À calor da revolução indígena boliviana de começos de século, e desde o enjámio de corpos críticos da cidade do El Alto, o ativista e jornalista uruguaio Raúl Zibechi escreveu Dispersar el poder. Los movimientos como poderes antiestatales, um livro cujo alcance teórico vai muito mais lá da análise do caso concreto, sendo mui útil para os movimentos sociais de outras latitudes.
Há que reconhecer, com Theodoros Karyotis, que quando falamos de “movimentos sociais” costumamos estar a designar com o mesmo nome “dous imaginários distintos, complementários e à vez antogónicos”, confussão que se vê incrementada com o uso da retórica dos movimentos por parte dos partidos da chamada “nova política”. Para o sociólogo grego:
“(…) Por um lado estão os movimentos de cidadãos afetados polo ataque antisocial da troika, que exigem a restituição do Estado do bem-estar como instrumento de redistribuição, o afortalecimento do Estado como mediador dos antagonismos sociais e a volta ao crescimento económico com o fim de paliar a pobreza e desesperação que o desemprego maciço provocou. Por outra parte, está uma multidão de movimentos que pretendem ir mais lá do Estado e da economia capitalista como principios organizativos da vida social e começam a construir já alternativas radicais baseadas na proximidade, a solidariedade a participação” (1).
Os cidadãos do primeiro imaginário aguardam un regresso keynesiano ao pacto do bem—estar e aos políticos que sim o representam –uma opção que está a bater contra os seus limites (2)-, enquanto as pessoas partidárias do segundo imaginário têm um horizonte claramente pós-consumista, que supera “o dilema artificial entre austeridade e crescimento”, e rejeitam voltar a serem representados. Os movimentos sociais que Zibechi define como poderes antiestatais correspondem-se claramente a este segundo imaginário.
MOVIMENTOS INCRUSTADOS NO QUOTIDIANO
“… porque son tecnócratas de la revolú-
ción y creen que la alegría, los
hongos y mi portera no entran en la
dialéctica de la Historia”.
Julio Cortázar, Libro de Manuel
Em Dispersar el poder Zibechi questiona radicalmente o paradigma anglosaxão de estudo dos movimentos sociais. Se para estes teóricos apenas são pertinentes a efeitos de análise as organizações formais, os fins que programam e os repertórios de protesto despregado para atingi-los, para o uruguaio:
“(…) O problema é que não estamos dispostos a considerar que na vida quotidiana as relações de vizinhança, de amizade, de companheirismo, de compadrado, de família, são organizações da mesma importância que o sindicato, o partido e até o próprio Estado. No imaginário dominante entende-se por organização o instituido, o isto costumam ser aquelas relações de caráter hierárquico, visíveis e claramente identificáveis. As relações pactuadas, codificadas através de acordos formais, costumam ser mais importantes na cultura ocidental que as fidelidade tecidas por vínculos afetivos. Em resumidas contas, a associação (onde os vínculos de racionalidade convertem as pessoas em meios para conseguir fins) costumam ser consideradas mais importantes que a comunidade (tecida em base a relações subjetivas em que os fins são as pessoas)”. (3).
Assim como Karl Polanyi deu um giro na economia política ao descrever as economias pré-capitalistas como “incrustadas” (embedded) na sociedade, Zibechi começa falando de “organizações incrustadas na vida quotidiana”, para ir afinando a terminología preferindo, finalmente, falar de sociedades ou comunidades “en movimiento” antes do que “movimentos sociais”. A separação entre a esfera política e a da vida quotidiana, paralela ao processo de autonomização dda economia no capitalismo, causa uma alienação militante que o coletivo francés Tiqqun criticou com contundencia. Ao resituar o político no seio da vida quotidiana, Zibechi está a colocar como ponto de partida o horizonte emancipatório que Marx descreveu na célebre passagem de A questão judea: “(s)ó quando o homem real individual retomou em si o cidadão abstrato (…) quando o homem reconheceu e organizou as suas forças próprias em forças sociais e por tanto já não separa de si a força social sob a forma de força política, somentes então conclui a emancipação humana”.
O FOGO DA POTÊNCIA
“…organizar encontros, aumentar a capacidade
de atuação, afetar-se de alegria,
multiplicar os afetos que expressam
ou desenvolvem um máximo de
afirmação”
Deleuze, Dialogues
Zibechi afirma com rotundidade que “há apenas duas formas de fazer política: em base aos limites ou em base às potências”, uma focagem especialmente para o caso galego, onde nas últimas décadas cristalizou um habitus nacionalista fortemente condicionado polos limites, o taticismo e as paixões tristes, não tanto polas carências teóricas quanto pola ausencia de lugares próprios –materiais e simbólicos- explicável por uma política de monocultura eleitoral que não apostou maioritariamente nunca na criação de espaços autónomos. Na política dos limites a militancia move-se na lógica de mobilização-pressão ao Estado- tradução eleitoral, de forma que “a cojuntura ê-o tudo”:
“(…) a cojuntura é quantidade, em tanto a potencia é qualidade. Mas a uma não pode transmutar-se na outra. É natural que desde a olhada estadocêntrica surja, então, a pregunta sobre a utilidade da potencia. Como a emancipação, a potencia não é útil, não pode metamorfear-se em valor-de-cámbio no altar do mercado político. Pior ainda, só tem interesse, -valor-de-uso digamos- para quem a vivem, a sentem, a praticam. Por isso a potencia emancipatória não costuma nas grandes litúrgias com que a esquerda política e social crem estar a promover as mudanças. E isso vale tanto para os congressos partidarios quanto para os foros sociais”. (4).
A noção de “potencia”, central nos movimentos desde a releitura deleuziana de Spinoza, teme m Zibechi mui pouco a ver com o uso que se lhe dá na gíria da “nova política” (5), e está firmemente enraizada na crítica foucaultiana do poder como um centro de mandos que se poderia “tomar” para a mudança social. As políticas da potencia são as que diferenciam claramente entre o “poder” e o “poder-fazer” (6), as que constroem liberdade desde abaixo tecendo inter-dependências, cuidados e ajuda mútua, sem aguardar por cojunturas. Eis os casos emblemáticos do zapatismo, o confederalismo democrático curdo ou o comunitarismo mapuche, mas também as experiências mais modestas dos movimentos autogeridos galegos polo empoderamento das mulheres ou as soberanias alimentar e energética. Uma forma de empoderamento, em resumo, que exige uma atitude mui diferente:
“Para quem apostamos na emancipação, os desafios centrais e decissivos não estão arriba mas abaixo. Por isso não é válido achacar culpas ou erros, menos ainda “traições”, aos gobernantes. Cuidar a potencia como o fogo sagrado dos movimentos é uma tarefa quotidiana de todas e todos os que estamos empenhados em criar um mundo novo. Que late no coração dos povos, um coração tecido na sociabilidade popular, sem hierarquias nem caudilhos, que floresce graças á força do hermanamento; a força motriz de qualquer mudança; a trama básica e a luz da vida” (7).
REPENSAR A AUTODETERMINAÇÃO
“El mal gobierno no nos hace caso. Ahí
que se quede con sus pendejadas. Ya
sabemos formar nuestros municipios
autónomos”
Rosalinda, zapatista de Oventic
“O ‘direito’ de autodeterminação invoca-se
em sentido abstracto, indeterminado
e um tanto vitimista. Não é mais
preciso falar de ‘obriga’ de
autodeterminação?”
Joseba Sarrionandia, Moroak gara behelaino artean
A política em base à potencia obriga a repensar radicalmente as noções de autodeterminação e soberania: da autodeterminação como culminação política à autodeterminação como punto de partida e prática quotidiana, da autodeterminação à multiplicidade de autodeterminações (sem cair na armadilha de invocar um “direito a decidir tudo” que na realidade não é mais senão menos), e às soberanias setoriais; o que no Curdistão chamam “autodeterminação direta”. Além da tradição anarquista, podemos encontrar antecedentes teóricos mui interessantes no próprio galeguismo, que superam a autodeterminação entendida como direito a reconhecer polo Estado para propor procesos unilaterais que dependam únicamente de própria potencia. Paga a pena reproduzir na íntegra o texto em que o Vicente Risco expõe a sua proposta do “direito de fundação”, em o qual possivelmente se inspiraría anos depois Ramón Obella, quem no seio do Partido Galeguista defendeu a necessidade de começar a exercer o direito de autodeterminação sem aguardar qualquer eventual cessão de autonomia ou referendo por parte do governo da república espanhola, uma estratégia de denominou “autodeterminação funcional da Galiza”. Eis a primeira ideia de Vicente Risco:
“Outro dereito de que se pode botar mau é o de fundación: o dereito que os cidadans, individual ou coleitivamente, e as corporaciós púbricas teñen de fundaren e sosteren diversas sortes d’instituiciós, de carauter centífeco, docente, benéfico, sanitario, económico, financiero, adeministrativo mismamente. En todol-os ordes da vida que verdadeiramente intresan a todos.
Botando mau d’iste dereito, un pobo que teña concencia de sí mesmo e que queira ser libre, pode criar, aparte e independentemente, e ainda por frente das qu’o Estado a que pertence lle proporcise (sic), case todal-as instituciós qu’a vida e as necesidades do país esixen, e deprender e encomenzar d’iste geito a irse valendo por sí mesmo.
É o geito d’irnos criando unha vida propia e autónoma, e desenvolvela sen intervención allea. Iste é o meio tamén, de demostrar capacidade de se reger un pobo.
Somentes tendo instituciós propias, poidérase despois prescindir compretamente das do Estado. Sería unha sustitución civil de istituciós, chegando o caso” (8).
Desta outra focagem, resulta evidente que o movimiento galego exerceu mui pouco o seu “direito de fundação”, polo menos se o compararmos com movimentos semelhantes, o qual ajuda a explicar parte da sua debilidade. As exceções vêm de dous movimentos, o independentismo e o reintegracionismo, que de uma posição estrutural mui parecida (minoria da minoria, marginalização por parte da oficialidade autonomista, nenhum acesso aos modos de participação e subsidios que tende o Estado, etc.) que com mui poucos recursos fôrom construíndo as suas próprias instituições autónomas: rede de centros sociais, meios de comunicação, escolas, etc. No caso do reintegracionismo, mais do que uma opção ortográfica estamos perante um caso de autogestão da língua e construção de um galego sustentável.
Assumir a obriga de autodeterminação, longe de renunciar à autodeterminação “política”, como às vezes se critica, implica uma responsabilização enorme, assim como a apertura de um amplo leque de novas tarefas que exigem tanto ou mais que a política clássica de reinvidicação. Mesmo com as limitações legais do atual quadro jurídico e sem contarmos com o elementar direito de desobediência, os ámbitos de vida nos quais nos podemos autodeterminar já aqui e agora, são muitos mais dos que a nossa estatalizada imaginação política pode crer.
NOTAS
1. Theodoros Karyotis, “Syriza y los movimientos”, Diagonal nº 241, 05.03.2015-18.03.2015
2. Ou como di Andre Gorz o “duplo limite”: nem há posibilidades para uma reativiação keynesianista do consumo pola crise do valor –o limite interno do capitalista-, nem há recursos naturais –o limite externo-.
3. Raúl Zibechi, Dispersar el poder. Los movimientos como poderes antiestatales, Barcelona, Virus, 2007, p. 37.
4. Ibidem, p. 27.
5. Cf. Xaime Subiela, “A potencia do pobo galego”, Tempos nº 220, setembro 2015, pp. 35-38. Fijo-se mui difícil seguir a bulímia conceitual do debate galego: a “multidão” de Negri e Hardt como cobertura teórica dos pactos de cúpulas partidárias; um Governo que já não é linguicida mas derridiano (agora o PP não “destrói” o galego, mas “deconstrói-no”); os comunicados mais radicais do EZLN contra o eleitoralismo usam-se para justificar exatamente o contrário desta beira do Atlântico, etc… No plano organizativo chamou-se sucesivamente à conformação de uma CiU galega, um Amaiur galego, uma Syriza galega, uma Fronte Ampla galega… e até últimamente uma reedição da ORGA (quem será o novo Casares Quirogas?).
6. John Holloway, Cambiar el mundo sin tomar el poder, Buenos Aires, Herramienta, 2000.
7. Raúl Zibechi, op.cit., p. 30.
8. Vicente Risco, “Lerias Novas”, Suplemento de Nós, nº 32, julo de 1931, pp. 9-10.