Regina e Ofélia

A paixom polo feminino é a mais profunda servidóm masculina. A mulher é, aliás, em boa medida, filha directa da imaginaçom masculina: o seu corpo mil vezes reinventado pola imaginaçom artística, a própria categoria de feminidade apenas compreensível se nom é como radical alteridade da autoconsciência masculina. Mae, amante, companheira ou sedutora; os arquétipos de Eva e Lilith custodiam os nossos sonhos desde o colo materno.

Modestamente ousaria acrescentar mais três congregantes á marmórea confraria: Johannes Brahms, Anton Bruckner e Manuel de Falla. Três enigmáticas excepçons do mundo do pentagrama que tantas gloriosas páginas tem oferecido para cantar o amor imortal

Há graus e desvios conhecidos na irredutível paixom erótica. Nom só os da condiçom homossexual, tam dependente do arquétipo maternal, a história abunda em casos singulares de varons imunes ao irresistível encanto feminino. Seres cegos à cordial hospitalidade de Eva ou á vertiginosa capacidade sedutora de Lilith. Nom aludimos ao andrógino nem ao misógino sobrevindo nem sequer ao “eunuco polo reino dos ceús”, evocamos o varom que constrói a sua vida sem dó nem saudade sobre a ausência da mulher em permanente estado de cegueira erótica. O caso exemplar é o de Immanuel Kant que mereceu por tal motivo um maravilhoso opúsculo filosófico de Jean-Baptiste Botul: “Para mim, a vida sexual de Kant é um dos grandes interrogantes da metafísica ocidental” afirma Botul com umha piscadela de olhos. Botul e a admirável filosofia do botulismo é umha brilhante máscara de Frédéric Pagés que conseguiu enganar ao mesmíssimo nouvelle philosophe Bernard-Henri Lévy que sabe de quase todo. Afirma Botul que Kant pertence a esse “grupo de grandes homes, como Newton ou Robespierre, aos que a carne feminina deixava sempre de mármore”.

Modestamente ousaria acrescentar mais três congregantes á marmórea confraria: Johannes Brahms, Anton Bruckner e Manuel de Falla. Três enigmáticas excepçons do mundo do pentagrama que tantas gloriosas páginas tem oferecido para cantar o amor imortal. Gluck e Wagner pugéron-lhe música sublime ao amor que desafia a morte, o primeiro para cantar ao deus Orfeu na busca destemida da amada Euridice na lúgubre regiom do Hades -“Che farò senza Euridice?” canta desolado Orfeu- Wagner para compor a música mais narcótica para o mais louco amor de que haja memória: o de Tristám e Isolda que só cabe explicar por feitiço alucinatório da alma.

Entre o ruído branco do desamor sem desejo nem saudade e a paixom alucinatória dos grandes amantes campa a inúmera legiom dos amantes inconstantes e volúveis que procuram sem desmaio o amor definitivo em toda e qualquer mulher

Entre o ruído branco do desamor sem desejo nem saudade e a paixom alucinatória dos grandes amantes campa a inúmera legiom dos amantes inconstantes e volúveis que procuram sem desmaio o amor definitivo em toda e qualquer mulher. Amor solícito e inconstante, transitório e insatisfeito, incapaz de gozo permanente ou demorado. A mulher som as mulheres: “Madamina il catálogo e questo” arranca a exultante ária onde Leporello instrui a dona Elvira sobre a frenética actividade amorosa do seu sinistro patrom: “In Italia seicento e quaranta; in Alemagna duecento e trentuna; cento in Francia, in Turchia novantuna; ma in Ispagna son già mille e tre”. O gênio de Mozart pom música com sabor a borbulhas de champanhe ao inquietante texto de Da Ponte.

Dom Joám, o eterno sedutor que desafia toda convençom social e o mesmo inferno porque o seu reino está entre os lençóis da amante casual apenas conhecida De mulher em mulher em procura incessante do filtro definitivo capaz de apagar a sede irremediável. O amante instável, o insatisfeito sem remédio instalado no estádio estético pola sua incapacidade para ingressar na maturidade ética, como apontaria Kierkegaard, é um arquétipo masculino. Por ele vagárom sem descanso almas hipersensíveis e feridas como as de Kafka (Felice, ou a fugaz G. W., Grete, Julie, Dora Diamant) e Rilke (Lou Andreas-Salomé, Clara Westhoff, Marie von Thurn und Taxis, Lou Albert-Lasard).

Há umha casta de amantes mais enigmática ainda, a do perpétuo mascarado, do burlador de si próprio que vive a vida como comédia sem sentido nem texto conhecido para a qual precisa fabricar inúmeras máscaras capazes de ocultar tanta estranheza

Há umha casta de amantes mais enigmática ainda, a do perpétuo mascarado, do burlador de si próprio que vive a vida como comédia sem sentido nem texto conhecido para a qual precisa fabricar inúmeras máscaras capazes de ocultar tanta estranheza. O seu é um amor sempre único ainda que fugaz; um simulacro tam estranho como um solitário jogado a dous. Fernando Pessoa e Sören Kierkegaard som os deuses maiores deste inquietante santoral de solitários irremediáveis. Mascarados perpétuos acabam por prender nalgum momento da vida a sua máscara mais enigmática, a de amante. Um amor inevitavelmente autista e intransitivo nom obstante precisar de outrem para a sua execuçom. Duas mulheres caírom na finíssima teia destes amores impossíveis. Adolescentes ambas quase: a portuguesa Ofélia Queiroz e a dinamarquesa Regina Olsen fôrom involuntárias atrizes na vida fictícia e desnorteada de Fernando Pessoa e Sören Kierkegaard. Dous amores inevitavelmente fugazes: o de Ofélia nasceu em janeiro de 1920 e morreu em novembro do mesmo ano o de Regina transcorreu entre setembro de 1840 e agosto de 1841. O primeiro rebrotou palidamente no verao de 1929 para esvaecer-se decontado, o de Regina gravitou intermitentemente nos labirínticos escritos de Sören.

A rotura de Pessoa com Ofélia foi mediada por outra das máscaras do grande fingidor: o revirado engenheiro metafísico Álvaro de Campos, o mesmo que anos despois consagraria á estranha relaçom com o poema “Todas as cartas de amor são ridículas”

A rotura de Pessoa com Ofélia foi mediada por outra das máscaras do grande fingidor: o revirado engenheiro metafísico Álvaro de Campos, o mesmo que anos despois consagraria á estranha relaçom com o poema “Todas as cartas de amor são ridículas” onde afirma também que “só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas” e que “todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ridículos”. Estranho amor para umha candorosa menina que talvez nunca deu esquecido de todo ao seu “Fernandinho”. O testamento de Kierkegaard legava todas as suas pertenças a Regina. Em 1935 morria Pessoa e três anos despois casava Ofélia que contava na altura 38 anos. Regina casou também em 1847 com um antigo tutor, tinha entom 25. Dous fugazes cometas capturados por acaso no descomunal campo gravitacional de dous imensos sóis negros para serem repelidos de imediato pola sua descomunal força centrífuga. Nem o mesmo deus Orfeu teria sobrevivido a tam incandescente Hades.

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