perguntasse a você: No hipotético caso de que a Galiza fosse um território ocupado, tu o que farias?

image.jpeg

《E eu digo-lhes com todo o respeito pelos "tradicionalistas" da galeguidade atual em movimento, que quando valorizamos a Galiza para fazê-la surgir política e culturalmente de seu, não olhamos a nada antergo -o que não quer dizer que não deva olhar-se, mas à realidade presente com olhada virgem: vendo um país com língua própria, viva na maioria dos seus moradores e afincada num esteio indestrutível, o da língua portuguesa, que lhe dá às nossas ânsias uma força maior que a dos mais povos diferenciados da Península e da Europa inteira; um país de unidade geográfica, económica e moral, que só pode trocar-se de território com habitantes, em povo com i-alma e cidadania, em povo relevante e útil a sí mesmo e ao progresso humano, talhando-se em si mesmo para si mesmo com cincel do próprio estilo.》《O nosso pulo nasceu olhando o presente e o porvir. Germolaria igoal de não termos história nem precursores. Os que fitam agora atrás fazem bem; nós não olhávamos quando ceivamos o grito primeiro do galeguismo consciente. Sem passado histórico daríamo-lo o mesmo. Concebimo-lo peregrinando por Portugal. Vendo-lhe viver a vida moderna na nossa fala.

A. Vilar Ponte - 1916 in Pensamento e sementeira, p. 300

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.