“Capitalism, your millennia are numbered” (Num grafite)
Se “tudo bem”, escreve Voltaire no prefácio de seu Poème sur le désastre de Lisbonne, é tomado no sentido absoluto e sem a esperança de um futuro, então essa palavra “não passa de um insulto aos males de nossa vida. O “tudo [está] bem” supõe, com efeito, que o sofrimento individual é necessário para a felicidade do todo. Que a fecilidade da totalidade prevalece, portanto, sobre a do indivíduo (“todos os seus males são bons nas leis gerais”). Nada é de graça, tudo tem o preço da dor. Há uma dor do agora que anuncia a recompensa de amanhã. O todo terá sua recompensa amanhã, graças à dor atual de um fragmento da totalidade: “infortúnios particulares fazem o bem geral; então, Pangloss ensinou Candide, quanto mais infortúnios existem, melhor tudo acontece” (Candide, cap. IV) O Bacharel de Paris também garantiu ao selvagem da Guiana:”No passado, uma dúzia de milhões foram exterminados: mas era para os outros voltarem a si” (Entretiens du Sauvage et d’un Bachelier, Second Entretien).
Não é apenas um otimismo, observa Voltaire. Basicamente, é mais como uma “fatalidade desesperada” (Homélies prononcées à Londres em 1765, premièr homélie, “Sur l’atheisme”). O otimismo teórico de “está tudo bem agora” é acompanhado pelo pessimismo prático de “não há nada a esperar do futuro”. Não há nada a fazer: tudo é feito, pois está tudo bem. “Não tem nada melhor para esperar” (ibid.).
A passividade paralisante de “tudo está bem” não podia deixar de irritar ao Voltaire pois “tudo está bem” talvez contenha uma versão não dogmática do núcleo de toda religião sacrificial: tudo A dor pode ser necessária, pois tudo tem seu preço: o sangue resgata os erros cometidos se o “tudo está bem” pressupõe que todos são culpados e que a dor nada mais é do que uma punição merecida. Então, toda dor e violência podem ser justificadas, pois desempenham um papel, nem sempre conhecido no destino e na salvação dos crentes .E não é por acaso que nestes tempos de pandemia se recuperaram termos próprios do salvacionismo teológico ou com ressonâncias dele como “oportunidade” ou do que vem a tempo ou a propósito e é apropriado. Olhem a maré de recomendações de saúde e esporto para o tempo de confinamento como um sintoma mais de nosso tempo, caracterizado por um chamado permanente para fugir do corpo e de suas fragilidades. Observem como discursos e comunicações expulsam a palavra morte expulsando tudo o que significa aceitar seu próprio desassossego e angústia ante uma existência em que todos estamos de alguma forma ameaçados. Neste ponto, a questão é saber se mantendo aquela crença ou atitude do “tudo está bem” que geralmente é assumida sem muita oposição, ainda é possível uma nova direção do olhar que dê origem a outra atitude na qual abrir a possibilidade de perguntar-nos sobre o essencial. As condições de confinamento podem servir para nos perguntar novamente sobre o que é essencial para mostrar os limites do essencial do mundo, conforme descrito e reproduzido na versão neoliberal do capitalismo. Talvez as condições de confinamento nos devolvam um certo sentido da intempérie e sirvam para perguntar-nos sobre o que é essencial. Aliás, mostrar os limites do inessencial do mundo tal como é descrito e reproduzido na versão neoliberal e financieira do capitalismo.
Quando a ideia de totalidade começar a esborralhar, atormentada pela experiência invasiva e intensa da dor individual e de casa um (que é a única dor que existe, mesmo quando compartilhada), ela será a primeira na economia da felicidade de cada pessoa quando essa dor parece inevitável (a dolorosa cura da doença, o treinamento ou a disciplina do corpo para adquirir uma habilidade apreciada, etc.), precedendo, exceto por exceções, o interesse conhecido do geral e do coletivo ou, em todos os casos, para o bem desconhecido da totalidade do real.
Há uma segunda rejeição em Voltaire: da dor institucionalizada pela justiça de seu tempo. Em 1766, a publicação do livro Beccaria Dei delitti e delle pene (1764) desperta em Voltaire o desejo de escrever um Comentário sobre a dupla barbárie e o desprezo doutros mantidos nos processos judiciais de seu tempo. Mas essa segunda rejeição nos levaria a outros caminhos. Vamos ficar aquí com o que Voltaire significa ser livre: “não é querer o que se quer, mas fazer o que se quer”. A vontade, como poder de escolha, é sempre determinada pelas ideias do entendimento “, nós necessariamente queremos, como consequência das ideias que nos foram apresentadas. “Se nossa vontade quisesse uma coisa sem razão (a vontade de indiferença), se nossa vontade fosse nossa própria razão”.Mas um ato de vontade de acordo com Voltaire é sempre determinado por ideias, a alegada defesa da liberdade de vontade não tem sentido: sempre há o poder de querer.
O “tudo está bem” é no nosso presente o discurso apocalíptico dos administradores da razão para tirar-nos para as mans do irreversível (no noso caso na doença ) e que nada se pode mudar. Nesse sentido, “tudo está errado” é o resultado inesperado da fábrica ideal neoliberal de “tudo está bem”. É a homogeneidade tirânica do mesmo, que a pandemia (epidemia generaliza, que afeta a todos) favorece. Porém, Voltaire já alertou que a desigualdade social e económica, culpada de tantas “misérias” e “dependências” ligadas à limitação da liberdade sofrida por muitos homens em favor de alguns, é aceita apesar de tudo como um mal necessário que contradiz muito profunda e muito diretamente a liberdade proclamada nas democracias empraçadas. Por isso,embora a priori a pandemia afete a todos nós, ela pode levar ao aprimoramento e à regressão dos sistemas democráticos, ou seja, a uma maior perda ou limitação da liberdade, entendida como o poder de fazer o que nossa vontade determinou, mesmo na aceção de Locke, quando a ação desejada (sua atuação) não “depende” da vontade do sujeito em si, mas de outro sujeito (ou de outra causa externa).Sendo igualdade e liberdade simétricas (em Voltaire, igualdade refere-se sobretudo ao corpo e liberdade refere-se sobretudo ao pensamento). A defesa dos direitos humanos se referirá à igualdade de corpos e à desigualdade de pensamentos. Todos os corpos são iguais (na dor, no prazer, nas necessidades, na morte) e nenhuma violência tem o direito de ser exercida sobre eles para obrigá-los a obedecer à vontade dos outros. Todos os pensamentos podem ser iguais e nenhum pensamento tem o direito de se impor aos outros para apagar ou censurar suas diferenças. Nenhum, exceto a mudança na própria perceção, por exemplo, começar a descobrirmos que o mito do desenvolvimento esta-nos estrangulando. É por isso que Adorno foi capaz de dizer que “o tudo é falso”.
A capacidade de resposta à pandemia mostra que depende das circunstâncias de cada um de nós para além dos lugares comuns daqueles que pregam que não há fronteiras, porque o andazo colocou, se possível, mais à vista , agravando-as todas as desigualdades que já sabíamos. Já na placa de observação do microscópio, não há vírus fora de contexto. O coronavírus entrou na Itália com força devido ao turismo e às relações históricas com a China, mas também havia outras rotas, como as peregrinações históricas no Médio Oriente. A pandemia contém muitos e diversos fluxos, da globalização estrita de bens a outros que nos mostram uma globalização desigual e incoerente em que a mobilidade não é a mesma para alguns e para outros; não é o mesmo para aqueles que esperam atravessar o Mediterrâneo de sul para norte (refugiados,migração de fome, etc.) que para aqueles que o atravessam longitudinalmente num cruzeiro ou num navio militar.
O compartilhamento de informações sobre saúde se tornou um requisito moral da globalização e demonstrou que a dependência de certos produtos com baixo valor agregado, como uma simples máscara, se ten tornado relevante para não paralisar a economia dum país. A era da globalização é uma oportunidade para uma coisa e seu oposto. A pandemia mais globalizada revelou quanto foi carregado o corpo com dependências: sem ir mais longe, a economia depende mais do que foi confessad e se mostrou indissoluvelmente ligada aos próprios corpos, quer explorando ou mobilizando sem concessões, quer retendo e postergando em muros e campos murados, quer tratando-os como uma mera coisa física a ser auto-consumida, quer enfin confinando-os para nos salvar melhor.
Voltar á normalidade, esse não foi o problema? Confinado na natureza absoluta do agora, aumentada, se possível, pelo sofrimento ou pela proximidade da morte, o corpo procurará apesar de tudo a normalidade. O que é mesmo lógico depois da experiência da dor. Mas devemos desconfiar das certezas advindas do trauma e da experiência da dor, também das verdades fáceis e superficiais (“fatalidade desesperada”) nas quais a inibição instintiva e narcísica parece ser a panacéia de todos os dramas culturais ou espartilhos ilustrados, na medida em que confere ao cientista uma dimensão salvífica à qual nosso tempo se acostumou, com ou sem razão. a duvidar algumas vezes (porque é verdade que o cientista nem sempre ou talvez nunca está isenta de ideologia ou conhecimento de sedução ou da mesma maneira que a pessoa seduzida não está necessariamente em “erro” nem o preconceito “erra”). Devemos desconfiar da ideia sacrificial da verdade sem paliação, ou o uso de metáforas como a guerra e a noção de que do negativo se alcança o positivo (a soma das contradições, quanto pior, melhor,etc) e a irrupção taumatúrgica de que natureza vai colocar as coisas em seu lugar, fazendo o trabalho por nós.
Devemos retomar criticamente uma “normalidade” (leia aqui desigualdade) naturalizada. Como preservar um olhar que desnatura o que tem permeado nossa cultura com as ferramentas da sedução, o que levou Baudrillard a se perguntar no final do século passado sobre o dia seguinte ao “fim da orgia”. Se ainda não nos tornamos definitivamente amnésicos, confinamento deve trazer de volta a intempérie. E o céu aberto não é a normalidade de regimes “criptoautoritarios” mas a olhada de não acreditar que o produtivismo sem límite seja normal, nem é normal uma democracia que,mesmo quando funciona sob uma constituição como os espanhola e outras ao seu redor, para concorrer a algumas eleições, deva ter milhões ou ter o apoio de uma burocracia partidária e de uma casta de negócios, imobilizando a distribuição de poder, que evite qualquer transformação. Nem é normal esse tipo de niilismo reativo, cujo desenvolvimento e elevação vai dos farpados muros fronteiriços à promessa de controle informativo-computacional universal aplicado cada vez mais aos corpos, ao interior de cada casa, em cada país com a razão, ou a desculpa, de ameaça de terrorismo ou pandémicas.
Porque, como Voltaire nos avisou,o que é real (“tudo está bem”) é apenas a ordem existente que os “vencedores” (como Benjamin diz nas Teses sobre o conceito de história) consideram racionais e desejam manter. Para a computação aplicada á medicina epidemiológica, é verdade que é útil saber como as pessoas estão confinadas e como elas se movem durante uma pandemia; mas apenas as pessoas decidem o que fazer com a computação. Lembre-se dos elementos-chave do comunismo original eletricidade + soviete – um conselho local ou de distrito eleito soberano- em relação à “normalidade” naturalizada de “tudo está bem”, na medida em que serve para construir relacionamentos livres do domínio. O confinamento talvez traga de volta a questão da saúde e sua ancoragem tradicional em uma conceção imunológica, quer como salvadores, quer como potenciais criminosos do outro, e um demanda de segurança total que nada e ninguém nos pode garantir mas assim que sairmos do andaço, isso poderá alimentar desvios autoritários a troca de quem promete segurança socia. Tudo isso balançado entre um intre prévio desconfiança institucional e o seu escorregamento entregue à maior das credulidades. Confinamento nao é sequestro, mas um dos preços para sarimos do isolamento é continuar entregando dados (seguimento, controle e rastreabilidade) a troca de quotas e treitos de mobilidade. E como sair do isolamento ou da vida digitalizada é viver e fazer vida em comum, estamos dispostos a trocar? De fato, o comércio eletrônico e a computação em nuvem experimentaram a plena fruição dos corpos confinados dos quais ja estavam extraíndo informações,desde o início do século, á confiada maneira amazónica.
O que é saúde? Se tudo não estiver certo e puder estar errado, talvez esse salto em aberto nos permita pensarmos de maneira diferente e não apenas da maneira dicotômica o corpo saudável ou doente, mas pensarmos o corpo encarnado en uma maneira de alimentar, consumir e producir social e não apenas asisar em como cada um será salvo. Afinal, quem é o “nós” em relação á saúde? Quem se sente desafiado por essa pergunta? Aqueles que desprezaram e desmontaram serviços de saúde públicos que consideram desnecessários? Por que deveriam os ricos justificar, legitimar ou fazer promessas de boa vida aos outros ou defender serviços públicos de saúde que não precisam porque para eles “tudo está bem”?
Talvez tenhamos que sair do “quadro mental” moralizante e apreender antes o problema pensando que os serviços públicos não se devem à generosidade dos ricos nem emergiram duma suposta Europa de solidariedade que funcionaria como prótese última ou deus ex machina. No entanto, tenhamos em mente a dialética hegeliana do senhor e do escravo e o seu instinto mútuo de dependência recíproca ou de sobrevivência. Imagine-se, um e outro, como aprendizes.