Amigo Hans Küng

Hans Küng © Vaticano

Caro amigo, quero dirigir-me a ti desde a amizade que creio ter ganhado na demorada leitura de tantos livros teus dedicados a explicitar a mensagem de Jesus ao género humano. Küng, o mais universal dos teólogos, o mais católico e menos romano.

Caro amigo, quero dirigir-me a ti desde a amizade que creio ter ganhado na demorada leitura de tantos livros teus dedicados a explicitar a mensagem de Jesus ao género humano. Küng, o mais universal dos teólogos, o mais católico e menos romano

Permite-me somar-me à cordial despedida dos teus inúmeros amigos mundo adiante, sem outra acreditaçom que a de assíduo leitor, no transe da viagem que agora empreendes ao coraçom da consciência cósmica que ti identificaste com a esperança de Jesus. Abandonas a vida, caro professor, na cidade de Tubinga que tanto amaste, sede da Universidade onde leccionaste e da Fundaçom Weltethos, o Projecto de Ética Mundial que ti quigeste simbolizar na bolinha de mármore translúcido, imagem da Terra observada desde a nave Apolo 17 no mês de dezembro de 1972 a 29.000 km de distáncia. Sedutora perspectiva da fugaz morada que nos acolhe; mínimo berlinde ou blue marble para crianças. Abrangente olhada humana deste fogar transitório que ti soubeste interpretar em demorado convívio intelectual com os grandes mensageiros do evangelho: Paulo de Tarso, Orígenes, Agostinho de Hipona, Tomé de Aquino, Martim Lutero, Friedrich Schleiermacher, Karl Barth.

O peso inclemente da autoridade romana que houveste de padecer, caro amigo, foi o mesmo que acabou gorando aquela esperança nascida nos primeiros sessenta do século passado no Concilio de Joám XXIII e Paulo VI. Aquele Concílio que pretendia alçar a vista nas janelas vaticanas desde a urbe onde reside a autoridade ao orbe humanitário. Foi nele onde a voz de Küng começou a soar com tom próprio em meio de um ímpar foro de teólogos: Henri de Lubac, Karl Rahner, Edward Schillebeeckx, Yves Congar, Joseph Ratzinger. Difícil imaginar hoje a magnitude do impacte daquele foro histórico. Quem poderá recordar hoje a condiçom de autêntico best seller do “Novo Catecismo holandês para adultos” que vinha eliminar a côdea ressessa pousada sobre o catolicismo europeu e, aqui mesmo, a infantil matraca do Padre Astete? Pouco durou a primavera conciliar, o debate público aginha foi afogado pola coacçom moral e a fértil pluralidade suscitada pola unanimidade restaurada. Ficam esquecidas as feridas causadas pola desapiedada depuraçom da liberdade teológica. Especialmente comovedora é a amarga testemunha do grande teólogo dominicano Yves Congar, relatada ao directo no Diario de um teólogo (1946-1956)1 publicado só após da sua morte. As confidências à nai do seu desamparo e desventura nom som fáceis de esquecer. Mas a voz destemida de Hans Küng nom pudo ser coutada, sem por isso abandonar a Igreja.

Já em 1970, o seu livro Infalível. Umha pergunta abria sem temor o debate abafado desde a sua enunciaçom, justo um século antes, por um Pio IX humilhado pola perda do seu reino terreal e o pavor ao liberalismo militante. O debate da infalibilidade ia prolongar-se todo um um decénio, até final de 1979 em que a hierarquia procedeu a retirar-lhe a Küng a licença para leccionar como teólogo católico. A ordem de proibiçom2 provinha do papa Karol Wojtyła, mas já nunca ia a ser revocada polos sucessivos papas até a hoje apesar do alto respeito intelectual de todos eles ao indomável teólogo.

Questionar a infalibilidade nada tinha de arbitrário, para Küng era o simples corolário dos valores contraditórios negados: o princípio primitivo da colegialidade electiva episcopal, e da papal em consequência. Depois véu o questionamento do celibato sacerdotal, a vindicaçom da dignidade sacerdotal feminina, a reabilitaçom da sexualidade. Finalmente, umha onda de indiferença acabou cerrando a breve primavera teológica.

A obra em solitário de Küng prosseguiu, sem pausa nem temor, ancorada na firmeza da fé no Deus de Jesus no qual Küng depositou a sua confiança até o final. Confiança como resposta existencial pascaliana do ser humano frente ao gélido materialismo ontológico: um nada frente ao infinito, um todo frente ao nada, ponto médio entre nada e todo. Metafísica em perspectiva matemática que levou a Pascal a formular o desamparo humano em forma de esperança matemática, produto do valor do prémio hipotético pola probabilidade de atingi-lo. A esperança que alimenta a crença como produto do infinito prometido e a insignificância da sua probabilidade: E = 0*∞; valor indeterminado, altíssimo paro o crente, minúsculo para a estrita olhada positivista.

Gosto de guardar nos livros recortes de jornais atinentes à matéria neles tratada, um costume herdado da insaciável curiosidade do nosso pai em que fomos educados. Abro o último tomo de memórias de Hans Küng, ali e acho escondido um saudoso artigo sobre o penúltimo Küng, que eu convidaria a ler3, como cordial aproximaçom à sua figura de um lúcido teólogo espanhol de fronteira, Manuel Fraijó. Da devoçom de Fraijó (doutor pola Universidade de Tubinga e co-autor de um livro colectivo editado em Munique na homenagem ao 65 aniversário do teólogo) polo seu mestre nom cabe dúvida como o artigo demonstra. Penso agora em quantos künguianos persistirám ainda na lembrança do seu legado de esclarecimento da tradiçom evangélica com Ser Cristiano como cifra e resumo do seu labor. Relata Manuel Fraijó no artigo a saudosa visita a um Küng de 86 anos para lhe fazer entrega da traduçom espanhola do terceiro livro das suas memórias: Liberdade conquistada. A doença de Párkinson que o mantinha incapacitado nom lhe impediu ainda manifestar-se feliz e confiado na cordial singeleza do papa Francisco como augúrio de abertura.

A medida que a morte se acercava, o indomável mestre suíço meditava na forma de enfrentar com dignidade a morte imediata e na sua capacidade para suportar a terrível agonia que houvera de aturar o seu irmao, vítima de um tumor cerebral, ou da demência senil sofrida polo seu íntimo amigo Walter Jens ao pé de quem demandou ser enterrado. Apreender a morrer com dignidade e lucidez foi a sua última liçom.

Pensar em liberdade, leccionar sem temor, praticar a ética da fraternidade humana tal como parece sugerir o brilhante berlinde cósmico vivo que o teólogo adoptou como brasom da Weltethos que o vai sobreviver. Humaníssimo Hans, amigo, que a luz que iluminou a tua vida luza sempre sobre ti

Küng antecipou a própria morte com serenidade socrática, remoendo cada detalhe. Unha das últimas secçons do terceiro tomo das suas memórias titula-se precisamente De que maneira gostaria morrer. Escolhe sepultura, ao pé dos seus caros amigos falecidos, Walter e Inge, e também director de exéquias, redige um texto meditativo de despedida na humilde confiança em alcançar a morada do Senhor. Filósofo até o fim selecciona cuidadosamente a palavra precisa para o tránsito: nom final (Ende), menos ainda perecimento (Verenden) senom consumaçom (Vollenden): plenitude. Imagina o seu tránsito final: nom cara o confim do universo, matina, senóm cara o centro da sua própria intimidade. Além do ámbito subatómico, reflexiona, ali onde o infinito se revela como realidade real. Depois, espera confiado o ingresso na pátria inextinguível do ser humano como Paulo anunciara; onde a imagem de Deus “embaçada como num espelho” fulgura definitivamente cara a cara como anunciara o Cristo ressurrecto. Derradeiro ésjaton que legitima a todos os humilhados e oprimidos, mortos sem reparaçom. Caso de ele estar equivocado e bater com o muro do nada em lugar do regaço de Deus, declara Küng com coragem, aceitara-o sem temor por ter gozado da fortuna de ter vivido na fé umha vida plena de sentido.

Para o momento da morte demandou o Jesus bleibet meine Freude, “Jesus a minha permanente alegria”, da cantata BWV 147 de Bach para dar passo ao rezo em comunidade do Padre-Nosso, seguido da escuita do adágio do Concerto para clarinete KV 622 de Mozart, “onde a transcendência transparece”, para proceder a recitar depois a formosa bençom de Números 6,24-26 “O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti...” e, já de remate, escuitar o rondó do mesmo Concerto mozartiano como serena celebraçom da comunidade renovada de todos os assistentes ao acto.

Pensar em liberdade, leccionar sem temor, praticar a ética da fraternidade humana tal como parece sugerir o brilhante berlinde cósmico vivo que o teólogo adoptou como brasom da Weltethos que o vai sobreviver. Humaníssimo Hans, amigo, que a luz que iluminou a tua vida luza sempre sobre ti.

 

1 https://www.trotta.es/libros/diario-de-un-teologo-1946-1956/9788481646801/

2 http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19791215_christi-ecclesia_sp.html

3 Manuel Fraijó: “La serena certeza del deber cumplido” El País, 24/XII/2014. https://elpais.com/elpais/2014/12/18/opinion/1418930590_976646.html

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