A guerra controversa

Dominio Público

O bombardeio diário de notícias da guerra de Ucránia, que apenas dura um semestre e parece já interminável, lega-nos umha morea de crónicas e imagens, algumha tam comovedora como a do pai ajoelhado ao pé do filho morto aos treze anos num bombardeio mentres esperava o ónibus. A absurda morte do adolescente ilustra bem o sem-sentido da guerra.

No entanto, Europa acolhe com os braços abertos à legiom de refugiados ucranianos que já supera os 3,7 millhons segundo estimaçons da ACNUR do mês de Junho, 130.000 deles em Espanha. Unanimidade na Europa impassível aliás ante o fluxo de migrantes procedentes do escuro sul. Unanimidade europeia também na imposiçom dum pacote de sançons ao país agressor com oneroso impacto na própria economia dos sancionadores coligados. Europa reage com firmeza ante umha ameaça externa que julga existencial.

O conflito desborda de sobejo o ámbito europeu para situar-se no centro do cenário de confronto geoestratégico actual. Umha UE lamentavelmente amputada da sua conexom euro-asiática, um bloco anglo-saxónico liderado polos EUA com a Gram-Bretanha de fiel escudeiro, a imensa fronteira russa com o gigante chinês à espreita e os BRIC, por fim, com África de testemunha silenciosa.

O crasso erro de cálculo cometido pola cúpula do Kremlin no vao intento de reverter o implacável avanço da fronteira da OTAN depois da dissolução da Uniom Soviética em 1991 afinca no sentimento de rancor patriótico acumulado polo menosprezo internacional percebido desde aquele glorioso acto de assinatura por Estaline do Acordo de Potsdam em 1945 revalidado logo após com o seu ascenso à condiçom de potência nuclear e aeroespacial. A vingança ante a humilhaçom longamente ruminada estalou de improviso em 2014 descarregando a fúria acumulada sobre um país inerme, cultural e historicamente consanguíneo com Rússia, réu de intolerável traiçom por tentar empreender umha via própria europeísta democrática.

Vista dunha zona residencial de Kíiv (capital Ucraína) o 26 de febreiro en plena escalada do conflito © UNICEF/UN0598027/Evgeniy/UNIAN

O contragolpe chegou de imediato revelando a magnitude do erro cometido. A Alemanha, que vinha cultivando umha política de estreita conivência com Rússia desde a Ostpolitik de Willy Brandt, alá pola década dos setenta, procedeu a bloquear abruptamente a produtiva rede de vínculos económicos tecida até o fim mesmo do mandato de Angela Merkel com o bloqueio repentino do estratégico conduto Nord Stream 2, essencial para garantir o privilégio energético de que vinha gozando a poderosa indústria alemã. O simultáneo lançamento de um ambicioso plano precautório de rearmamento iniciado com a constituiçom de um fundo inicial de 100.000 milhons de euros, somado a um generoso programa de transferência de armamento ao país agredido, completou a resposta. Umha espectacular viragem na política exterior da República Federal com o seu inevitável vizinho do leste.

A onda de frontal rechaço à aventura bélica empreendida polo Kremlin prosseguiu com a reacçom em cadeia nos países fronteiriços ante a potência agressora traduzida na solicitude de adesom à OTAN de dous países de acrisolada trajectória democrática e provada neutralidade como Suécia e Finlándia. Um clamoroso fracasso em suma da autocracia russa recebido com aparente desdém por umha sociedade anestesiada pola inveterada carência de tradiçom democrática. A apressurada viragem armamentista do Japon ante a perspectiva de avanço de um eixo económico-militar Moscovo-Pequim é umha resposta mais de incalculáveis consequências dada a potência tecnológica do Japon e o seu eco em Coreia do Sol e Taiwan.

O alinhamento de Turquia, da República Sul-Africana e do grosso de países africanos a favor da imediata soluçom do bloqueio ao tráfico de cereais ucranianos revela a magnitude do movimento tectónico aberto pola guerra de Putin. Em Junho deste ano tinha lugar umha cimeira dos BRICS que permitiu calibrar as posiçons dos países emergentes ante o novo cenário geoestratégico. A notável dimensom socioeconómica dos BRICS consagram esta aliança como contraponto decisivo ao bloco euro-americano dominante. Criada em 2009, a plataforma dos cinco países associados no BRICS, que somam uma populaçom de 3.225 milhons de habitantes e ostentam a quarta parte (21 B€) do PIB mundial e o 20% das transacçons comerciais, é um actor ineludível do cenário internacional. Nesta cimeira, a China criticou severamente o regime de sançons económicas impostas e apontou aos seus efeitos bumerangue em prejuízo da liberalizaçom comercial que a China propugna. Rússia advogou por um regime comercial multilateral e pola criaçom de umha moeda de reserva alternativa ao dólar e o euro; o resto dos parceiros optava por um perfil de ambiguidade calculada. A inoportuna visita de Nancy Pelosi a Taiwan e a destemperada reacçom de Pequim agudizárom a conflitualidade latente relegando a guerra de Ucránia a simples conflito regional ante a magnitude do desafio protagonizado pola área Indo-Pacífico que Nancy Pelosi ousou reactivar. Ucránia, Taiwan, dos cenários disruptivos e complementários.

A polémica desatada em torno á guerra de Ucránia reverdece velhos argumentos arrombados desde o final da guerra fria entre os partidários do ideário democrático europeísta e os adeptos ao discurso anti-imperialista outra vez reeditado. O mapa do imperialismo porém tem mudado radicalmente varrido polo vento da história. A Federaçom Russa e a China encabeçam hoje sólidos Estados capitalistas onde brilham os Gazprom —propriedade da Federaçom Russa em algo mais de 50%— e os Huawei Technologies sem traças de épica colectivista, substituída há tempo pola prosaica troca comercial e financeira que a todos convoca. Mas, as ideologias resistem imunes no seu espaço intemporal onde o argumentário de Marta Harnecker, falecida em 2019, pode insirar ainda descomunais batalhas ideológicas pese ao facto manifesto de o comunismo ter ficado reduzido à exígua tirania norte-coreana e ao exangue regime cubano.

A guerra de gestos e relatos librada no espaço mediático goza em qualquer caso de boa saúde no campo de confronto frequentado polas teses tardo comunistas. As posiçons defendidas desde a banda herdeira dos estandartes comunistas abundam no recurso à restriçom mental como pudemos observar no curso da audiência concedida ao presidente Zelenski no Congresso dos Deputados. O Secretário Geral da UPG e deputado no Congresso dos Deputados, Nestor Rego, decidiu singularizar-se permanecendo sentado como signo de desaprovaçom ante o convidado, atitude compartida com o Secretário Geral do PCE e membro da equipa do Governo, Enrique Santiago e os deputados da CUP. A justificaçom esgrimida peca de inócua dum pacifismo retórico de escassa potência argumental: a escalada belicista em Ucránia que eles denunciam poderia ter consequências imprevisíveis. Um argumento de circunstáncias para sair do passo que dispensa de ter que pronunciar-se sobre a flagrante vulneraçom da legalidade internacional e sobre a radical diferença entre agressor e agredido. Trata-se dum gesto de neutralidade impostada que lembra aqueloutro que proibia condenar a invasom de Hungria em 1956 e a de Checoslováquia em 1968 polas forças do Pacto de Varsóvia. Naquele caso porém os escrúpulos políticos nom impediram aduzir argumentos mais sólidos como a defesa do socialismo e o princípio imperial da área de influência, ou a versom mais lúgubre do espaço vital, o Lebensraum de infausta memória, desactivadas agora.

Tanque destruído na guerra de Ucraína CC-BY-SA Ministry of Internal Affairs of Ukraine

A apologia aberta da invasom, livre de pudorosos subentendidos, nom carece assi e todo de porta-vozes estacados como o analista político e professor, Alberte Blanco Casal, habitual nas paginas de Nós Diário. Num recente artigo a propósito da cimeira da OTAN em Madrid, o analista justificava a invasom como resposta justificada ao assédio imperialista de Rússia com a cumplicidade da UE em papel de auxiliar passivo. As mesmas razons esgrimidas polo analista Pascual Serrano (Valência, 1964), um dos fundadores da revista electrónica Rebelión em 1996, anticapitalista por princípio e paladim entusiasta das teses russas. Agradece-se a claridade. Rebelión exibe sem a timidez pacata habitual os princípios do radicalismo sistêmico que a inspiram. Material militante contra a impunidade do imperialismo ianque que vulnera sem vergonha os princípios democráticos da legalidade internacional. O assassinato de José Couso, a infame história de Guantánamo e Abu Ghraib, o petulante menosprezo da jurisdiçom do Tribunal Penal Internacional certificam o matonismo imperial que serve para justificar o outro. Na defesa da legalidade internacional em perspectiva pacifista kantiana é justo destacar o artigo de Xoán Hermida A crise ucraína (Grial 234), um sólido discurso democrático argumentado e radical.

A debilidade do projecto político europeu incapacitou-o para resistir o omnipotente hegemonismo norte-americano e estragou a possibilidade singular brindada pola perestroika para afiançar umha estratégia euro-asiática independente do pára-chuvas americano. A consequência foi o fulgurante avanço da fronteira OTAN cara o leste, a impregnaçom da sociedade ex-soviética do modo ocidental de vida e a sua passividade ante o despojo da indústria soviética por umha banda de depredadores busca-vidas que sustentam hoje o regime de Putin. A flagrante ausência de tradiçom democrática na sociedade russa, desde o czar Nicolau II a Putin passando por Estaline, e a aura mítica da Gram Guerra Pátria alicerzou umha oligarquia autocrática que governa o país sem oposiçom com a aquiescência passiva da sociedade civil.

Somos maioria os que abominamos a parafernália imperial de que se rodeia Putin e aprovamos sem reservas o projecto europeísta e democrático propugnado por Zelenski. Questionar o envio de armamento a Ucránia em nome do pacifismo parece umha pueril manobra de escapismo que recorda a cobardia dos países aliados ante a guerra civil espanhola.

Fora das atitudes militantes as razons contrapostas de Rússia e Ucránia ficam abertas ao debate racional. É aí onde medem os seus argumentos dous mestres do pensamento político contemporâneo, Jürgen Habermas e Timothy Snyder; o primeiro, exímio representante da Escola de Frankfurt, fonte da teoria crítica da acçom comunicativa; o segundo, historiador estadunidense, professor em Yale e esperto em Europa Central e Oriental.

Sopesam ambos em público os argumentos e dilemas morais que a guerra suscita. Até onde apoiamos Ucránia de Jürgen Habermass e A guerra na Ucránia é umha guerra colonial de Timothy Snyder1 abordam com rigor a complexidade do conflito. Na tradiçom da ostpolitik e a vizinhança, o discurso de Habermass acentua o imperativo da abertura a Rússia, o de Snyder no entanto alinha-se com as teses ucranianas partindo do relato histórico da naçom ucraniana e a sua plena legitimidade numha guerra assimilável a um processo de descolonizaçom. O empático texto da construçom nacional de Ucránia de Snyder nom pode por menos de recordar-nos o dolorido relato do Sempre em Galiza. Habermass e Snyder ilustram a complexidade de um conflito inequivocamente europeu e a inevitável ambiguidade dos argumentos esgrimidos ante o cenário bélico que emergiu em 2014 por ditado russo e que traceja umha linha divisória neste século que parece eterno e ainda acaba de começar.

1 Ver: https://sociologiacritica.es/2022/05/16/hasta-donde-apoyamos-a-ucrania-jurgen-habermass/ e https://www.newyorker.com/news/essay/the-war-in-ukraine-is-a-colonial-war

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