Na zona de Ourense os vigairos, autoridade indígena do concelho aberto, encarregavam periodicamente aos homens velhos da aldeia, os vedraios, que se figessem acompanhar dos moços nas tarefas de reconhecimento dos marcos dos comunais, e que estes aprendessem bem até onde tinha direito a pastar a vezeira ou que toxo lhes pertencia para roçar1. Quiçá recorressem, como no rural inglês, à brutalidade nmemotécnica de dar uma labaçada ao rapaz, ou deixá-lo metido numa gábia durante horas para que jamais esquecesse o ponto exato em que se achava o marco2. Seja como for, a defesa dos marcos incardinava-se numa elaborada ritualidade da defesa do território que incluia enfrontamentos –não exentos de teatralidade- com outras paróquias os aldeias, ora liderados polos “campeões da aldeia”, ora guiados pola música satírica das gaitas.
Largamente folclorizada e ridiculizada polas camadas ilustradas, a conflitividade camponesa polos marcos era um assunto vital. Ao contrário do delirio moderno baseado na inexistencia de limites (o “progresso”, o “desarrolhismo” e demais derivados da crença no crescimento infinito), as sociedades labregas eran extremadamente conscientes de viverem num mundo de recursos limitados que cumpria repartir bem, atendendo a intrincados e antiquíssimos equilíbrios conseutidinários. Isto que George M. Foster chamou com sucesso Image of limited good3, pode-se expresser na linguagem da teoria de jogos: o campesinado percebe a realidade económica e social como um jogo de soma zero no qual um só pode medrar à conta do encolhimento de outro, do mesmo jeito que, ao mover um marco, a leira do movedor aumenta exatamente o que míngua a leira do vizinho4. Esta imagen do bem limitado fai-se evidente na experiência quotidiana do labrego, que vê como “mais gana o ladrão roubando do que o trabalhador trabalhando”. As ilusões de enriquecimento lícito, impossível mediante o trabalho, projetavam-se no mito dos tesouros dos mouros, como tem sinalado Mar Llinares, e outros semelhantes como a lotaria.
A omnipresença dos limites dá numa panoplia de práticas consuetudinárias, incluidas as simbólicas, para administrar os recursos. A ideologia da inveja revela uma forte tensão estrutural numa comunidade conformada por unidades que são, à vez e entre si, cooperadoras e competidoras na gestão dos bens limitados. A comunidade sanciona fortemente as pretensões de arribismo, projetos individuais de ascenso social que apenas se podiam sustentar a partir duma primeira acumulação de capitais furtados aos impostos rituais que exige a comunidade: não colaborando como é devido nas festas, sobrecalculando as ajudas nos trabalhos comunitários, e todas essas atitudes que tradicionalmente se atribuem à figura do pequeño-burguês, ridiculizado polas classes populares5. O refraneiro recorda que “cada um ao seu, dixo o que roubava”, pois “honra e proveito, não cabem a um jeito”. A conduta anti-social do que quer medrar, entendedo-se que é à conta dos outros, recebe o castigo da comunidade.
Vejamos apenas um exemplo: em Rio de Onor um vizinho que fechara a porta ao canto de Reis, sem dignar-se a divertir-se com a comunidade e colaborar com o aguinaldo, foi obrigado a pagar, mas também a participar, numa grande comida para todos os homens do concelho aberto, num magnífico exemplo da intenção ré-socializadora do castigo. O ostracismo, aliás, era um castigo especialmente oneroso para a gente de Rio de Onor, à que podiam excluir das danças ou de beber de copo do concelho, máximo símbolo da comensalidade da democracia paroquial6. A festa, tempo extraordinário de generosidade obrigada, é o espço por excelência onde lubricar as fricções individuais que podem ameaçar a comunidade; nela fam-se os grandes pagamentos de impostos rituais –por exemplo, na queima de pólvora- que transformam o capital individual, de cada caso, em prestígio social e exaltação da comunidade.
No que atinge específicamente à transgressão do bem limitado através da muda de marcos, encontramos as sanções sociais mais duras à ambicião pessoal. Eis o mito da Santa Companha, processão de almas em pena à que são condenados, sobretudo, aqueles que ousavam mover marcos em benefício próprio. Em Germar, na Terra Chã, dizia-se que “o que muda um marco entre duas fincas roubando terra ao vizinho tem que volver depois de morto a pôr bem o marco ou pedir a um familiar que o faga; ainda, num magnífico exemplo de bem limitado na paróquia de mortos, “ao que rouba terras ao vizinho ao ará-las depois não lhe chega a terra a ele para cubri-lo, a sua sepultura afunde-se cara abaixo”7. A ânima do defunto aparece-se no marco, para recordar o seu pecado, e só poderá entrar no céu quando alguém o subsane reestabelecendo o marco no seu sítio correto.
Vista assim, a conflitividade dos marcos parece menos uma expressão exaltada do individualismo do que o intento de controlá-lo e castigá-lo. Aliás, costuma-se esquecer que eran os marcos de comunais, mais do que os particulares, os que ocasionavam as desputas mais fortes. Entre os aspectos mais negativos da imagen do bem limitado, para além da tensão social que se deriva da ideologia da inveja, há que contar um certo fatalismo. Peter Burke relaciona o bem limitado com as ilustraçons e contos, tão típicos do Antigo Regime, em que as classes subalternas descreviam um mundus inversus com reis sachando e labregos folgando, inversão simbólica e carnavalesca que, porém, não rompia com um mundo necesariamente dividido entre ricos e pobres; “tudo isto –aponta Burke- mostra-nos uma certa pobreza imaginativa, a incapacidade para conceber mundos sociais alternativos, seguramente o resultado duns horizontes estreitos e duma limitada experiência social”8.
O outro limite desta conceção social: o seu comunitarismo restringido à paróquia ou aldeia, é superado em momentos pontuais que, quando menos, evidenciam a consciência de que o localismo era impotente perante muitos problemas aos que só a unidade podia dar resposta. Nesses momentos o marco deixa de indicar uma divisão para simbolizar precisamente a união. É o caso do marco de Porto Cobo, em Monfero, onde a força mágica concentrada das paróquias lindeiras de Vila Chã, Taboada e Grandal lograva tirar o meigalho das pessoas doentes; ou a Pedra Chantada que vencia as tempestades dos nuveiros com a força de sete paróquias9. No trabalho de Lois Vilar sobre a medicina popular nas Marinhas corunhesas10, aparecem vários rituais de curação através do poder dos marcos. Nas pessoas curava sabanhões, almorranas, e crianças que tinha o curso (tramo final do intestino grosso) fora, para o que cantavam durante o ritual:
Marco marqueiro
recolhe-lhe o cu
a este companheiro.
Também se usava contra a inveja e mal de olho. Para o gado os marcos empregavam-se em anemias, maus partos, não baixada do leite, etc… Nestes casos arrincavam com um martelinho pedrinhas do marco, que metiam em saquinhas ou bem moiam-nas para dar-lhas ao gado com a comida. Em agradecimento davam cinco ou sete voltas ao redor do marco no sentido do Sol, e deixavam como oferta colheres, garfos, ferraduras ou moedas.
NOTAS
1. P. Saavedra, La vida cotidiana en la Galicia del Antiguo Régimen, Barcelona, Crítica, 1994, p. 89.
2. E. P. Thompson, Costumbres en común, Barcelona, Crítica, 1995, p. 118 e nota 3.
3. G. M. Foster, “Peasant Society and the Image of limited Good”, American Anthropologist, 67 (2): 293-315, 1965
4. Outros exemplos de bens limitados para o comunitarismo camponês são as moças, entendidas polos moços como um bem comunal (eis as pelejas, o pago do piso, etc.), ou o leite, objeto de invejas e meigalhos. No caso do Sul de Itália, como no galego, estabelecia-se um forte controlo social, que acusava de mal de olho as mães que se consideraba roubavam o leite a outras mães, caso bem estudado por Ernesto de Martino, Sud e magia, Milão, Feltrinelli, 2007, pp. 55-63.
5. No programa televisivo Luar encarnam à perfeição esta figura na personagem da senhora de Palmírez, que fala um castelhano acastrapado e intenta patéticamente distinguir-se das classes populares. Para os sociólogos populistas esta ridiculização das pretensões de arribismo social seria a prova duma ideologia popular igualitarista; enquanto que para sociólogos legitimistas como Bourdieu, trataria-se mais bem duma sorte de “eleição do necessário”. Para esta última corrente, rir da senhora de Palmírez não implicaria um posicionamento pró-galego, senão tão só a crítica à pretensão frustrada, ao mal cálculo em base a falsas expetativas, que deixa a ambiciosa desclassada e a meio caminho. Se atingisse a sua meta, pola contra, respeitariam-na com admiração. Mas Bourdieu excluí quase completamente qualquer possibilidade disso que Thompson chama “consciência consuetudinária”, que se afirma positivamente mais lá de fazer de necessidade virtude. Quam melhor detetaram as linhas mestras deste complexo debate foram Claude Grignon e Jean-Claude Passeron, Lo culto y lo popular. Miserabilismo y populismo en sociología y en literatura, Madrid, La Piqueta, 1994. As contribuições de James C. Scott ainda o tornaram mais complexo nos últimos anos.
6. Jorge Dias, Rio de Onor. Comunitarismo agro-pastoril. Lisboa, Presença, 1984.
7. C. Lisón Tolosana, Antropología cultural de Galicia, Madrid, Siglo XXI, 1974, p. 20.
8. P. Burke, La cultura popular en la Europa moderna, Madrid, Alianza, 1991, p. 255.
9. C. Lisón Tolosana, op. cit., p. 107-108.
10. L. Vilar Hermida, “Sintomatoloxía e curación de enfermedades tradicionais nas Mariñas Coruñesas II”, Anuario Brigantino, nº 31, 2008, pp. 477-492. Os marcos estudados são o de Fonte das Meigas, que divide (ou une) as paróquias de Sueiro e Castelo (Culheredo), Tabeais (Carral) e Anceis (Cambre); o Marco Deitado ou Pedra da Inveja, marca entre os concelhos de Carral, Cerzeda e Ordes, destruido por Lignitos de Meirama S. L; e uma série de m arcos das antigas províncias da Corunha e Betanços, pertencentes ao Reino de Galiza, que vam entre Tabeaio e Culheredo.