Contra o esfarelamento do galego: Um tratado de lexicologia

Clase de lingua galega en Vigo a finais dos anos 70 © Fondo da Asociación da Prensa de Vigo / Llanos

A lexicologia é essa disciplina que relaciona léxico e significado e esclarece a genealogia das palavras desde o seu étimo ou raiz até a fulgurante nuvem dos seus sinónimos e variantes. A lexicografia, a ciência dos dicionários, é a sua filha mais afortunada e conhecida.

A vida das palavras está submetida, como a dos seres vivos, a constante mudança e exposta a doenças, decadência e morte como a história bem demonstra. O vocabulário está sujeito também a processos degenerativos provocados polo contacto com línguas mais vigorosas e expansivas como é o caso do galego frente ao castelhano e deste frente ao inglês

A vida das palavras está submetida, como a dos seres vivos, a constante mudança e exposta a doenças, decadência e morte como a história bem demonstra. O vocabulário está sujeito também a processos degenerativos provocados polo contacto com línguas mais vigorosas e expansivas como é o caso do galego frente ao castelhano e deste frente ao inglês. O facto de o galego e o castelhano serem dous idiomas romances contribui a multiplicar o risco de contaminaçom cruzada e a facilitar a subordinaçom do nosso idioma ao castelhano, dominante por imperativo legal, preeminência mediática e prestígio.

Ao longo do país, a capacidade de resistência das línguas subordinadas ao espanhol revela-se dramaticamente precária pressagiando a sua derrota inexorável, mesmo no caso de se aprontarem estratégias competentes como no caso da imersom linguística vigente em Catalunha. No caso galego, como é sabido, a estratégia correctiva em vigor é tam timorata e servil que mais parece um desmaiado acorde musical. De biligüísmo harmónico é qualificada sagazmente como passaporte certo à irrelevância. Oferecer-lhe armistício unilateral ao triunfador, como é o caso, equivale a dar a batalha por perdida. Nessas andamos.

A capacidade regenerativa do galego, a sua vitalidade em suma, foi perdendo vigor em forma sistemática desde a desgraçada amputaçom política do galego meridional que acabaria florescendo a partir do século XVI como português consanguíneo e vizinho. O território transminhoto acedera para a sua fortuna à plenitude dos seus atributos nacionais no século XII e com eles à plena possessom do instrumental necessário para desenvolver a língua patrimonial comum. O assombroso êxito da aventura projectou o idioma dos galegos por mares nunca dantes navegados enquanto a Galiza, definitivamente despojada da reitoria sociopolítica, viu afundar-se a sua língua vernácula no poço sem fundo da rusticidade e a irreleváncia social.

Carlos Garrido e capa da súa obra © Laiovento

Neste penoso naufrágio histórico, de pouco servem os insensatos esforços de reverter o processo mediante o célebre procedimento do Barom de Münchhausen de fugir da lamaceira castelhana puxando da própria cabeleira. A única saída razoável à penosa incapacidade regenerativa em que o galego está sumido é o reencontro com a viçosa árvore do galego-português internacional para elevar a idioma douto a língua vernácula. Esta saída fica infelizmente obstruída porém pola espessa crosta de espanholismo provinciano pousada sobre a consciência colectiva do país que alimentam as atitudes consabidas de fatalismo irónico e desdém irresponsável nunca superadas.

No caso galego, como é sabido, a estratégia correctiva em vigor é tam timorata e servil que mais parece um desmaiado acorde musical. De biligüísmo harmónico é qualificada sagazmente como passaporte certo à irrelevância. Oferecer-lhe armistício unilateral ao triunfador, como é o caso, equivale a dar a batalha por perdida. Nessas andamos 

A reconexom linguística com a geografia e a história do nosso idioma, escusado lembrar, é a proposta estratégica do movimento reintegracionista. O discurso isolacionista porfia no entanto em prolongar a agonia à base de aprontar próteses ad hoc tiradas do rico arsenal da fala popular convenientemente adereçadas no dúplice laboratório neológico ILG=RAG. Entretanto, avança sem aparente alarme o inexorável processo de esfarelamento do idioma frente ao magma castelhano como se assistíssemos a um desastre natural.

Apesar da disparidade de forças, o generoso empenho reintegracionista de dotar a língua dos recursos expressivos disponíveis em qualquer idioma normalizado e de projectá-la no espaço internacional, persevera no propósito de esclarecer as doenças que tolhem o idioma avaliando a funcionalidade do seu léxico, oferecendo soluçons restauradoras aptas para atalhar os processos em curso de estagnaçom lexical e substituiçom por terminologia castelhana que inçam sem remédio. O dilema restaurador sublinha a disjuntiva inevitável de aceitar o paradigma do galego tributário do espanhol —o galenhol— ou optar polo depurado de aderências espúrias e reconduzido ao vigoroso tronco nutrício original.

O movimento reintegracionista pode orgulhar-se de contar para esta tarefa com um selecto elenco de lexicólogos aos quais já me tenho referido nesta páginas. Estraviz, Iriarte e Garrido oferecem na minha opiniom o instrumental básico para transitar do galego doméstico de horizonte provinciano ao galego como variante legítima do galego-português internacional. Um galego em definitivo resgatado das corredoiras dialectais e o polimorfismo designativo e elevado à categoria de língua padrom.

O livro de crítica lexical1 do professor Carlos Garrido, que agora vê a luz sob a chancela de ensaio da Editorial Laiovento, culmina quinze anos de tenaz dedicaçom à problemática lexicográfica do galego que já tem produzido um par de obras de referência. A actual vai destinada a um leitor nom especializado mas seriamente concernido com o futuro do idioma.

Estraviz, Iriarte e Garrido oferecem na minha opiniom o instrumental básico para transitar do galego doméstico de horizonte provinciano ao galego como variante legítima do galego-português internacional

A obra, cumpre sublinhar, adopta a focagem sistemática e exaustiva habitual na literatura científica do autor, sem míngua do seu carácter divulgativo e eventualmente polémico. Atrever-me-ia a apontar que a solidez metodológica exibida é tributária da disciplina cientifica praticada polo autor, a biologia e a sua metodologia analítica. Da biologia procede, segundo eu vejo, a firme ancoragem na perspectiva taxonómica do universo lexical. A arte classificatória de Carl von Linné, interpreto eu, inspira o desenho da precisa rede conceptual munida polo professor Garrido para tentar capturar o acervo lexical genuíno depurado de interferências alienadoras. Taxonomia, com efeito, mas taxonomia hierarquizada segundo género proximum e differentia specifica da escolástica linneana e capacitada para ponderar a qualidade da enxurrada lexical herdada.

Umha sólida grelha classificatória apta para delimitar o conjunto de fenómenos de degradaçom lexical operantes no idioma: variaçom sem padronizaçom, substiuiçom castelhanizante, erosom, estagnaçom, suplência castelhanizante, diferencialismo nom regenerador

A proliferaçom denominativa sem hierarquizar que abafa o léxico literário galego é a consequência natural da fragmentaçom secular do idioma em multiplicidade de redutos incomunicados de carácter familiar e comarcal desprovidos de qualquer autoridade arbitral codificadora. A irrupçom dos meios de comunicaçom social surpreendeu o país num estado de anomia linguística que justificou o nascimento da RAG a princípios do século XX. A estratégia de canonizaçom de umha língua padrom estável, com plenitude de poder comunicativo em todo registo e circunstáncia e apta para operar no cenário internacional é a sua estratégia lógica. Umha aspiraçom conatural à história do nosso idioma e ao extraordinário privilégio que ostenta entre as línguas condenadas por umha história adversa a ficarem reclusas no seu ámbito nativo, como no caso do catalám e o eusquera. A índole internacional do galego certifica de passagem o seu carácter nacional, independente de instáncias adventícias.

O instrumento de destrinça lexical construído polo professor Garrido é-nos apresentado sem circunlóquios desde o mesmo prefácio da obra. Umha sólida grelha classificatória apta para delimitar o conjunto de fenómenos de degradaçom lexical operantes no idioma: variaçom sem padronizaçom, substiuiçom castelhanizante, erosom, estagnaçom, suplência castelhanizante, diferencialismo nom regenerador. A par do mecanismo descritivo habilita-se um procedimento explícito de carácter preceptivo para a tarefa de regeneraçom formal e funcional da língua, económico e produtivo. Patologia e tratamento regenerativo combinados.

Lingua galega Dominio Público

A delimitaçom dos processos degenerativos operantes sobre o galego desde o século XVI obedece a um esquema lógico, preciso e inequívoco, susceptível mesmo de representaçom simbólica através dum diagrama de setas de carácter sintético, resumido no Esquema 1 no início da obra como esquema para sintetizar a congruência lógica do procedimento classificatório adoptado. O impressionante caudal lexicográfico examinado ao longo do livro prova a pertinência do esquema.

O tratamento regenerativo alternativo prescrito polo tribunal codificador oficialista revela-se manifestamente inapropriado devido, entre outras razons, à doentia aversom ao acervo lexical supradialectal consagrado nas variedades maduras do galego-português vivas em Portugal e no Brasil

O tratamento regenerativo alternativo prescrito polo tribunal codificador oficialista revela-se manifestamente inapropriado devido, entre outras razons, à doentia aversom ao acervo lexical supradialectal consagrado nas variedades maduras do galego-português vivas em Portugal e no Brasil. A conectividade é um imperativo dos tempos que as línguas estám obrigadas a obedecer sob pena de aniquilaçom. Quarenta anos de tratamento errado certificam a inépcia da estratégia isolacionista.

O exaustivo exame a que submete o professor Garrido o estado actual do galego desborda desde o mesmo título da obra as regras de asséptico formalismo do manual científico para saltar sem embaraço ao registo polémico quando o fio argumental o aconselha. O alvo da crítica é a incongruência estratégica, o tratamento despropositado, a cândida incompetência exibida polos agentes codificadores incumbidos. Desde a mesma portada da obra, os qualificativos de escandalosa, lastimosa, dolosa, falhada repetem-se ao longo do texto para sublinhar os disparates mais rechamantes do laboratório lexicográfico ungido polo poder. Impossível reprimir o sorriso de vez em quando.

Caberia a tentaçom de julgar inoportuna a aparente mistura de rigor filológico e arrebato justiceiro, com eventual recurso ao estilo acusatório e o sarcasmo reservados a glosar os desvarios do patronato codificador. Nom comparto esses escrúpulos, a acidez crítica arremessada ao ente codificador plenipotenciário fica plenamente justificada no plano glotopolítico em que se inscreve. Afinal trata-se do direito inalienável à crítica pública a um ente submetido de raiz a escrutínio público como públicos som os recursos de que se nutre. Nom fará falta aludir, além do mais, às notórias antipatias que transparecem no seio da RAG por humaníssimos e triviais motivos de rivalidade política ou persoal. Como quer que o vejamos, as propostas de codificaçom lexicográfica oficialista ficam sujeitas, sem precisar vénia, à liberdade crítica da cidadania em uso do princípio inalienável da democracia deliberativa, especialmente pertinente quando aplicado a organismos públicos auto-reproduzidos por métodos de cooptaçom endogámica.

Venturosa viagem pois à vindoira tripulaçom leitora, precursora dessa Galiza resoluta que aspira a expressar-se através do seu idioma vernáculo, transfronteiriço e vagabundo, liberada da estreita morada provinciana que lhe foi reservada pola autoridade ao mando

Muita é a matéria digna de comentário em O escándalo do léxico galego inabordável aliás numha breve resenha divulgativa. O meu desejo é que a obra mereça um dilatado favor por parte do público leitor que faga justiça à solidez argumental de umha obra bem mais complexa e rica do que o simples manual divulgativo como se apresenta. Auguro-lhe longa vida e um lugar de honra em qualquer biblioteca galega.

Venturosa viagem pois à vindoira tripulaçom leitora, precursora dessa Galiza resoluta que aspira a expressar-se através do seu idioma vernáculo, transfronteiriço e vagabundo, liberada da estreita morada provinciana que lhe foi reservada pola autoridade ao mando, mais atenta desde há tempo aos fastos do calendário comemorativo que ao language planning para o que foi criada.

 

Notas

1 Carlos Garrido: O escándalo do léxico galego. Análise da sua lastimosa degradaçom histórica e denúncia da sua dolosa falta de regeneraçom atual, Laiovento S. L., 31/01/2022, 498 páginas.

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