Francisco Castro, director geral de Xerais, escreveu um artigo publicado recentemente no Portal Galego da Língua, onde expôs os seus argumentos contra a proposta do binormativismo, defendida pola direcção da associação AGAL e muitas das suas sócias. Agradeço poder ler críticas argumentadas contra uma proposta reintegracionista porque, deste jeito, é possível contra-argumentar racionalmente e encetar um diálogo público que, até agora só se dá nas trincheiras das redes sociais entre exércitos de trolls. No debate argumentativo, as palavras não são armas para atacar o inimigo, mas instrumentos para elaborar uma conclusão em base a uma premissa bem justificada. Entre os artigos que já responderam com argumentos ao texto de Castro, não deixem de ler o da engenheira Saleta Gil Lorenzo.
Por que Francisco Castro critica a recuperação de palavras como ‘terça-feira’ e não a doutras totalmente desaparecidas da fala como, por exemplo, ‘estrada’, ‘avó’ ou ‘deus’?
Uma das primeiras críticas de Francisco Castro contra o binormativismo está relacionada com o afastamento da norma internacional a respeito da língua “que a xente fala”, argumentado que “non coñezo absolutamente unha soa persoa, nin unha soa (fóra dunha parte moi concreta do mundo académico) que diga Segunda Feira ou Terza Feira”. É preciso esclarecer que a língua espontânea contém termos como ‘dios’, ‘carretera’, ‘pueblo’, ‘calle’, ‘abuelo’, ‘ochenta’, e assim por diante. A lista é enorme. A norma ILG-RAG, com bom critério, substituiu estes castelhanismos reintroduzindo termos já desaparecidos desde há muito tempo. A pergunta que se coloca é a seguinte: por que Francisco Castro critica a recuperação de palavras como ‘terça-feira’ e não a doutras totalmente desaparecidas da fala como, por exemplo, ‘estrada’, ‘avó’ ou ‘deus’? Temos mesmo dados que demonstram que ‘terça’ ou ‘quarta-feira’ estão ainda vivas nalgumas falas, tal e como o demonstra este documentário. A conclusão que tiramos disto é a seguinte: mesmo se as duas normas galegas procuram descastelhanizar o galego, a internacional segue um critério homogêneo sem restrições, enquanto que a norma ILG-RAG descastelhaniza só até uma certo patamar. Os malévolos reintegracionistas costumam explicar estas restrições arbitrárias do galego ILG-RAG afirmando que não se quer descastelhanizar completamente o galego para não achegá-lo demasiado do português. Se o leitor me permite formular uma conjectura malévola, seica os normalizadores do ILG-RAG colocaram limites arbitrários à descastelhanização porque sabem que o galego totalmente deturpado de castelhanismos é português.
Uma outra crítica directamente ligada à proposta binormativista, que Francisco Castro partilha com o presidente da RAG, é que “os países adoitan ter unha única norma (sei o caso de Luxemburgo e Noruega, con dúas, pero iso, son dous países entre o resto)”. Este é um tema muito interessante que não podo desenvolver em profundidade aqui sem afastar-me do fio da discussão. Na maioria dos países, especialmente no mundo colonizado, há conflitos linguísticos onde convivem muitas línguas com diversas normas para grafá-las. Por exemplo (entre centos semelhantes), o uzbeque é uma língua turcomana escrita em alfabeto latino e cirílico (Uzbequistão é uma ex-colónia soviética) e anteriormente em alfabeto árabe. Apesar de que a administração estabelece o uso do alfabeto latino, permite-se o cirílico ainda usado em bastantes contextos por influência da vizinha e poderosa Rússia. Em geral e simplificando muito, há duas grandes tendências em relação aos processos de padronização: nos territórios com línguas em conflito (a maioria), existem várias normas em coabitação produto da fragmentação linguística e processos de unificação que, com pouco sucesso, não conseguem unificar. No caso das línguas fortes, normalizadas e expansionistas, debate-se como padronizar a forte diversidade interna permitindo novos usos e códigos mas mantendo a unidade linguística. Assim, nascem novas normas escritas frente as oficialistas: o chinês simplificado frente o tradicional, os novos padrões árabes dialetais frente ao árabe moderno, ou mesmo as codificações do inglês oral na escrita, já padronizadas polas editoras mediante regras explícitas, e que se afastam enormemente do inglês escrito formal. Neste último caso, a distância ortográfica entre a escrita das bandas desenhadas ou das legendas de filmes, por um lado, e a dos artigos científicos, por outro, é tão grande que semelham ser duas línguas diferentes. Enquanto árabe e chinês estão muito fragmentados no eixo dialectal, o inglês tem uma grande diversidade no eixo social e de registros (formal-coloquial). De todo isto, tiramos a seguinte conclusão: o polinormativismo não é a exceção, senão a regra, e é provável que tenhamos que conviver com múltiplas normas e jeitos de escrever durante muito tempo.
O polinormativismo não é a exceção, senão a regra, e é provável que tenhamos que conviver com múltiplas normas e jeitos de escrever durante muito tempo
A terceira crítica do artigo de Castro refere-se à dificuldade de implementar o binormativismo nas escolas. Concretamente, afirma que se lhe fai difícil de entender como as crianças vão aprender “a ler e escribir cunha norma e, ao ano seguinte, noutra distinta”. É evidente que esta situação não é desejável e é bem pertinente sublinhá-lo. Quando for preciso organizar a implementação do binormativismo nas escolas, devemos olhar para os sistemas já maduros dos nossos vizinhos do norte: Noruega e Luxemburgo. No caso de Noruega, que é o que melhor conheço (para o de Luxemburgo, é melhor perguntar a Miro Momám), cada escola tem uma norma veicular, que é a que aprendem e usam as crianças ativamente. Quanto à outra, só é preciso conseguir ter um conhecimento passivo. Deste jeito, cada criança teria um percurso pedagógico coerente no tocante à língua escrita. Ora bem, muitas outras questões se levantam: que condições há que cumprir para que um centro de ensino poda utilizar o galego internacional? Como formar os professores desse centro? É uma situação com um certo grau de complexidade, certo, mas mesmo assim é bastante mais simples que desenvolver o atual programa de bilinguismo com aulas de imersão em inglês ministradas por professores com um B1 nessa língua. Isso é muito mais temerário e subversivo pedagogicamente que a nossa proposta. Mas, em realidade, a implementação do binormativismo na escola é só uma entre as muitas possibilidades de aplicação da Lei Paz-Andrade para o aproveitamento do português na Galiza, e que foi aprovada por todos os partidos do Parlamento. Existem terceiras vias que não passam necessariamente polo binormativismo mas sim pola Lei Paz-Andrade. Dado que Francisco Castro concorda com o espírito dessa Lei, devia também concordar com as propostas que a desenvolvem no âmbito educativo. Uma delas é ensinar português em aulas de galego para ajudar a reforçar elementos da nossa língua mui deteriorados no uso, como o infinitivo conjugado ou a abertura das vogais médias, por exemplo. A partir do afirmado por Francisco Castro sobre o português, infiro que estaria de acordo em defender este tipo de propostas. Chegou, portanto, o tempo de turrar todas do mesmo carro e defendermos estas medidas com paixão e entusiasmo num novo decreto do galego que aplique de vez a Lei Paz-Andrade.
Há mais críticas por parte de Francisco Castro no seu artigo, mas que não entram no quadro racional da argumentação. São mais bem críticas que contêm um alto grau de subjectividade pois não se baseiam em nenhum feito mesurável. Por exemplo, comenta que o debate sobre ñ ou nh “non lle interesa a ninguén”, fora das aulas da universidade. É um argumento semelhante ao de Ciudadanos em Catalunha ao afirmarem que o processo independentista é um falso debate porque não interessa à gente normal. Do mesmo jeito que um estado próprio fornece de ferramentas para implementar medidas sociais, culturais e económicas que atingem e beneficiam a toda a população, um galego descastelhanizado e internacional torna-se tamém numa ferramenta eficiente e poderosa para a sua própria normalização.
A política linguística que se leva aplicando desde há 40 anos não é quem de quebrar o movimento inercial cara o inevitável esmorecimento da língua
A última crítica que quero sublinhar ofende-me especialmente. Francisco Castro qualifica de “infantilismo” a teima do reintegracionismo em pensar que “dicíndolle ás galegas e aos galegos que a partir de agora poderán usar unha ou outra norma, xa todo o mundo se vai botar a falar galego?”. Ofende-me porque, sendo eu profundamente céptico-retranqueiro, milito claramente no pôlo oposto do infantilismo. Como bom céptico que sou, não tenho certeza que o binormativismo ou, no seu defeito, a aplicação da Lei Paz Andrade, poda chegar a reverter a tendência ao devalo e morte da nossa língua. Tampouco tenho a certeza do contrário, é dizer, que não consiga reverter essa tendência. Não temos dados nem base empírica para saber que pode acontecer com o binormativismo ou com a aplicação da Lei Paz-Andrade. Apenas podemos fazer conjecturas mais ou menos racionais em base a simulações que respeitem o princípio de verosimilhança. No que sim acredito, porque temos dados e uma base empírica que o confirma, é que a política linguística que se leva aplicando desde há 40 anos não é quem de quebrar o movimento inercial cara o inevitável esmorecimento da língua. Seica é essa teima irracional em manter as mesmas políticas a que se pode qualificar de infantil e suicida.
No fundo, Francisco Castro deixa entrever que a norma internacional podia ter sido aplicada com sucesso há 40 anos, mas agora já é demasiado tarde. É bem curioso, porque daquela, os defensores da norma ILG-RAG diziam que não era o momento e que havia que aguardar a que a sociedade amadurecesse. É a versão cruel do win-win, também conhecido como lose-lose: fagas o que figeres, sempre perdes. Mas como dizia o poeta, os tempos são chegados.