A agenda de Ana Pontón

Ana Pontón, nunha intervención recente no Parlamento galego © Parlamento de Galicia

A Camilo Nogueira, que soube compreender que o presente é a parte do futuro que nos toca

A angueira consiste desta vez em formular a agenda renovadora exigida polos 310.000 votos confiados ao BNG nas últimas autonómicas. A magnitude do apoio social concitado reclama o compromisso ineludível de satisfazer como é devido à quarta parte do eleitorado galego

Agenda, ou angueira, vocábulos aliás muito próximos como confirmamos no Estraviz; angueira: “quefazer, cuidados ou negócios”, de *agendaria, tarefa pendente. A angueira consiste desta vez em formular a agenda renovadora exigida polos 310.000 votos confiados ao BNG nas últimas autonómicas de 12/07/2020. A magnitude do apoio social concitado — 23,8% do voto emitido, 19 deputados — reclama o compromisso ineludível de satisfazer como é devido à quarta parte do eleitorado galego.

O BNG passa bem dos cinquenta e vai para os sessenta, idade sobrada para exercitar o bom juízo e tentar consagrar-se como partido histórico, quer dizer, agente de transformaçom social duradoira. Superar o seu interminável período de latência opositora para converter-se em partido de maiorias passa por desembaraçar-se sem remorso daquela parte do património ideológico herdado que nom soube resistir o inapelável juízo do tempo. A tarefa pendente tem muito a ver com a dissoluçom de qualquer arcano reservado a iniciados.

As autonómicas de 2020 abrírom-lhe ao BNG umha inesperada janela de oportunidade graças a umha feliz conjunçom de circunstáncias como o colapso da esquerda alternativa — vítima da sua bisonharia e inconsistência — a acentuada debilidade do PSdeG — incapaz de superar a sombra tóxica do cesarismo localista, do dirigismo de Ferraz e da própria debilidade orgânica e programática — e como final, o inevitável declínio do ciclo Feijó por manifesto esgotamento do modelo. E ainda fica, como pano de fundo, o inevitável ocaso das epopeias simbólicas que obnubilárom os nacionalismos periféricos, vítimas da sua incapacidade para calibrar os limites objectivos do programa secessionista na Europa de hoje.

Sugerir-lhe-ia deitar no ponto limpo da desmemória os incómodos canfórnios veterotestamentários que o tempo foi acumulando no faiado ideológico: o parlamentinho de cartom, o estatuto nunca mais e a arcaica eurofobia de inequívoca raiz tardo soviética

O contributo específico do BNG a tam singular conjunçom de circunstáncias favoráveis consistiu mormente no atractivo persuasivo e empático do discurso de Ana Pontón, tam afastado das arroutadas retóricas habituais em outros tempos. Falar ao direito, sem exceder-se em condimento, casa bem com o duro prosaísmo da vida quotidiana. Agora vem o mais difícil, transformar umha audiência social heterogénea, assediada pola crise, céptica e acomodatícia por experiência, em agente social comprometido com um programa político realista e transformador. Um programa pedagógico exigente, em definitivo, apto para transformar a vigorosa consciência etnocultural latente em Galiza em decidida consciência nacional capaz de resistir o previsível embate da direita política, económica e mediática quando verificar o desafio aberto ao seu bem abastado feudo político.

Se Ana Pontón me permitir um conselho nom solicitado, sugerir-lhe-ia deitar no ponto limpo da desmemória os incómodos canfórnios veterotestamentários que o tempo foi acumulando no faiado ideológico: o parlamentinho de cartom, o estatuto nunca mais e a arcaica eurofobia de inequívoca raiz tardo soviética. A razom da limpa estriba em que todo o que nom for deitado fora tenderá a regressar no pior momento como veneranda relíquia inoportuna. E logo após, cumpre instalar o mobiliário renovado: o Parlamento como sede da soberania colectiva, o Estatuto como texto cifrado de direitos e aspiraçons, o horizonte europeu como janela aberta a um mundo complexo e inevitável. Se o nacionalismo nom é capaz de enche-las de contido, a quem podemos encomendar as nossas instituiçons de autogoverno?

A agenda deve ser ambiciosa, aspirante à hegemonia social e aberta a um horizonte confederal. Os tiques auto-referenciais e resistencialistas deveriam ser postos de lado de imediato; a estéril lógica binária [nós ↔ outros] ou qualquer hipótese de superioridade moral ou pureza genética em exclusiva, constituem dogmas incompatíveis com o princípio de livre concorrência imperante nos foros de deliberaçom onde se forja a consciência política. É nesta agora onde é preciso medir-se: as Cortes Gerais, o Parlamento Galego, os Plenos Municipais, a prática sindical, a presença activa na imprensa e nas instituiçons culturais. Castelao, Carvalho, Paz Andrade som as radiobalizas da Galiza emergente — o ideal plurinacional republicano, a estratégia reintegracionista para revigorar o idioma, a internacionalizaçom da actividade produtiva — e som as suas mensagens as que estamos obrigados a descodificar.

A agenda deve ser ambiciosa, aspirante à hegemonia social e aberta a um horizonte confederal. Os tiques auto-referenciais e resistencialistas deveriam ser postos de lado de imediato

Na realidade, a agenda de mudança já está aberta: o futuro da indústria electrointensiva, o resgate das concessons hidroeléctricas e da auto-estrada A-9, a conexom ferroviária com os grandes portos galegos e a alta velocidade com Porto e Lisboa, a revisom da desmesurada prorroga concedida a Ence e a certas concessons mineiras de elevado impacto ambiental, som assuntos que demandam calendário e mesmo um governo ao mando em Sam Caetano.

Três som os planos em que se projecta a agenda de futuro: a) um programa de políticas sociais, congruente com a nossa especificidade demográfica e social b) umha proposta soberanista actualizada e congruente com a nossa singularidade histórica e c) um programa de desenvolvimento económico ajustado às nossas potencialidades. Passar do enunciado ao facto vai depender do apoio social concitado polo trabalho político a realizar com ajuda de um gabinete técnico informado, capaz de estabelecer prioridades e contornar interesses contrapostos. Em matéria orçamentária, financeira ou de promoçom industrial, a falta de argumentos sólidos e cifrados é garantia de fracasso certo.

A primeira directriz é a mais fácil de formular: promover umha sociedade inclusiva através de um repertório explícito de políticas públicas na sanidade (com especial dedicaçom à atençom primária e domiciliária), na educaçom (desde o infantário à Universidade e à formaçom continuada), na atençom aos colectivos desfavorecidos e na promoçom habitacional, através de um plano plurianual de vivenda social e acondicionamento de áreas suburbanas.

A segunda, referida à transformaçom económica, deve evitar cair em formulaçons retóricas insubstanciais. Um bom exemplo é a reiterada léria da Banca Pública quando de facto se quer aludir a umha Agenda Financeira Pública operativa, como o ICO espanhol, o ICF catalám ou o IVF basco. Por aqui, imos tirando com o IGAPE, tam incongruente e limitado em meios e objectivos como esse corpo policial adscrito à Junta em 1991, arquitectado para escamotear o autêntico corpo policial galego com cometidos de polícia integral.

A agenda soberanista galega guarda um poderoso talismã infalível da nation building. Refiro-me ao imprescritível direito de Galiza a desenvolver sem inoportunas interferências o rico acervo linguístico e cultural partilhado com toda a constelaçom lusófona

A estratégia de renovaçom do tecido produtivo inscreve-se por fortuna nas directrizes e quadro financeiro comunitário da economia verde, as tecnologias digitais e as biotecnologias, às quais haverá que somar a indústria agrária, a pesca e a aquacultura e a imprescindível reformulaçom da nossa oferta e demanda energética. Neste esforço de reinvençom do tecido produtivo galego, é aconselhável nom perder de vista pioneiras análises orientativas como as oferecidas por dous reputados espertos na matéria, catalám um e basco o outro, por sinal1.

O terceiro vector é o mais delicado da agenda: a estratégia soberanista orientada a normalizar o status de Galiza como sujeito histórico nacional. O trajecto a percorrer demanda umha combinaçom de ambiçom e realismo que nom perda de vista o imperativo de reforçar a autoconfiança colectiva. O adversário é basicamente interno: o regionalismo timorato e servil fruto do inveterado centralismo clientelar. Cultivar por todos os meios os afectos pátrios2 contra o cepticismo e a impotência interiorizada é o caminho certo, sem ceder a querenças passadistas. A veneraçom acrítica ao Sempre em Galiza, por exemplo, pode chegar a ser contraproducente na medida em que esqueça o viés temporal. Afinal, o Sempre em Galiza é filho directo da esperança falida na restauraçom republicana e do alento perdido da Sociedade de Naçons (Suíça: 1920-1946) promovida por T. W. Wilson. Em política, acertar na diagnose do contexto histórico é um autêntico imperativo categórico.

Por fortuna, a agenda soberanista galega guarda um poderoso talismã infalível da nation building. Refiro-me ao imprescritível direito de Galiza a desenvolver sem inoportunas interferências o rico acervo linguístico e cultural partilhado com toda a constelaçom lusófona. Somos hispano-portugueses por história, radicalmente ibéricos em consequência. A actualizaçom deste direito inalienável pende neste momento da integraçom efectiva da Galiza nos foros de cooperaçom internacional da lusofonia, em especial na CPLP (1996), na qual aliás Espanha já se tem candidatado a título de aderente. Tentar entorpecer a aspiraçom galega iria em detrimento tanto do direito da Galiza a desenvolver a sua cultura originária como da plena participaçom hispânica, extensível ao continente Sul-Americano. De entrada, será preciso vencer a previsível resistência da Administraçom espanhola, e o seu eco reflexo na portuguesa, com a mediaçom, chegado o caso, do Parlamento Europeu. Confiemos por umha vez no bom juízo da diplomacia ibérica à qual Galiza poderia concorrer com a inapreciável experiência do IGADI (1991)3, esse projecto digno de um Paz Andrade.

Depois de quarenta anos de autonomia, chegou a hora do autogoverno, sem mirar atrás, porque em política, as oportunidades desperdiçadas evaporam-se depois de abertas como os alimentos perecedoiros

Esperamos que os trezentos milhares de votos que soube convocar Ana Pontón, sirvam para quebrar o malfado que arrastou o BNG desde o seu nascimento, na I Assembleia em Riazor de 1982, até a sua caída na XIII Assembleia de 2012 trás trinta anos de árdua acumulaçom de forças.

O rumo aponta agora para a Galiza naçom europeia; na esteira do Plácido Castro na IX Conferência de Nacionalidades Europeias (Berna, 1933), de Castelao no Congresso de Europa (A Haia, 1948), de Camilo Nogueira no Parlamento Europeu (1999-2004). É a nossa melhor tradiçom perante a Galiza como tarefa reclamada nas passadas eleiçons.

Depois de quarenta anos de autonomia, chegou a hora do autogoverno, sem mirar atrás, porque em política, as oportunidades desperdiçadas evaporam-se depois de abertas como os alimentos perecedoiros.

 

Notas

1 https://www.almendron.com/tribuna/la-oportunidad-de-una-apuesta-industrial/

https://www.almendron.com/tribuna/la-oportunidad-de-una-apuesta-por-el-talento/

2 Ramón Villares: Identidade e afectos pátrios (Galaxia, 2017), Galicia. Una nación entre dos mundos (Pasado & Presente, 2019)

3 Instituto Galego de Análise e Documentación Internacional

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