Os melómanos compostelanos nom saberíamos prescindir da Real Filharmonia de Galicia que semana após semana revive os mestres do pentagrama lá ao pé da lagoa espelho onde sossega o rego do Corgo. A dizer verdade, o inventor do nome da orquestra, corria o ano de 1986, nom estivo demasiado inspirado quando decidiu intercalar um pretensioso “h” para romper a pretendida harmonia da nova orquestra. A artificiosa escolha ortográfica degrada a actividade musical a tedioso produto de museu. Afortunadamente a Cathedral de Santiago fica já em Catedral. Consola comprovar que a requintada palavra entrou no português em 1858 como philharmonia que já é cúmulo de artifício etimológico para o inglês ver.
O concerto de cerramento da passada temporada musical, no 29 de Maio1, anunciava-se festivo. Com Paul Daniel á batuta o programa anunciava a intervençom do actor Luís Iglésia em papel de narrador e do Coro feminino do Orfeom Terra A Nossa sob a direcçom de Miro Moreira. Abria o concerto a esplendorosa Marcha nº 1 de Pompa e Circunstáncia como brilhante prelúdio à lúgubre Balada do Cárcere de Reading de Oscar Wilde subtilmente musicada por Jonatham Rathborne, amigo de primeiros estudos musicais do Paul Daniel. O recitado de Luís Iglésia emprestou-lhe profundeza à lúgubre balada. A versom ao galego do texto fora-lhe encomendada a Gonzalo Navaza, que brilhou em excelência celebrada publicamente por Paul Daniel pola fiel recriaçom rimada, fiel à rítmica e ao léxico do poema original. O artifício paga-se por momentos em torpeza no versificado galego.
Da Balada, que dizer? Desolaçom e teatralidade misturadas num quadro macabro onde ecoa Shakespeare de longe e, sobretodo, as inimitáveis ghost stories vitorianas sempre baloiçando entre a piscadela irónica e o arrepio controlado.
In Reading goal by Reading town | Hai na prisión de Reading un |
There is a pit of shame, | vergoñento pozo innobre |
And in it lies a wretched man | onde repousa un desgraciado |
Eaten by teeth of flame, | que o cal ardente consome. |
In a burning winding-sheet he lies, | Cunha mortalla de lume xace |
And his grave has got no name. | en tumba que non ten nome. |
De repente, apenas terminado o tétrico recitado de Wilde, irrompe na sala do Auditório o Coro feminino do Orfeom Terra A Nossa em cerimoniosa marcha desde o vestíbulo até o cenário: dúzias de mulheres de rigoroso luito e tacom curto passam por entre a audiência entoando o vigoroso hino do sufragismo militante británico musicado por Ethel Smith (1858-1944) sobre texto — tam victoriano — de Cicely Hamilton (1872-1952).

Ethel, a compositora, encarnou o vivo paradigma da mulher transgressora de preconceitos sociais. Vocacionada para a música desde nova, enfrentou-se à família para acabar frequentando o Conservatório de Leipzig onde coincidiu com dous ilustres misógamos barbados e solitários: Brahms e Chaiskovsky. Autora prolífica e competente, acabou orientando a sua vida para a militáncia feminista depois de travar conhecimento da aguerrida fundadora do movimento sufragista britânico, Emmaline Pankhurst, em 1910, e ficar comovida com a força dos seus discursos. A Marcha das mulheres, composta em 1911 com texto de Cicely Hamilton, foi um sucesso imediato que obrigou a confessar ao atrabiliário e impenitente misógino G. B. Shaw que a música de Ethel Smith o tinha curado definitivamente do preconceito contra da aptidom artística das mulheres. A nossa Emília Pardo Bazán, que houve de aturar montes de condescendência masculina e viu vedada a Real Academia Española pola sua condiçom feminina, teria adorado a transgressora coragem das sufragistas británicas. Nom sem motivo, o seu contemporáneo Ortega Munilla afirmava da insigne literata que tinha «un cerebro varonil, y de los más enérgicos». Infelizmente, o liberalismo antropológico de dona Emília chocava com a inveterada misoginia social espanhola que nunca dispujo de um discurso libertário como o de Stuart Mill, activamente comprometido com as liberdades e o feminismo igualitário. Afinal, estamos atados à sociedade onde vivemos.
Cicely Hamilton, de apelido Hammmill, partilhava o tempero de Ethel Smith e do seu movimento feminista, rijamente empenhado em subverter os valores da hipócrita sociedade de circunspectos cavalheiros donos de honras, fazendas e troféus femininos que as marchas femininas conseguírom subverter. Em 1918, as britânicas de mais de 30 anos ascendiam ao voto e dez anos depois o direito estendeu-se a todas as mulheres em maioria de idade.
A segunda parte do memorável serão de fim-de-temporada foi ocupada polas Variaçons Enigma de Elgar, tam prezadas polos melómanos británicos e tam británicas por sinal. Haverá algo mais británico que os quebra-cabeças, adivinhas e conundrums com que os displicentes insulares esmagavam as longas tardes de mau tempo aguçando o engenho em repenicados veladas de conversa e charada molhadas em chá?
1 O leitor curioso pode resgatar programa e textos em:
http://www.rfgalicia.org/sites/default/files/documentos/2019/05/programa_29.5.19.pdf