Indústrias agro-bélicas
A reconversibilidade das indústrias bélicas em agrotóxicas e vice-versa é amiúde denunciada polos movimentos ecologistas. Uma mesma tecnologia pode producir gases mortais ou praguicidas segundo convenha, o qual evidencia descarnadamente que a guerra moderna se entende como um exterminio de pragas humanas e, a agricultura industrial, como uma guerra química.
No Vietnam, entre as celebrações do quadrigéssimo aniversario do fim da Guerra Americana, por volta de três milhões de pessoas continuam a sofrer os efeitos do napalm. Entre 1961 e 1971 os EUA atacaram o Viet Cong com fumigações aéreas do Agente Laranja, herbicida da Monsanto que destruía o hábitat da resitência. As doenças e malformações causadas polo herbicida tornaram-se o macabro ícone de aquela guerra.
Afinal no pasado 15 de maio o Governo colombiano acordou suspender as fumigações aéreas que realizaba com glifosato sobre as culturas ilícitas. Cumpre-se assim o terceiro acordo parcial entre as FARC-EP e o Governo nos Diálogos de Paz de Havana, pouco depois de que a Agenda Internacional de Investigação sobre o Cancro (IARC) classificasse a substância como “provavelmente cancerígena”. O uso do glifosato iniciaram-no com o Plano Colômbia, interrompendo-se apenas durante cinco meses depois de que a guerrilha abatera em setembro de 2013 uma avioneta fumigadora Turbo Crush. Cada hectarea fumigada reportava 72.000 dólares, um suculento para a produtora do glifosato: a Monsanto.
Entretanto, na guerra não declarada da Galiza, a limpeza de margens de estradas como a N-550 continua a fazer-se com glifosato. Ainda, a Xunta vem de contentar o lobbie eucalipteiro autorizando fumigações aéreas de tau-fluvalinato em todo o país.
Resistência apícola
A oposição às fumigações de tau-fluvalinato está a ser liderada pola Asociación Galega de Apicultura, por ser as imprescindíveis abelhas as primeiras vítimas deste agrotóxico. Continua-se, desta maneira, uma longa tradição da conscientalização política através da apicultura, que se remonta polo menos a agraristas como o Crego das Abelhas; parece que do cuidado das abelhas se dá, com grande naturalidade, esse passo ao cuidado da Terra que chamamos política.
As abelhas também combatiram no Vietnam contra os colonialistas do napalm. Os apicultores de Can Tho, perto do rio Mecong, souberam adestrá-las com espantalhos vestidos com uniformes estadunidenses para que atacassem os soldados. Neira Vilas reivindica a patente galega desta técnica de guerrilha, pois Bieito Gomes, um emigrante galego pró-independentista, utilizara-a já contra os espanhóis em Cuba na Guerra dos Dez Anos. Xurxo Pereira, companheiro do CS Fuscalho, encontrou o documento do Governador Central em que deportava o galego ao presídio de Ceuta.
“Excmo. Sr Ministro de Ultramar. Diciembre 11, 1871
D. Benito Gómez, natural de Vilaverde, Silleda, en Galicia y mayoral que ha sido en un ingenio del departamento Central de esta Isla, ha demostrado la perversidad de sus ideas y su defección a la causa nacional colocando en el tránsito de las tropas a mi mando todas las colmenas de dicha finca para que espantadas las abejas picasen a los soldados y dificultasen su marcha. Conceptuando a este individuo como un mal español, cuya permanencia en la Isla es altamente inconveniente he acordado su prisión y deportación a la Península".
Com a morte nos talões
Nem a guerra como praguicida nem a agricultura como guerra seria possível sem um invento que revolucionou a visão do mundo: a aviação. Levado até às alturas e dotado de perspetiva divina o homem pudo, pola primeira vez, olhar o mundo com terrorífica objetividade: aldeias como desenho geométricos, ciudades como planos, pessoas, enfim, como pontos minúsculos, formiguinhas. Günther Anders chamou “desnivel prometeico” a este abismo entre as inimagináveis consequências que, na sociedade tecnológica, podía ter um banal ato humano; ninguém pode representar-se emocionalmente a destruição que se pode derivar de premer um botão. Matar uma pessoa com as próprias mãos é atroz, fazê-lo através de um drone (ou um “plano de ajuste”) apenas um estatística.
Chesterton apresenta os riscos éticos da perspetiva divina em O martelo de Deus, um dos relatos do Padre Brown; Carol Red fai o próprio na sua adaptação cinematográfica de O terceiro homem, na famosa cena da nória de Wurselprater; e Ernst Jürger evidencia a relação entre a fotografía aérea e a desumanização. Mas Castelao… Castelao sente a tentação do próprio demo quando viaja de avião de Nova Iorque a Havana:
“O avión é un invento do demo. Por algo fai tanto bruído. Cruzar por enriba das ciudades e ver alá embaixo as xentes trocadas en formigas sempre foi unha invitación que nos fai o demo. Ve-la terra coma no mapa e trocar as realidades en abstraccións e os homes en elementos despreciables é unha invitación que sempre nos fixo o demo. Eu suponho que a torre de Babel é un mito, pero a invención do avisión é unha realidade que tem o mesmo siñificado transcendente. Foi o demo quen nos aconsellou voar por enriba das nubes e pagaremos cara esta superación.
Por algo os avión son aparellos que polo de agora serviron máis para destruír que para perfeccionar a nosa vida. Por algo os avión son principalmente máquinas de guerra, instrumentos de norte e exterminio.
Eu –que sain dos entullos dunha casa destruída polas bombas de aviación- non podo felicitarme de que o homoe voe enriba das nubes”.
Monocultura (monopólio, monarquia, monoteismo, monolinguísmo…)
Os bombardeios químicos da Galiza com tau-fluvalinato justificam-se pola Praga de gorgolho que ameaça o eucalipto, mas uma vez que se converteu o país numa gigantesca monocultura de eucalipto é natural que se produzam pragas de depredadores desta árvore, ou não se vem de construir o seu habitat ideal? Uma senhora de Xanceda contou a Mini e Mero um conto: “O rei larpeiro e as cereijas” (1), que há que ler como uma Formosa fábula agroecológica: Era um rei tão larpeiro tão larpeiro que ordenou plantar uma imensidade de cereijas para satisfacer o seu apetite, mas quando deram fruto, uma imensidade ainda mais grande de pâssaros papou-lhas todas. Sem ter em conta a lição, o governo chinês pretendeu exterminar os pardais que comiam as colheitas de grão no marco das suas políticas do Grande Salto Adiante. Quase o conseguem, mas também conseguirom uma enorme Praga de insetos que já nenhum pardal podia comer, e que arrasarom com os campos.
Os velhos de Loureda dim que a Praga do escaravelho da pataca (“os da gabardina”, chama-lhes minha avoa, não sei se com conotação política…) começou há décadas, quando as avionetas dos fabricantes de pesticidas os deitaram sobre as leiras. Curiosamente, os quíchua do altiplano andino, terra de origen da pataca, contaram-lhe a mesma versão a Xosé Ramón Mariño Ferro, quando fazia trabalho de campo em Bolívia. Teoria da conspiração ou não, suspeitar de escaravelhos paraquedistas demonstra que o campesinato intuía mui bem a lógica do capitalismo, sem falta de muita teoria. Parece ser que em Rio de Onor o escarvelho apareceu em 1944; em vez de individualmente a Praga foi combatida em concelho aberto, e os resultados melhoraram muito os das aldeias vizinhas (2), o qual confirma essa sábia sentença de Chesterton: “Os contos de fadas são verídicos não só porque nos explicam que os dragões existem, senão porque nos explicam que se os pode vencer”.
1. X.L.Rivas Cruz e B. Iglesias Dobarro, “O rei larpeiro e as cereixas”, Somos lenda viva, Lugo, Citania, 1996, pp.28-31.
2. Jorge Dias, Rio de Onor. Comunitarismo agro-pastoril, Lisboa, Presença, 1984 (1953).
Tecidos lilás
Em Guangdong, provincia do Sul da China, as mulheres tinham que suportar os matrimónios forçosos arranjados polas famílias, às vezes com homens que não conheciam até o mesmo dia da boda. As mulheres de Guangdong nem sequer tinham direito a herdar ou ter propiedades ao seu nome. Até que num bom dia, perdido na noite da história, criaram a Associação da Orquídea Dourada, comunidade rebelde de mulheres em greve heterosexual. Conta Marjorie Topley, autora de A resistência ao matrimónio no Guangdong rural, que muitas orquídeas douradas floresceram no século XIX ao abeiro da emergente industria exportadora de seda. O setor contratava só mulheres, quem desta maneira obtiveram uma certa autonomia económica e, sobretudo, espaço de socialização feminino e proletário. Na pequena área onde se concentrava a industria da seda, destaca Topley, havia mais orquídeas douradas, mais “matromónios de mulheres” e menos pês vendados e infanticidios femininos.
Pequena indústria têxtil, mão de obra feminina, espaço de sociabilidade sem homens, autonomia económica e sexual… A fórmula chinesa recorda muito à instituição galega dos fiadeiros, talvez o espaço popular mais insistentemente perseguido polo poder eclesiástico-estatal. Na Descripción de los estados de la casa de Monterrey en Galicia González de Ulloa lamentava-se: “O comércio do outro sexo é comúnmente com linho, que beneficiam e vendem em rama ou em teia. É laborioso, sem dúvida, mas útil, se a iso não se engadisse muitíssimo de delinquente. Guardo silêncio por decoro devido às senhoritas mulheres” (1). Na edição moderna do livro Fernández Oxea aponta com desagrado: “Sem dúvida as censuras que o autor cala, referentes ao cultivo do linho, iriam dirigidas ao que acontecia nos fiadeiros, que certamente não eran cousas mui edificantes” (2). As galegas, contudo, perpetuaram um espaço de socialização feminino que a Europa medieval mitificara nos Evangelhos das rocas. Na proteção do gineceio as mulheres fiavam cumplicidades e imaginavam outros mundos além do patriarcal. As heroínas das canções de roca rompiam com as leis do autoritarismo masculino; belas e rebeldes, como orquídeas carnívoras.
1. P. González de Ulloa, Descripción de los estados de la casa de Monterrey en Galicia, (prologado e anotado por J. R. Fernández Oxea), Madrid, CSIC, 1950, p. 28.
2. Ibidem, p. 28 n. 9.
O devir-melro de Manuel Quiroga
1. Após a queda da Comuna de Paris, brutalmente reprimida, Gustav Courbet apenas pinta naturezas mortas. O combatente reprega-se nuns óleos que elogiará André Fernigier: “algumas dessas maçãs… prodigiosas, colossais, extraordinárias no seu peso e sensualidade, são mais poderosas e encerram mais ‘protesto’ que qualquer pintura política” (1). Apenas há que ver os quadros pintados por Renato Guttuso durante os ani de piombo para entendê-lo: aquelas melancias vermelhíssimas, explosões de água doce e componesa, aquela profussão de verduras e hortalizas no mercado de Palermo, são um manifestó comunista mais forte e evidente que todas as consignas do Partido.
2. Entre os quadros de Courbet, um misteriosamente desaparecido, L’Origine du monde, não menos misteriosamente reaparecido no apartamento de Lacan. Uma vulva em primeiro plano, de uma mulher da que nem tão sequer se vê o rosto. Para Zizek, “a calelha sem saída (ou ponto morto) da pintura realista tradicional cujo objeto último –nunca plena e diretamente mostrado, mas sempre aludido, presente como uma sorte de ponto de referência subjazente, a partir polo menos, da Verwaisung de Albert Dürer- era, obviamente, o corpo feminino plenamente sexuado como objeto final do desejo e da contemplação masculinos” (2). Para muitos, simples pornografia. Porém a pornografia não tem nada de simples. No século XVII é um gênero de oposição –Diderot foi encarcerado por pornógrafo em 1749- e aginha se tornará o grande referente da autonomia em todos os campos, algo que, diz Jordi Claramonte, “não passou em absoluto inadvertida para os críticos da modernidade: não em balde os experimentos musicais do joven Shostakovich já meados os anos 30 do século XX forom qualificados unanimemente polo New York Times e polo Pravda, singular gesta, como pornografia” (3).
3. Os quartetos de Beethoven, literalmente, não dizem nada, mas nelas Igor Stravinski soubo ouvir a revolução com toda claridade: “os quartetos são uma carta de direitos humanos, e uma carta perpetuamente sediciosa, no sentido platónico da subversidade da arte… Os quartetos encerram um alto conceito de liberdade… que vai mas lá e inclui o que o próprio Beethovem queria dizer quando escreveu que a sua música podia “ajudar à humanidade doída”. São uma medida do homem… e uma parte da descrição da qualidade do homem; a sua existência é uma garantia” (4).
4. Stravinski, quem também foi amigo de Jesus Bal y Gai, tratou em Paris o excecional violinista ponte-vedrês Manuel Quiroga. Desenhado por Castelao e homenageado pola gente de Nós, o músico não se decidia a intervir no galeguismo político. Numa ocasião, convidado a dar um concerto na casa de um conde catalão, Joan Ventura e Francesc Cambó preparam-lhe uma encerrona. “Era verdade que os galegos se entudiasmavam como nunca ao ouvi-lo?”, inqueriam-no, “era-o que o acompanhavam, vitoreando-o depois de cada concerto? Mentiam os informes ao dizer que quando chegava à Galiza o povo inteiro acudia a esperá-lo e levava-o a hombros?” Pois então está você na obriga de fazer-se político, de ingresar nas fileiras do regionalismo galego… Você, com essa influência nas multidões da su aterra, pode ser-nos mui útil”. Forçaco a posicionar-se, Manolo Quiroga salta com um “se como galego tenho alguma aspiração secreta, é a de ser uma espécie de melro”. Mágoa que tão formosa defesa da autonomia subversiva da arte, na linha de Lukács e Marcuse, se auto-desautorizara quando se pujo de lado dos golpistas em 1936. Foi então quando se quebrou o devir-melro de Manuel Quiroga, quem teria que deixar de tocar por uma grave doença.
1.Cit. em Robert Fermer, Gustav Courbet, Paris, Bibliothèque des Arts, 1969, p. 110.
2.Slavoj Zizek, El frágil absoluto, Valência, Pre-Textos, 2002, p. 50.
3.Jordi Claramonte, Lo que puede un cuerpo. Ensayos de estética modal, militarismo y pornografía, Murcia, CENDEAC, 2009, p. 66.
4.Igor Stravinski, The New York Times. Review of Books, 24 de abril de 1969, p. 4.
Pier Paolo Pasolini
Fam-se agora quarenta anos de assassinato de Pasolini numa praia de Ostia, vitima da mesma intolerancia que o perseguira toda a vida, mesmo entre os seus companheiros: “Não me assombra a diabólica perfídia democristã, senão a vossa carência de humanidade (…). A pesar de vos continuo e continuarei a ser comunista, no sentido mais autêntico desta palabra”. Pasolini ajudou-nos a reconhecer o modo-de-vida camponês como práxis revolucionária, invitoua “recuperar para a revolução algumas afirmações reacionárias”, detetou com sensibilidade infalível o consumismo como o fascismo do nosso tempo e, com algo de retranca, advertiu-nos que demasiada liberdade sexual nos convertiria em terroristas, porque para Pasolini o amor sim significava a destruição desta sociedade.
Entre os seus discípulos, um inesperado, o futebolista de Casarsa della Delizia Ezio Vendrame: “Pasolini dixo uma vez que tras a literatura e o erotismo, o futebol era o único capaz de gerar emoções genuínas. Mas o futebol tal e como ele e eu o entendiamos”. Para Vendrame ganar era secundário, e sempre antepunha a diversão do jogo ao resultado, a vida ao calcio. “Encantava-me jogar ao futebol mas não gostava de ser futebolista”. Na sua etapa no Vicenza, os siareiros organizaram-lhe uma homenagem de que não pudo escapar sem dirigir-lhes umas palavras, um discurso autodesmitificador que deveu deixar os tittusi com a boca aberta: “Em primeiro lugar dou-vos as graças por todo o amor que me demonstrades, mas parece-me desmesurado. Não sei fazer nada melhor que vós. Não sou um cirurgião que salva vidas, nem um choiante que trabalha até à extenuação para chegar a final de mês. Sou um afortunado e é por isso que não entendo tanta admiração. Temos que inventar alternativas para as tardas dos domingos. Ide ver um bom filme, lede um livro, ficade em casa para botar um bom foguete. Foder, não podemos viver só para o futebol”.
O leitor de Pasolini, e também amigo do poeta Piero Ciampi, dedica-se agora a treinar rapazes que jogam futebol. A cada nova tempada, apresenta-se nos vestiários e começa a dar o mesmo discurso: “Queridos filhos, deitade na sanita as vossas Playstation e encerrade-vos no banho a ler uma boa banda desenhada. Quando saiades, namorade-vos de uma moça guapa: o sexo com um mesmo está bem, mas com outra pessoa é muito melhor…”.
1. Carta de 31 de outubro de 1949.
2. Citações extraídas de Oriol Rodríguez, “El calciatore que prefería vivir”, Panenka #39, março 2015, pp. 92-07.