Como Presidente da Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos (CL-AEG), continuadora desde 2016 da Comissom Lingüística da AGAL, cabe-me a satisfaçom de anunciar a recente publicaçom do Prontuário de Apelidos Galegos, obra da Comissom Lingüística que representa um guia simples e prático, mas de sólidos fundamentos filológicos, concebido para orientar e promover umha plena regeneraçom formal dos nomes de família galegos. A necessidade deste novo contributo codificador da CL-AEG deriva, em primeiro lugar, é claro, dos cinco séculos de castelhanizaçom e de anomia culturais por que tem atravessado o galego, que tenhem determinado que umha elevada percentagem dos apelidos oriundos da Galiza, cristalizados no seio do galego-português da Galiza e próprios da atual cidadania galega, surjam hoje deturpados, ou seja, escritos e/ou pronunciados de umha forma distorcida, incoerente e castelhanizante, a qual oculta a sua naturalidade galega e galego-portuguesa e obscurece o seu significado; mas também, em segundo termo, tal necessidade deriva da evidência de as orientaçons sobre apelidos galegos até agora oferecidas polo oficialismo lingüístico (isolacionista) nom se revelarem plenamente satisfatórias para contrariar com eficácia a deturpaçom onomástica que padecemos, sem dúvida por causa de insuficiências originadas numha marcada subordinaçom ao castelhano.
Perante tais circunstáncias, o Prontuário de Apelidos Galegos proporciona informaçom, de forma sucinta e acessível ao público geral, sobre a variegada natureza da deturpaçom onomástica entre nós atuante e sobre os critérios de retificaçom restauradora e de regularizaçom coerente que, em cada caso, devem ser aplicados para umha completa regeneraçom formal dos nossos apelidos. De facto, como resultado da aplicaçom desses critérios regeneradores, a obra oferece umha relaçom de mais de 2000 apelidos na sua forma genuína e correta, complementada por umha lista de formas deturpadas, com remissom para as corretas correspondentes. Entre os critérios de regeneraçom onomástica (retificaçom restauradora + regularizaçom coerente) expostos e aplicados no Prontuário de Apelidos Galegos, os mais importantes, e que se revelam igualmente válidos para os utentes dos três modelos normativos hoje vigentes no galego-português da Galiza (normas isolacionistas [da RAG], normas reintegracionistas de padrom galego [da CL-AEG] e normas reintegracionistas de padrom lusitano), som os oito seguintes:
1.- Restauraçom de traços patrimoniais originários distintivamente galego-portugueses, hoje maciçamente castelhanizados nos apelidos galegos, como acontece, por exemplo, em Afonso nom *Alonso), Branco (nom *Blanco), Morgadáns (nom *Morgadanes: plurais castelhanizados em *-anes) e nos numerosos apelidos galegos de ditongaçom alterada, como Monteiro (nom *Montero), Montouto (nom *Montoto), Mosqueira (nom *Mosquera), Outeiro (nom *Otero), Lourenço ou Lourenzo (nom *Lorenzo), Ouge(i)a (nom *Ogea ou *Ojea), Preto (nom *Prieto), Vila-Nova (nom *Villanueva).
2.- Segmentaçom significativa dos apelidos pluriverbais, com natural separaçom (completa ou mediante hífen, conforme os casos) das palavras componentes, como é habitual noutros contextos onomásticos e lingüísticos normalizados (cf. luso-br. Da Silva, Do Rio; cast. De la Fuente, Del Bosque; neerl. Van Lawick, Van’t Hoff; al. Von Armin, Von der Leyen). Portanto, formas onomásticas hoje comuns na Galiza como *Dacal, *Dasilva, *Davila, *Docampo, *Dorrío; *Sampedro, *Santomé; *Casavella, *Ruanova, *Vilaverde devem ser retificadas como, respetivamente, Da Cal, Da Silva, Da Vila, Do Campo, Do Rio (ou Do Río) [1]; Sam-Pedro (ou San-Pedro), Sam-Tomé (ou San-Tomé); Casa-Velha (ou Casa-Vella), Rua-Nova (ou Rúa-Nova), Vila-Verde.
3.- Restituiçom da preposiçom original (e adoçom de umha segmentaçom significativa). Há sobejos testemunhos de que, no processo de desgaleguizaçom e castelhanizaçom dos apelidos galegos, a partir de formas onomásticas genuínas e originais compostas polo complexo preposicional «de + artigo» e por um substantivo (ex.: Do Campo), tenhem vindo a surgir formas aberrantes do tipo *Ocampo. Por conseguinte, deve proceder-se à restituiçom do componente preposicional amputado dos apelidos galegos dessa classe, bem como a estabelecer-lhes umha segmentaçom genuína (v. supra): *Abal > Da Val (a val(e), forma arcaica da atual o val(e)) , *Ocampo > Do Campo, *Opazo > Do Paço (ou Do Pazo), etc.
4.- Restauraçom da correta distribuiçom dos grafemas b e v. Por causa da anomia castelhanizante sofrida pola língua na Galiza a partir do período medieval, hoje alguns apelidos galegos surgem com um b ou com um v aberrantes, que nom correspondem à grafia genuína da respetiva palavra na língua geral. Nesses casos, é indispensável restaurarmos no apelido a grafia genuína, como se vê, por exemplo, em *Abal > Da Val (restituiçom da preposiçom: v. supra), em *Dobao > Do Vau (ou Do Vao; v. supra segmentaçom), em *Obelleiro > Ovelheiro (ou Ovelleiro) e em *Viéitez > Bieites (derivado do prenome Bieito; v. infra terminaçom -es), bem como nos três seguintes casos, especialmente problemáticos: *Bello > Velho (ou Vello; ou seja, ‘idoso’), *Brea > Vre(i)a (de v(e)re(i)a ‘vereda, caminho estreito’), *Velo > Belo (ou seja, ‘formoso’).
5.- Regularizaçom das terminaçons -´es e -´is nos apelidos patronímicos. Como, num elucidativo artigo, explica Jorge Rodrigues Gomes, Secretário da CL-AEG, os apelidos patronímicos cuja terminaçom provém de -ici, derivados de prenomes, eram escritos durante a época medieval, tanto na Galiza como em Portugal, de modo variável com as terminaçons -s e -z (ex.: Alvares ~ Alvarez, Frois [e Froes] ~ Froiz, Nunes ~ Nunez, Peres ~ Perez, Rodrigues ~ Rodriguez), mas em Portugal tais terminaçons vinhérom posteriormente a ser unificadas em -s, por esta se revelar a única forma coerente com o sistema gráfico geral. Na Galiza, em contraste, a unificaçom da variaçom inicial entre -s e -z ficou resolvida, através da castelhanizaçom, em benefício da terminaçom convergente com o castelhano, -z, se bem que a extirpaçom da terminaçom original -es (e -is) da onomástica galega nom tenha afetado completamente aqueles apelidos patronímicos galegos mais divergentes do castelhano, nos quais a sua natureza patronímica nom se revelava evidente conforme os módulos castelhanizantes: assim, ainda hoje surgem entre nós, por exemplo, as formas terminadas em s Bieites (derivada de Bieito e equivalente da castelhana Benítez), Eanes (derivada de Joám através de Johannici e equivalente da castelhana Yáñez), Guedes (derivada do prenome suevo Gueda) e Pais (derivada de Paio e equivalente da castelhana Peláez). Ora bem, como a razom que levou em Portugal à regularizaçom em -es ou -is dos apelidos patronímicos cuja terminaçom provém de -ici (i. é, coerência com o sistema gráfico geral) também apresenta plena pertinência em galego, já que também em galego (genuíno) nom há sílabas átonas terminadas em -z (cf. alferes, asteca, Biscaia, biscoito, cabisbaixo, Cádis, esquerdo, grasnar, jasmim, jaspe, lápis, masmorra, mesquinho, mesquita, ourives, pomes, Tunes, visconde, etc.), também em galego é preciso regularizarmos tais apelidos no sentido de passarem a terminar, todos eles, em -es ou -is. Portanto, seguindo um critério de harmonizaçom interna, gráfica e fónica, a regeneraçom onomástica dos apelidos galegos exige hoje a substituiçom das formas patronímicas findas em -´ez e em -´iz (terminaçons átonas) por formas findas, respetivamente, em -es e em -is: *Álvarez > Álvares, *Fernández > Fernandes, *Froiz > Fróis, *Gómez > Gomes, *González > Gonçalves [2], *Martínez > Martins, *Méndez > Mendes, *Núñez > Nunes (do prenome Nuno!), *Pérez > Peres (do prenome Pero, hoje Pedro), *Rodríguez > Rodrigues, *Vázquez > Vasques [3], *Viéitez > Bieites, etc. [4]
6.- Atualizaçons gráficas. De acordo com a evoluçom gráfica do galego (e em benefício da harmonizaçom com as variedades lusitana e brasileira da nossa língua), revela-se conveniente, por um lado, substituirmos o grafema arcaico y por i, como em *Naya > Naia e em *Romay > Romai, e, por outro lado, simplificarmos as duplicaçons arcaicas ll (para -l-), como em *Villar > Vilar e em *Villares > Vilares, aa (para -a- ou -á), como em *Caamaño > Camanho (ou Camaño) e em *Sáa > Sá, e -oo (para -ó), como em *Feijoo ou *Feijóo > Feijó.
7.- Realizaçom oral com o fonema genuíno /∫/ de todos os jotas e de todas as seqüências ge e gi presentes nos apelidos galegos. Com independência da natureza etimológica (genuína) ou antietimológica (castelhanizante) de que, em cada caso, se revista um j ou umha seqüência ge ou gi presente num apelido galego (v. infra), tais grafias, em benefício da regeneraçom onomástica, devem ser lidas, sempre, com o fonema pós-alveolar próprio do galego representado em fonética como /∫/ (o do xis de caixa), e nom, naturalmente, com o fonema do jota castelhano (fricativo velar surdo), alheio ao galego. Assim, por exemplo, sempre serám pronunciados com o fonema /∫/, com independência de como, em cada caso, surgirem escritos, apelidos galegos como *Ameigeiras, Feijó(o), Gesteira, Queijeiro, Rajói e *Seijo.
8.- Restauraçom do x etimológico, quando a castelhanizaçom o substituiu por ge, gi ou j. A ocorrência nos atuais apelidos galegos do j e das seqüências ge e gi deve-se, nalguns casos (mas nom em todos!), à castelhanizaçom, e, nesses casos, essas letras, aberrantes e antietimológicas, devem ser substituídas polo grafema x, etimológico e que surgia na forma genuína original, como acontece, por exemplo, nos apelidos Ameixeiras (incorreto: *Ameigeiras ou *Ameijeiras), Freixo (incorreto: *Freijo) ou Seixo (incorreto: *Seijo).
Polo contrário, naqueles apelidos galegos em que a ocorrência do grafema j ou das seqüências ge e gi se deve à conservaçom, desde a época medieval, da grafia etimológica (como, por exemplo, em Araújo, Argiz, Feijó(o), Gesteira, Gil, Janeiro, Queijeiro, Rajói, Tojo), o proceder que, com independência das normas ortográficas galegas preferidas por cada pessoa, nos parece mais recomendável consiste em mantermos tais grafias (sempre pronunciadas com o fonema galego genuíno /∫/!), recomendaçom que se esteia nas seguintes constataçons: a) essas grafias j, ge e gi etimológicas som as originárias, e, portanto, genuínas e nom surgidas por castelhanizaçom; b) vivemos numha altura em que nom há consenso normativo, e em que a opçom reintegracionista, conservadora dos jotas e dos gês etimológicos, ganha cada vez mais presença; c) a nível social, garante melhores resultados aquela estratégia regeneradora, baseada na divulgaçom da correta pronúncia dos apelidos, que menos intervençons sobre a grafia exige.
Por conseguinte, tendo em conta estes critérios fundamentais, expostos e aplicados no Prontuário de Apelidos Galegos da CL-AEG (mas vários deles desconsiderados, injustificavelmente, polo atual oficialismo!), som já horas de pormos em prática umha cabal regeneraçom formal dos nossos apelidos (e prenomes), tanto na vida pessoal e social como, na medida do possível, na documentaçom oficial. Nom podemos adiar mais tal regeneraçom onomástica, porque ela representa, de facto, um verdadeiro dever cívico, dado que a antroponímia nom constitui apenas património individual, mas também, claramente, património coletivo de umha comunidade sociocultural, e porque o uso da forma genuína dos nossos nomes de família é, ainda, umha questom de civilidade galega (vinculada à própria identidade e à autoestima) e de sensibilidade cultural (que remete para a solidariedade social). Porque, que civilidade galega e que sensibilidade cultural mostrará, por exemplo, um cidadao galego (pretensamente) instruído que escreva, e que permita que escrevam, o seu apelido sob a aberrante forma *Seijo, e que pronuncie, e que permita que pronunciem, esse seu apelido com o aberrante fonema do jota castelhano, porventura sem mesmo ter reparado em que o seu apelido deriva da voz seixo, que significa ‘pedra lisa, rolada’?! E que civilidade galega e que sensibilidade cultural estarám a demonstrar, enfim, a rádio e a televisom públicas da Galiza, quando ainda hoje os seus locutores pronunciam com o aberrante jota castelhano apelidos tam galegos (e estes, bem escritos com jota etimológico!) como Feijó, Queijeiro e Rajói?!
Notas
[1] No caso de estes apelidos serem antecedidos por prenome ou por outro apelido, apresentarám a preposiçom ou o complexo preposicional com minúscula inicial: Joana do Campo, Joana Chantada do Campo.
[2] No caso de *González, além de introduzirmos a regularizaçom em -s, é necessário restituirmos a base Gonçalv- (ou Gonzalv-), já que este apelido galego provém do prenome Gonçalvo.
[3] É indispensável, neste caso, além de introduzirmos a regularizaçom em -s, restituirmos o primeiro esse de Vasques, já que este apelido patronímico provém do prenome galego-português Vasco.
[4] Pode verificar-se o uso habitual dos prenomes Gonçalvo, Nuno e Vasco, bem como o dos respetivos apelidos, daqueles corretamente derivados, Gonçalves/z, Nunes/z e Vasques/z, por exemplo, em coletáneas de textos medievais como a de Ferro Couselo (1967), ou na ediçom de López Carreira (1995) de cadastros municipais de Ourense do século XV.