Apesar de ser este um ano para o homenagear, a obra reintegracionista (em reintegrado) de Carvalho Calero nom encontrará quem a reedite em 2020. Sem subvenções e com grandes obstáculos normativos para chegar a bibliotecas ou centros de ensino, as editoras grandes nom vam acometer esta empresa e as pequenas (como a Através) pouco mais podem fazer que o já muito que fam (BD, antologias, etc.).
Por isso mesmo, este artigo pretende dar a conhecer essoutra dimensom mais incómoda de Carvalho a quem pouco pudo ler sobre ela, a quem nom conservou os velhos livros de Sá da Costa, Galiza Editora ou Sotelo Blanco na sua biblioteca particular, mas que pode ter interesse em chegar a eles através de algumha biblioteca pública.
A obra linguística de Carvalho
O Carvalho linguista tem duas dimensões igualmente importantes para compreender a grande relevância que vai adquirir nesta área na história contemporânea da Galiza:
a) Até o ano letivo de 1965-1966 tivemos já um dos maiores conhecedores do idioma de todos os tempos. Até aqui praticamente nom produziu obra linguística específica, mas, graças aos seus estudos literários, sim tínhamos seguramente o mais profundo admirador de todas as manifestações escritas do idioma, encontrando já muitíssima reflexom sobre a construçom do galego culto, tanto na Historia da Literatura Galega Contemporánea como em correspondência e artigos avulsos.
b) Desde 1965-1966 vai adquirindo outra dimensom, a do grande construtor do idioma galego. Começa com o ingresso como professor na USC (a partir de 1972 como catedrático), que o vai levar a um estudo mais sistemático da história da língua, das falas ou da linguística galega e das metodologias gramaticais. A partir daqui ele vai orientar grande parte da sua produçom à construçom do idioma, primeiro fundamentalmente como planificador do corpus (publicando uma Gramática1 que começara a escrever uns anos antes e umas Normas ortográficas2) e a partir de 1975 também como planificador de uma eventual política linguística.
Nesses anos, ainda que Carvalho se acabasse tornando incontornável para o reintegracionismo, realmente a sua importância foi decisiva na conformaçom do galego moderno em geral, na de ambas as orientações que ainda hoje concorrem quanto à codificaçom do galego. O lusismo de Carvalho nom deixa de ser uma superaçom do supradialetalismo que ele tinha propugnado anteriormente e que acabaria por servir de sustento às posições independentitas.
A obra reintegracionista de Carvalho
Ainda que já se poda antecipar nas Normas de 1970-1971 e na quarta ediçom da sua Gramática, Carvalho Calero desenvolveu o seu ideário reintegracionista, quer dizer, a obra enquanto planificador da política linguística com o foco posto no reintegracionismo, fundamentalmente a partir do segundo lustro dos anos 70. Nela vai defender um reintegracionismo profundamente galeguista e liberal, isto é, cuidadoso com a autonomia do galego no âmbito da Lusofonia e com a livre concorrência de todas as opções normativas enquanto elas existissem. É possível que este liberalismo fosse o que o acabasse levando ao reintegracionismo, pois a coordenaçom com a Lusofonia parecia-lhe a forma menos policíaca de evitar a castelhanizaçom do idioma.
Em geral, a sua obra linguística tem sido considerada menor em relaçom à sua produçom crítica, sobretodo polos discrepantes do seu reintegracionismo, mas concretamente esta parte em que desenvolve o seu ideário reintegracionista às vezes nem sequer é mencionada, até porque tem encontrado muitos entraves para a ediçom e a distribuiçom. Realmente é uma pena, porque:
a) Ele nom deu lhe pouca importância e deixou-na muito bem compilada em cinco volumes (dous deles póstumos) que recolhem contributos sobre esta questom escritos entre 1975 e 1988 e que considerava uma espécie de cólofon às suas investigações e reflexões sobre a língua.3
a) Tem um valor pedagógico enorme. Nela som apresentados, com enorme perícia, mas de forma acessível a todos os públicos, a prática totalidade dos elementos do debate sociolinguístico tal como ainda se nos apresenta na atualidade. Há uma linha argumental comum à maioria dos seus trabalhos sobre a questom que ele explica assim no prólogo de Problemas da Língua Galega: “Debate-se o tema da essência e a existência do galego, procurando no conhecimento do que é aquela, orientaçom para sugerir o que deve ser esta”. Nom é isto que ainda fazemos?
c) É a obra que mais claramente o projeta no presente e provavelmente também no futuro. Nom quer dizer que o resto da obra nom tivesse enorme influência (a história da literatura galega é ainda hoje a reescritura da sua Historia da Literatura Galega Contemporánea), mas socialmente Carvalho é lembrado sobretodo como o grande pensador do reintegracionismo.
O peso de Carvalho no surgimento do reintegracionismo
Para além de episódios mais concretos em que agora nos vamos debruçar, Carvalho Calero deve ser considerado antes de mais o grande pensador do reintegracionismo, porque, ao lado de outras pensadoras e pensadores desta tendência, contemporâneos ou posteriores a ele, que abordárom a questom de um ponto de vista mais estritamente sociolinguístico, ele abordou a questom de praticamente todos os pontos de vista, evidentemente filológicos, mas também do direito, da filosofia, etc.
Estritamente, o movimento reintegracionista tal como hoje o conhecemos nasce mais tarde, mas no primeiro lustro dos anos 70 já se foi desenvolvendo uma corrente lusista (com destacada participaçom de Rodrigues Lapa, Martinho Montero e Carlos Durão, entre mais) em que Carvalho nom intervém. Porém, o primeiro impulso desta corrente talvez poda retrotrair-se já ao confronto pola autoridade normativa que se dá entre o próprio Carvalho Calero (que representava entom a Real Academia Galega) e Constantino Garcia (que depois fundaria o ILG) desde muito antes.
Simplificando muito, estas instituições partiam de critérios codificadores diferentes. O de Constantino alicerçava-se nas falas vivas conservadas e o de Carvalho na tradiçom escrita. Ora bem, se atendemos à correspondência da época estudada recentemente por vários autores como Xosé Ramón Freixeiro Mato ou Xosé Maria Dobarro, atrás desta tentativa de manter o galego ancorado na tradiçom escrita já estava seguramente a prudente intençom de proteger-se do castelhano e nom afastar-se demasiado do português. E este é um critério que se irá acentuando em Carvalho nesses anos, de forma notória nas Normas de 70 e 71 e na quarta ediçom da sua Gramática, até chegarem as primeiras declarações explicitamente reintegracionistas de 19754 em diante… Foi uma evoluçom demorada, nom uma mudança de posiçom drástica, à medida que ele vai conhecendo melhor as falas, o português, as posições da romanística e, sobretodo, que pola primeira vez na história, se o galego chegava ao ensino, ia ser possível ensinar uma ortografia diferente da castelhana.
Nos últimos anos 70 os seus pronunciamentos reintegracionistas multiplicam-se e em 1979 chega a última ediçom da sua Gramática, com um prólogo em que reconhece que este best-seller já nom era adequado para os seguintes passos que tinha de dar o galego.
Finalmente, em 1980 ele preside a Comissom de Linguística da Xunta que dá por resultado as efémeras Normas Ortográficas do Idioma Galero (1980). Ele pretendeu que estas normas fossem de consenso, ainda que partissem de uma filosofia reintegracionista. Chegárom a ser oficializadas na administraçom, mas fracassam ao pouco tempo com a publicaçom no DOG de outras de orientaçom diferente para o ensino.
A desautorizaçom das Normas de 80 propicia, entre maio e outubro de 1981, a fundaçom da AGAL, impulsionada em grande medida por discípulos dele, e, praticamente ao mesmo tempo, a publicaçom do seu livro Problemas da Língua Galega (o primeiro da história em galego-reintegrado). Sem dúvida, estes dous episódios podem ser considerados os marcos fundacionais do reintegracionismo moderno e, nesse sentido, Carvalho Calero, nom só foi o grande pensador deste movimento, senom também um dos seus principais fundadores.
Carvalho no reintegracionismo moderno
Passados quarenta anos, cabe perguntar-se qual é a relaçom que o reintegracionismo moderno mantém com o seu grande pensador. A resposta é tam arriscada como reduzir o reintegracionismo a uma só teoria ou prática, mas levando em conta apenas as práticas e linhas discursivas da AGAL na atualidade, acho que se pode concluir que:
a) Mantém-se o ideário e argumentário. Apesar das milhares de páginas escritas desde entom, podemos dizer que todo o argumentário atual do reintegracionismo, ainda que com pesos relativos diferentes, já estava de certo modo presente em Carvalho. É verdade que a Filologia perdeu relevância e que os argumentos utilitaristas ganhárom importância em relaçom aos protecionistas do idioma, mas todos eles já se encontravam em Carvalho, e às vezes até som reproduzidos literalmente da sua obra.
b) Perdeu força a sua proposta mais prática: o gradualismo. Este plano de açom pressupunha um acordo normativo para definir etapas na adoçom da ortografia convergente com o português conforme a recetividade social. Este esquema está dando passo a outro (o binormativismo) polo que se assume que os dous modelos de codificaçom existentes estám aqui para ficar e até pode ser interessante que convivam. Conserva o espírito liberal e de convívio carvalhano, mas sem definir o fim da viagem.
Por iniciativa da AGAL e outros setores do galeguismo preocupados pola falta de colaboraçom entre galeguistas apesar da grave situaçom que atravessa o idioma, o binormativismo continua a desbravar caminho entre o desânimo geral do movimento normalizador. Acima do Dia das Letras, a melhor homenagem que, finalizado o ano, poderíamos prestar ao homeageado, seria, sem dúvida, fazer avançar o espírito liberal que Carvalho abraçou até o final dos seus dias.
Este texto debruça-se sobre algumha das conclusões de um trabalho mais extenso elaborado para o seguinte Boletín da Real Academia Galega (BRAG), que recolhe este e outros trabalhos apresentados no Simpósio que a mesma instituiçom dedicou a Ricardo Carvalho Calero.
Notas
1. Gramática Elemental del Gallego Común (Galaxia: 1966)
2. Normas Ortográficas do Idioma Galego (RAG: 1970)
3. A evoluçom do seu pensamento reintegracionista é mui fácil de seguir, porque está organizado por ele mesmo em quatro volumes que recolhem trabalhos sobre a questom dos anos imediatamente anteriores:
-Problemas da Língua galega (Sá da Costa: 1981)
-Da Fala e da Escrita (Galiza Editora: 1983)
-Letras Galegas (AGAL: 1984)
-Do Galego e da Galiza (já póstumo, mas organizado por ele para Sotelo Blanco: 1990)
Outros artigos encontramo-los no livro também póstumo Umha voz na Galiza (editado por Sotelo Blanco e ideal para seguir a sua evoluçom linguística ao longo de toda sua vida: 1992).
4Nomeadamente “Ortografía Galega”, de 27 de julho de 1975 em La Voz de Galicia.