Celebrar a opulência do idioma

Português de Brasil. O galego tropical © Através editora

Os galegos gozamos do imenso privilégio de falar umha língua cosmopolita, na precisa acepçom de organismo vivo capaz de viver em qualquer clima ou lugar. A acepçom, avalizada pola RAG, descreve bem o exuberante polimorfismo do nosso idioma: galego aldeao ou académico, galego reintegrado, galego-português, e também galego tropical, essa variedade expressiva e desenfreada que seduziu a Valentim Paz Andrade.

O arquipélago portugalaico — galego por origem, náutico e tropical por história — é um espaço a um tempo insólito e familiar. Do vasto território austral em que se assenta, Portugal guarda a chave e o Brasil a mais desenfadada versom com Galiza no papel de cauta e discreta testemunha, perplexa ante tanta fartura linguística. Um autêntico mundo a explorar depois de séculos de rigoroso voto de reclusom e castidade, e ainda está África como promessa imediata se acreditamos no Acordo de Cotonu e na Estratégia Conjunta A-UE.

Por enquanto, e a maneira de passatempo familiar, portugueses e brasileiros porfiam em disputarem o protagonismo do idioma num incessante torneio de semelhanças e diferenças legitimadoras. O crescente volume de traduçons recíprocas e filmes legendados confirma que o idioma, para além de código de comunicaçom é signo inequívoco de identidade.

A Nau de Ícaro com pavilhom português, de Brueghel o Velho (1561), é o poderoso ícone da epopeia fundacional do arquipélago portugalaico como apontou Eduardo Lourenço. Discorria o filósofo em memorável obra homónima acerca do estranho destino de Portugal, dilacerado entre a insignificáncia percebida e a gloriosa epopeia rememorada que acabou alimentando essa aguda consciência de hiperidentidade que arrasta. Híperidentidade portuguesa, subidentidade galega, paradoxos de umha cultura primordial comum precocemente cindida, pola aventura colonial portuguesa e a secular pressom assimilista que abafou e abafa a identidade galega.

O colóquio transoceánico entre a metrópole progenitora e o seu vigoroso rebento amazónico nom pode ser fácil, tensionado como está entre a sensaçom de desrespeito de umha parte á de potência incondicionada da outra. Ainda bem que a adesom simultánea de Espanha e Portugal à Uniom Europeia tenha elevado os dous países ateigados de história a um respeitado recinto universal de democracia e cultura. No conforto de Bruxelas, o europeanismo recém-adquirido, cultivado com a inveterada habilidade diplomática de Portugal, parece estar esbatendo por fim as arestas mais irritantes da tropicalidade ineludível e ingrata.

Há todo um género literário de troça e gracejo entre portugueses e brasileiros a custa do idioma que os desune. Dos meus anos de aprendizado do idioma, nunca concluído, devo admiti-lo, sempre lembrarei aquele engraçado e inteligente debate entre Gregório Duvivier no papel defensivo do português brasileiro frente ao Ricardo Araújo como paladim do português de Portugal. Inteligência de parte a parte a conta das diferenças fonéticas, lexicais e locucionais que os separam. É a guerra da pequena diferença: portugas frente a brasucas, ou tugas frente a zucas, simplesmente.

Guardo na minha gaveta de sapateiro dos livros em português algum engraçado exemplar dedicado a este incessante torneio das diferenças transatlánticas de vocabulário e pronúncia. O meu preferido é Schaifaizfavoire, SFF em acrónimo, como irónica trascriçom fonética de Mário Prata para solicitar algo com cortesia em Portugal. O livro do escritor paulistano, editado em 1993, deve ter sido um caso de sucesso e hilariante desforra de brasucas impenitentes porque o meu, adquirido num alfarrabista de Porto, ia já pola 12ª ediçom. O mais chocante para um galego é que muitas das entradas deste pequeno vocabulário de burlas ao português lusitano em que consiste poderiam ser dirigidas com toda justiça ao galego. Vejam senom (marco entre parênteses o vocábulo brasileiro vindicado como correcto): concelho (município), cona (boceta), cu (bunda), casal, na sua acepçom de pequena propriedade, fala-barato (tagarela), forreta (pão-duro), gelado (sorvete), e mesmo ok (aqui a piada é que os portugueses pronunciam cerimoniosamente ocapa que, a verdade, soa um bocadinho doutoral de mais), imperial ou fino (chope, copo de cerveja de barril) que aqui dizemos quinto ou canha.

O caso é que os galegos temos um bom elenco de vocábulos expressivos e intransferíveis a exibir. Ai estám choio e choiar para aludir ao trabalho com esse ponto de desdém que merece, aquelar como verbo válido para todo uso, como a navalha suíça, ou aquelinho como vocativo carinhoso sempre a mao. Os portugueses dim coscuvilhar e bisbilhotar para andar em continhos e intrigas enquanto os brasileiros preferem fofocar; nós preferimos rejoubar ou andar de rejouba. Também preferimos caralhudo a “porreiro”, bazuncho a “gorducho” e galdrumada para aludir à “mixórdia”dos nossos parceiros linguísticos. O galego-português, em resumo, é pródigo em falares e sabores particulares que vale desfrutar sem renegar dos alheios que se oferecem de graça.

O avoengo do galego como sócio fundador do idioma, humilhado actualmente por indigência sobrevinda baixo bandeira alheia, aconselha optar por umha atitude receptiva e discreta, a nom ser, claro está, quando se pom em dúvida a sólida legitimidade inveterada de palavras imprescindíveis como minhoca onde o sólido doutorado aldeao do galego pode servir de tribunal inapelável ante qualquer atribuiçom exótica.

Guardamos, é bom nom esquecer, a sólida arquitectura lexical e sintáctica do latim nativo partilhada com o português de Portugal do qual nos afasta aliás o fastidioso chilreio sibilante da sua pronúncia, em aberto contraste com a clara dicçom brasileira onde cada vogal é emitida como fiel acompanhante da consoante: carne e osso de cada palavra.

Ao que eu queria chegar era á gozosa apariçom de um inspirado prontuário de brasileiro quotidiano que é ao mesmo tempo guia de campo do país e tratado de brasileirice. O seu autor é um luguês nacionalizado na Corunha e recriado como professor em Brasil, de nome Diego Bernal. Falo de Português do Brasil. O galego tropical1, livro com sabor a crónica de descoberta de inegável tempero galaico. O choque cultural transoceánico é interpretado com ironia de desterrado provisional e gozo de descoberta inesperada. Lembra o honroso ofício de cronista galego em terra americana, com um pé na urbanidade recém-descoberta e o outro na paróquia que guarda a memória, das mil revistas da emigraçom galega ultramarina.

O Brasil de Diego é quotidiano e convivencial e o seu livro, um amigável passaporte para decifrar a assombrosa criatividade linguística e cultural brasileira. Redigido em prosa impaciente e directa como convém a um retrato tirado do natural, o texto deambula polo léxico e a fonética, pola onomástica e a toponímia para saltar dai ao cinema, á música e a arte de viver. A sintética brevidade do texto bem merece o índice lexical e onomástico que o complementa e o cordial prefácio do seu companheiro de descobertas e brasileirices, Xoán Lagares.

Falando de fonética, recorda-nos Diego que liberdade faz-se libeghdadji em Brasil, em oportuno sublinhado de como as próprias consoantes abrandam e dançam em rodopio com as vogais naquele imenso país. A libeghdadji brasileira, amigos, é pura liberdade em tecnicolor.

 

1 Diego Bernal Rico, Português de Brasil. O galego tropical, Através Editora, 2020

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