Tempo de quaresma, comemoraçom cristã da pungente tragédia de Jesus crucificado e da frágil esperança no Cristo ressuscitado. Triunfo proclamado por Paulo aos quatro ventos do império romano com a insólita ousadia de um tropo desafiante: primogénito dentre os mortos (Colossenses 1:18, Romanos 8:29). Escandalosa primogenitura que atravessa os séculos nas asas da esperança cristã. A crença de ressuscitarmos como o nosso paladim, vencedor da morte. Onde está, morte, o teu aguilhom? Onde, inferno, a tua vitória?,1 Coríntios 15:53-58
Imaginemos o cadáver de Jesus aniquilado, lacerado ainda com os estigmas da paixom, hirto no sepulcro, destinado à corrupçom e porém milagrosamente ressuscitando de entre os mortos passado o terceiro dia, no primeiro amanhecer glorioso do dia que nom vai ter fim. Imaginemos agora aquele ser único que mereceu ser chamado primogénito da morte depois de ser resgatado da corrupçom polo mesmo pai misterioso que permanecera em silêncio ante aquele berro de suprema soledade proferido desde o alto da cruz com as palavras do Salmo 22: Eli, Eli, lamá sabactani?: Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste!! (Mateus 27:46, Marcos 15:34)
Agora que todo foi consumado e Jesus se levanta da tumba na esperança de encontrar a glória definitiva do Pai, de repente —imaginemo-lo agora — verifica que ninguém mais tem ressuscitado nem se levanta na gélida manhã definitiva que prometia ser pórtico do glorioso encontro com o Pai. Um Cristo ressurrecto cruelmente desamparado que acorda em total soledade na gloriosa manhã inaugural da vida sempiterna.
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O Cristo cadavérico de Holbein o Novo (1497-1543), mero despojo humano ante o qual sussurrara Dostoievski: Este Cristo é umha blasfémia, este despojo humano nom pode ressuscitar, é a melhor representaçom do Cristo irremissivelmente vencido, mero despojo humano de proeminentes ossos e tendons que o artista recreia para acentuar a precária anatomia de um corpo em transe de descomposiçom.
Holbein o Novo, filho desventurado de tempos de pestes e indigência, amigo de Erasmo e de Tomás Moro finalmente acolhido na Inglaterra de Henrique VIII, é o artista que levanta testemunha da tragédia sagrada e humaníssima que comove à humanidade desde há vinte séculos. A morte irreversível.
Hans Holbein o Jovem projecta a imagem numha tábua bem medida de tília de 2 metros por 30 centímetros a tragédia de Jesus vencido entre os anos 1520 e 1522 com realismo de forense que segue emocionando o espectador através dos séculos.
Além de Hans Holbein e Dostoievski, devemos-lhe a outro artista, um escritor romântico alemám, conhecido como Jean Paul1, outro memorável contributo ao desacougante relato da problemática ressurreiçom de Jesus que ele imaginará em absoluto desamparo e soledade, desassistido da esperada presença do Pai em que cifrara todas as suas esperanças.
A vida de Jean Paul, pseudónimo elegido por Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825) como tributo de admiraçom a Jean-Jacques Rousseau, é a dum escritor romántico imbuído do espírito do Sturm und Drang que inundara Alemanha na segunda metade do século XVIII. Admirado passageiramente no seu país até o ponto de chegar a ser comparado com Goethe, a sua obra literária acabou caindo no olvido mesmo em vida para ser ressuscitada fugazmente no século XX polo requintado círculo literário de Stefan George.
Mas, o eco actual da sua memória deve-se ao interesse suscitado polo desacougante opúsculo Discurso de Cristo morto desde o alto del cosmos proclamando que nom há Deus2 escrito aos 33 anos.
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O relato de Jean Paul amostra um Jesus ressuscitando dentre os mortos na esperada manhã do derradeiro dia, sozinho, desamparado, sem ninguém mais ressurrecto que ele mesmo, ausente também o Pai eterno que ele invocara no alto da cruz com o berro desolado, e afinal premonitório, do Salmo 22: Eli, Eli, lamá sabactani? Meu Deus meu, meu Deus, ¿por que me abandonaste?
O cenário imaginado por Jean Paul desafiava a inveterada tradiçom cristã inscrita no mais profundo do nosso subconsciente colectivo até hoje mesmo em que os ritos fúnebres e a dramaturgia dos cemitérios esvaecem aceleradamente ante o avanço inexorável dos novos ritos de despedida que escamoteiam o cadáver no prosaico trámite da incineraçom. A inquietante poética dos cemitérios fica abolida na nova liturgia da dispersom das cinzas, preludio do olvido que seremos.
A poética de Jean Paul entende-se melhor inscrita na imponente cenografia heróica do seu coetáneo Caspar David Friedrich onde senhoreia o sujeito romántico enfrentado á natureza grandiosa como decorado teatral.
Tentemos impregnar-nos dessa teatralidade que requer o relato de Jean Paul. Dispomos por fortuna de um texto insuperável para recreá-lo na versom exemplar 3 oferecida por dous doutos praticantes da disciplina filosófica, Olegario González Cardedal, mestre em ciências teológicas, e Andrés Sánchez Pascual, filósofo em exercício e tradutor insuperável de Nietzsche.
No relato de Jean Paul, o autor imagina adormecer sonhando em acordar no meio dum campo-santo. As tumbas aparecem abertas e a lúgubre porta do ossário aberta nom cessa de bater. Umha névoa espessa paira sobre o cemitério e o seu chao nom deixa de tremer. Um cadáver recente jaz no meio da igreja vigilado desde a cúpula pola esfera do relógio da eternidade. Do alto desce umha nobre figura transida de dor. Os defuntos que vam enchendo a recinto berram: Responde Cristo, acaso nom há Deus?, e ela responde: Nom, nom há. E prossegue, cruzei mundos e galáxias e nada encontrei. Berrei, Padre onde estás?, mas só me respondeu o balbordo da tempestade que ninguém governa.
Ao pouco, começa a chegar a multidom de nenos mortos que clama de joelhos: Jesus!, é que nom temos pai?.. e, chorando desconsolado, Jesus responde-lhes: Todos nós somos orfos, nom temos pai. Desde o alto da Natureza, Cristo alça os olhos entom cara o vazio imenso e exclama: Ó nada, irta e muda, ó necessidade, eterna e fria! Depois, contemplando Cristo o mundo entre báguas, sussurra: também eu, ai, morei na terra em tempos e daquela era feliz porque tinha um pai amoroso.
O corolário do relato é imediato: tornemos ao Deus imortal proclamado por Jesus mentres seja possível para conjurar desta maneira o gélido alento do niilismo que nos ameaça.
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O corolário do lancinante pesadelo de Jean Paul Richter (1763-1825) em favor da esperança cristã tinha por destinatários implícitos a ameaçante grei dos philosophes que enlaça Baruch Espinoza e D´Holbach com Diderot e Fichte. Com a eloquência do pathos romántico pretendia Jean Paul polemizar com o racionalismo invasor evocando a inóspita perspectiva de umha humanidade destituída do sentido da transcendência e arrojada ao sentimento de orfandade radical. O desolado discurso de Cristo certificando a inexistência de Deus ia dirigido aos pretensiosos professorinhos da filosofia crítica que andam a inquirir sobre a existência de Deus, com sangue frio e coraçom geado, como se se tratasse de indagar na existência do unicórnio. A intençom apologética do relato coincide em propósito e contexto histórico com o O génio do cristianismo de Chateaubriand (1802) endebém neste caso com o arrebatado formato e estilo estético do romanticismo alemám.
Escuitamos ecoar ao fundo a música da Sinfonia número 2 de Mahler, a Sinfonia da Resurreiçom, concluída na verao de 1895 naquela Mitteleuropa crepuscular e esplendorosa sentenciada a ser varrida do mapa em 1918. Depois do comovedor Urlicht da Sinfonia — Pequena rosa vermelha, os homens penam em grande necessidade...— a orquestra ganha em intensidade como prologo ao Hino a Resurreiçom de Gottlieb Klopstock que o coro vai entoar. De repente, a orquestra cede a voz a umha misteriosa chamada da trompeta e a trompa preludia um emocionante diálogo da flauta e o flautim que paralisa por um momento o discurso sonoro. Antes de a soprano arrastar todo o coro —¡Ressuscitarás, si, ressuscitarás, pó meu trás um breve descanso!— ouve-se o mágico gorjeio do páxaro derradeiro anunciando a manhã do tempo sem final. O mesmo gorjeio inefável desde o cimo do cosmos poderia anunciar o despertar de Cristo no relato de Jean Paul.
Klopstock, Mahler, mas também o pensamento contemporáneo comparecem desconcertados ante a questom sem resposta da morte inexorável, sem epílogo nem porquê. A sem-razom do final humano segue desafiando a arte e o pensamento. O filósofo Javier Gomá torna a meditar na esperança desesperançada da supervivência pessoal no ensaio Necesario pero imposible4 num novo intento de civilizar o infinito. Ousados tropos da esperança inevitavelmente defraudada que inquietara a Jean Paul.
Notas
1 https://es.wikipedia.org/wiki/Jean_Paul
2 http://tadurraca.blogspot.com/2019/06/el-sueno-de-jean-paul-richter-discurso.html
3 https://pdfcookie.com/documents/el-sueo-de-jean-paul-richter-ex205yq3w3v3 ; http://tadurraca.blogspot.com/2008/03/el-sueo-de-jean-paul-richter.html
4 https://www.casadellibro.com/libro-necesario-pero-imposible/9788430616930/2375070