Renda ricardiana e rendas petroleiras

Os mestres ensinam a pensar e as suas liçons persistem. Quê pode ter a ver o pensamento económico de David Ricardo (1772-1823) com o mercado actual do petróleo, oculto protagonista do cenário bélico do Oriente Médio e inevitável variável do curso da economia? O petróleo, esse caldo de hidrocarbonetos, aditivo, que intoxica as sociedades modernas e desencadeia reflexos condicionados belicistas, flutua num oceano de rendas. Ajuda-nos a navegá-lo David Ricardo.

O venerável conceito teórico de renda encontrou um verdadeiro pai no economista de origem judaico portuguesa David Ricardo, mestre de mestres, de Karl Marx a Piero Sraffa, o amigo de Gramsci.

Afirmava Ricardo que o problema crucial da economia política era a determinaçom das leis que regem a distribuiçom social dos ingressos. A dilucidar estas dedicou um dos seus mais luminosos modelos, com três actores: os proprietários de terra, perceptores de rendas; os assalariados, perceptores de salários de subsistência; e, finalmente, os arrendatários capitalistas perceptores de lucros polo capital comprometido na exploraçom da terra. Estamos numha economia rural em crescimento; necessitada de cereal. A fábula ricardiana conclui com a condena da classe rendista, eterna perceptora de regalias detraídas do produto social, sem necessidade de aplicar-se ao trabalho nem expor capitais.

Devemos tributo de reconhecimento permanente aos grandes filósofos mundanos, como qualificou Heilbronner os mestres do pensamento económico em memorável obra de 19531. Fôrom eles os que deitárom os alicerces da magnífica aritmética social em que consiste a economia.
A teoria ricardiana da renda foi enunciada em 1815, há agora justamente 200 anos. A intençom de Ricardo era esclarecer o problema do preço dos alimentos na Inglaterra contemporánea, desqualificando de passagem a apropriaçom de rendas parasitárias polos terratenentes, em aberto contraste com o papel socialmente produtivo dos lucros do laborioso empreendedor capitalista e dos salários necessários para viverem os trabalhadores.

A linha argumental da parábola é simples. Imaginemos um Grande Vale, em forma troncocónica talvez, com um grande círculo inferior central e sucessivas coroas circulares de igual superfície que vam escalando monte arriba as terras circundantes. Os sucessivos socalcos ascendentes apresentam rendimentos decrescentes como é de esperar em terras montesinhas de cada vez mais altas.

A terra pertence aos proprietários que a cedem em arrendamento a laboriosos empreendedores que a ponhem em cultivo, adiantando a tal fim a semente e a mantença dos jornaleiros necessários para cultivar. Imaginemos a colheita final depositada no celeiro do qual o empreendedor reservará a semente e a mantença salarial dos jornaleiros para obter o produto remanescente que destina à venda e constitui o seu lucro final. O crescimento da populaçom assegura a expansom progressiva dos cultivos, que irám galgando monte arriba em terrenos de produtividade decrescente.

Suponhamos agora que na última parcela ocupada, a menos fértil, a colheita é de 100 arrobas de cereal, das quais, 30@ se reservam a semente, 50@ vam satisfazer os salários dos jornaleiros ficando 20@ como lucro da colheita. A taxa de benefício do empreendedor será, obviamente, em tal caso, 25%: 20/80 = 0,25.

Ora, que acontece com as parcelas postas anteriormente em exploraçom? A mobilidade suposta dos jornaleiros assegura a igualdade salarial em todo o Grande Vale da mesma maneira que a competência entre os empreendedores arrendatários assegura umha taxa uniforme de lucro, igual, no nosso suposto, ao 25% atingido na última parcela.

Introduzamos agora a hipótese dos rendimentos decrescentes imaginando colheitas crescentes para as tenças postas em cultivo previamente: 125 arrobas de cereal, 150@, 175@, até 200@ no círculo central. O excedente do produto colheitado sobre os adiantos, semente mais salários, – nulo na última parcela – irá crescendo segundo descemos ao fondo do vale: 125-100 = 25@, 50@, 75@, até as 100@ de lucro gerado no fondo do Grande Vale.

A produçom total alcançará no nosso exemplo 750@ [100+125+...+200], a renda apropriada 250@ [0+25+...+100] e a massa salarial mais lucros as 500@: cinco vezes 100 segundo a hipótese da homogeneidade de salários e lucros em todos os cultivos.

Se optamos agora pola hipótese complementar de que a quantidade de semente e o número de jornaleiros é um dado técnico invariável de parcela a parcela, a massa salarial ascenderá a 50@ x 5 = 250 @, a da semente a 30@ x 5 = 150@ e os lucros totais absorveram as 100@ restantes. A taxa uniforme de lucro sobre o capital avançado no Grande Vale será, naturalmente, 25%: 100/(150+250).

O parábola ricardiana evoca em nós inevitavelmente, o processo secular de extracçom de rendas forais na Galiza, desde os primeiros aforamentos medievais até a intemporal cadeia de humildes foreiros passando pola fidalguia de paço e o comprador de bens desamortizados.

O petróleo sempre está de actualidade. Na 168 reuniom da OPEP celebrada em Viena na sexta do quatro de Dezembro deste ano, o cartel decidia manter a situaçom actual e dar liberdade aos doze membros do clube para produzir o que tenham a bem. O preço do cru caía no mercado internacional ao nível mais baixo desde 2009, recém quebrado o Lehman Brothers. O barril Brent de referência na Europa baixava até os 41,25$ e o Texas, de referência nos EUA, aos 38$. O esforço da delegaçom venezolana por concordar umha reduçom ordenada da oferta fracassou; dous dias depois caía estrepitosamente nos comícios parlamentares o regime bolivariano de Maduro.

É bom lembrarmos que em Junho de 2014 o preço internacional flutuava ainda em volta dos 115 $/b. A reuniom da OPEP de Dezembro de 2015 confirmou o conflito de estratégias na OPEP e a desactivaçom do pacto em vigor de manter a oferta nos 30 mb/d elevando-a a 31,5 mb/d. A Arábia Saudita  que bombeia 10,1 mb/d  foi o árbitro da decisom. As bolsas castigárom de imediato as grandes petroleiras: a espanhola Repsol, a anglo holandesa Royal Dutch Shell, a británica BP, a italiana Eni, a francesa Total. Geopolítica, mercados, jogos de hegemonia.

Consoante dados da consultora Rystad Energy2, o custo de extracçom nos países produtores africanos menos eficientes supera os 35 $/b; 32 $/b em Líbia, 23 $/b em Venezuela, menos de 10$/b na Arábia Saudita e Qatar e apenas 8,5 $/b em Kuwait. Por cima fica ainda o custo de extracçom por fracking e muito por baixo, a oferta pirata dos campos petroleiros controlados polo Estado Islámico. Doze na Síria e Iraque, cumha produçom que talvez nom supere os 40.000 b/d, ofertados ao preço imbatível de 4 a 15 $/b.

Volvamos a Ricardo, cinjamo-nos à oferta do cartel OPEP. O Grande Vale fornecedor de petróleo retribui generosamente as opulentas corporaçons que exploram o imenso campo de rendimentos decrescentes que se estende mundo adiante. Mas, sob a conta de resultados destas confabula o escuro conclave de proprietários do insondável poço de rendas gerado pla diferença entre a massa de lucros e salários das corporaçons extractivas e os custos decrescentes que vam do Congo ou Gabom até Qatar ou Kuwait. Umha enxurrada de dólares que desemboca em misteriosas contas suíças, em partidas de armamento sofisticado, em investimentos internacionais ou em sumptuosos palácios das Mil e Umha Noites. Presidem o sanedrim as opulentas petromonarquias do Golfo, segue a triste nómina de mandatários canalhas de indecente poder. Como Teodorin Obiang da Guiné Equatorial, dilapidador compulsivo, ou Isabel dos Santos, herdeira do império angolano e investidora reverenciada de ofício e benefício.

 

NOTAS

1- Robert L. Heilbroner (2015): Los filósofos terrenales, Alianza Editorial, Madrid.

2-  El País, 5/12/2015

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.