Um polvo (à feira) enriba da mesa (de debate)

O extraordinário eco jornalístico obtido pola petição do alcalde do Carvalhinho para que a Real Academia Galega incorpore à norma oficial da língua galega a forma “pulpo” é, antes de mais nada, umha demonstração de que às vezes a repercussão dumha idéia – ou, como neste caso, dumha ocorrência – está  em relação diretamente proporcional com a sua futilidade, extravagância e falta de substância. Que os mesmos médios que sistematicamente omitem os debates culturais e lingüísticos de fundo que se produzem no nosso país sejam os primeiros a promocionarem este tipo de notícias já di muito sobre a sua intencionalidade última.

Mas fagamos o exercício dialético de tomar em sério o assunto, não tanto polo que desde terras do Arenteiro se solicita senão como mostra dumha série de debates sobre a língua que, ao contrário da anedota cefalópoda, tenhem muito interesse.

Quatro motivos para rejeitar a proposta do IEC de plano

1. Primeiro a conclusão, despois o estudo. Argimiro Marnotes (PP), o alcalde do Carvalhinho, tem-no claro: o cliente sempre tem a razão. E como cliente que encomenda ao Instituto de Estudos Carballiñeses (IEC) o estudo da qüestão, pretende facilitar-lhe o trabalho estabelecendo a priori a conclusão à qual deve chegar. Obviamente, nem a RAG nem nengum organismo ou indivíduo com um mínimo de respeito pola ciência pode tomar em sério um estudo que nasce assi, polo que o único que realmente está em causa é a credibilidade do próprio IEC.

A norma de qualquera língua, por definição, não inclui os dialectalismos, polo que careceria de sentido solicitar à RAG que acolhesse especificamente uns e não outros

2. Mesmo que o IEC demonstre o indemonstrável, a petição segue a ser contraditória e incoerente. Imaginemos, ainda que só seja por um instante, que o IEC consegue demonstrar que existe umha variante dialectal legitimamente galega na comarca do Carvalhinho (e eventualmente noutros territórios do país). Pois bem, ainda nesse caso, a petição seguiria a ser absurda: a norma de qualquera língua, por definição, não inclui os dialectalismos, polo que carece de sentido solicitar à RAG que acolha especificamente esse e não os centenares de exemplos mais que – apesar de serem indiscutivelmente autóctonos e legítimos na fala – se registram em cada canto do território galego, sem por isso passarem a fazer parte do corpus de referência do galego.

3. Um jogo com cartas marcadas. O demandante apela à RAG, num reconhecimento implícito da sua autoridade na matéria. Porém, em boa lógica isso significaria duas cousas: que deveria assumir a forma "polbo" como única válida, já que essa é a postura oficial da RAG; e que, no pior dos casos, aceitará qualquera ditame que se emita sobre a sua petição. Porém, o afouto alcalde carvalhinhês não cumpre com nengumha dessas razoáveis condições, até ao ponto de que declara abertamente que só aceitará umha resolução favorável, mesmo sem nem sequera dispor do tal informe que disque fundamentará a sua proposta. Enfim, estamos ante umha burla em toda a regra.

4. Umha hipótese sem aval lingüístico nem histórico. Numha discussão como a presente, os argumentos lingüísticos deveriam estar em primeiro plano, mas rara vez ocorre assi: num país em que, quando hai um acidente ferroviário, nas tavernas discute-se em detalhe a respeito das vantagens do ERTMS sobre o ASFA; em que, quando se debate sobre terrorismo yihadista, nessas mesmas tavernas se escuitam sisudas análises sobre a diferença entre árabes, islâmicos e islamistas; ou em que se analisam em detalhe as conseqüências econômicas do processo concursal dum equipo de fútbol, defendendo porcentagens e prazos com fervorosa precisão; nesse mesmo país, quando se fala de língua – e é bom que o debate esteja nas ruas e não restrito ao âmbito acadêmico – quase ninguém fai o menor esforço por divulgar conceitos essenciais para abordar o tema com um mínimo rigor.

Quase ninguém, porque sempre hai algumha exceção. No caso que nos ocupa, a melhor argumentação lingüística a favor de considerar seriamente a (eventual) proposta do IEC é a publicada por Afonso Monxardín e que convido a ler íntegra e atentamente.

É notável e mui meritório o esforço de Monxardín por aventar possibilidades explicativas diferentes da óbvia, i.e. a interferência léxica do espanhol ou, dito por palavras mais correntes, o puro e simple castelhanismo. Porém, a hipótese segue a fazer águas por demasiados buracos – e isto não é demérito del, desde logo, senão de quem pretenda no futuro defender “pulpo” como animal fluvial de companhia –. Vejamos as principais lagoas e inconsistências dumha hipotética argumentação em favor do caráter galego da voz “pulpo”:

4.1. A evolução semiculta (POLIPU– > *polpo > *pulpo) é possível em termos mecânicos, mas falta explicar um aspecto essencial: que sentido teria umha evolução semiculta numha voz tão quotidiana, referida ao entorno natural e à gastronomia popular, âmbitos onde a evolução patrimonial é regra praticamente unânime, e mais quando os semicultismos costumam proceder de áreas com umha forte influência institucional (léxico religioso ou jurídico, p.ex.) que em absoluto tem aplicação a este caso?

4.2. Dado que no resto do país está fartamente documentada a forma “polvo/polbo”, haveria que explicar as causas dumha eventual exceção territorial a essa evolução. Que a vogal tônica seja um u e não um o não presenta complicação: é resultado dumha metafonia, mui comum na evolução do latim ao galego, e em nengum caso justifica um suposto semicultismo, como prova o dialectalismo “pulbo”. Mas a conservação do –p– latino em posição intervocálica não tem umha explicação plausível.

4.3. Para legitimar “pulpo” como forma dialectal do galego, seria necessário documentar a ocorrência dessa (suposta) variante em períodos anteriores à extensão do espanhol, i.e. antes do s. XIX e da constituição de Espanha como Estado-nação, com toda a aparelhagem que isso leva consigo e mui notadamente com a expansão da língua espanhola através do sistema escolar. Pois bem, na maior base de datos disponível sobre o corpus histórico do galego, o Corpus TILG, a forma “pulpo” só aparece pola primeira vez em 1853, concretamente n' A gaita gallega de Xoán Manuel Pintos, e ademais – repare-se bem nisto, porque é importantíssimo – fai-no em alternância com “polbo”, o que demonstra sem margem de dúvida que estamos ante um par forma própria/forma alheia ou forma galega/castelhanismo. A essa altura, ademais, a forma “polbo” já leva mais de um século documentada e já fora três vezes – as duas primeiras, polo padre Martín Sarmiento –  dicionarizada baixo a grafia “polvo” (como nos lembra o Dicionario de Dicionarios da Universidade de Vigo). E é seguro que, à medida que avance o processo de informatização do nosso repertório bibliográfico, essa distância se alargará em várias centúrias mais.

4.4. O suposto exemplo dialetal de Aveiro, traído à tona por Monxardín, não serve de muito para o caso. Porque haveria que ver se hai umha multiplicidade de registros ou se é umha ocorrência pontual, e neste caso se se trata dum castelhanismo (algo para nada insólito no s. XVIII português); porque entre Aveiro – que cai fora da Gallaecia histórica – e O Carvalhinho hai a suficiente distância geográfica e lingüística como para estabelecer um paralelismo mecânico sem as devidas cautelas; e porque os fenômenos dialectais que se produziram e produzem em Portugal afetam ao galego que se fala ali, mas não necessariamente ao que se fala aqui.

Brevíssimo excurso: só faltaria que se apele às variantes portuguesas para promover a introdução de castelhanismos na norma da RAG, despois de mais de três décadas de esforços por parte dessa instituição no exercício e na justificação do diferencialismo a respeito da norma internacional do galego, como prova a escolha da própria grafia "polbo" em lugar de "polvo", num exercício de anagnórise seletiva radicalmente absurdo (e que dá lugar ao uso diferencial das grafias "b" e "v" no galego a respeito do português), mas cuja crítica não é o foco deste artigo.

4.5. Engada-se a todo o anterior que a forma “polvo/polbo” está não só documentada historicamente, senão tamém presente na fala popular de diferentes comarcas do país e mesmo tem reflexo na antroponímia (através de alcumes como Polveiro/Polbeiro ou Pulveiro/Pulbeiro), e entenderá-se a extrema dificuldade de justificar para “pulpo” qualquera outra origem que não seja a dumha interferência lexical do espanhol.

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Aceitar a legitimidade dumha forma descaradamente alheia à nossa língua abriria a porta a umha enxurrada de vozes semelhantes, num caminho que levaria irremissivelmente à configuração do galego como umha língua crioula

Portanto, mentres não se dê umha resposta satisfatória a todas estas exigências lingüísticas mínimas, não hai lugar para tomar em sério a proposta de considerar “pulpo” como umha palavra galega, por mais popular que seja o seu uso e mais extensão que tenha ganhado nas últimas gerações. Pretender ignorar que estamos imersos num processo de substituição lingüística e que isso tem reflexos no léxico da língua em retrocesso equivale a assinar a condena definitiva do galego por antecipação. E aí radica o principal problema deste conto: aceitar a legitimidade dumha forma descaradamente alheia à nossa língua abriria a porta a umha enxurrada de vozes semelhantes, num caminho que levaria irremissivelmente à configuração do galego como umha língua crioula, incapaz de atingir a normalidade social e de veicular os usos mais prestigiados.

É verdade, como lembra o próprio Monxardín noutro post, que isso não seria nengumha novidade, já que a atual norma da RAG aceitou outros castelhanismos sem o menor pudor, relegando ao esquecimento vozes patrimoniais galegas. Mas a linha a seguir deve ser – e nisso hai um consenso praticamente absoluto, à margem de discrepâncias gráficas – exatamente a contrária: desandar esse caminho e fomentar a recuperação das formas que, como no caso que nos ocupa (“polvo/polbo”) estão mui vivas ainda no galego oral – especialmente, neste caso concreto, nas zonas costeiras – e consolidar a sua extensão como formas normativas. Nessa linha, recomendo vivamente a leitura desta lúcida reflexão de Xoán Lagares e engado umha anedota da minha própria colheita: numha recente visita a Ourense, comprovei que as persoas hispanofalantes nessa cidade dim “Rua do Comércio” no médio da sua fala em espanhol: umha prova inequívoca de que umha ação institucional coerente tanto pode promover a recuperação espontânea da palavra “rua” como por deixadez manter o castelhanismo “calle”. E quem di “rua” vs “calle”, di “polvo” vs “pulpo”.

E com isto, deixo-o por hoje. Num segundo artigo, que publicarei nos próximos dias, convidarei-vos a umha análise dos prejuízos lingüísticos subjazentes à proposta do alcalde carvalhinhês, não sem antes lembrar umha frase de Daniel Castelao, cujo aniversário do passamento celebramos nestas datas: "O idioma imposto non logrou matar o seu idioma natural; pero logrou degradalo". Setenta anos despois de que Castelao escrevesse essas palavras no seu Sempre en Galiza, ainda segue a ser necessário repetir o evidente – sinal inequívoco dos muitos erros que cometemos e que devemos revisar, mas certamente não será somando outros novos e mais grotescos como o conseguiremos.

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