Cristos esquálidos definitivamente mortos. Pequeno ofício de Semana Santa

Retablo de Isenheim, de Matthias Grünewald Dominio Público

Há Cristos definitivamente mortos na história da arte. Cristos sem ressurreiçom possível. O artista apresenta-nos a aflitiva imagem de um cadáver prestes à irremediável descomposiçom. Imagens desacougantes para o observador que, escándalo intolerável para o crente.

O paradigma pode ser Cristo morto na tumba, de Hans Holbein o Novo (1497-1543) ou o cadáver hirto da Lamentaçom sobre Cristo morto de Andrea Mantegna (c. 1431-1506), ambos jazentes e lacerados, ou talvez ainda a tenebrosa crucifixom nocturna do Tríptico de Isenheim de Matthias Grünewald (1475-1480). Quase coetâneos os três, testemunhas do tránsito da consciência medieval para a renascentista, no tempo de Martim Luther e Erasmo de Roterdám quando a fé medieval contendia com o livre arbítrio e a servidom em terra alheia com a incipiente liberdade do burgo. Três estampas memoráveis do ocaso da resurreiçom gloriosa no chumbo terreal da carniça sem transcendência.

O Cristo morto na tumba de Holbein mostra um cadáver jazente sobre um sudário encerrado numha urna ajustada ao corpo sem vida; o rosto contraído pola dor, olhos e boca abertos, caixa torácica proeminente, epigástrio afundido. No meio e meio do corpo cadavérico a mão direita denegrida estica o ossudo dedo meio como incapacitado para se fechar em paz. O pungente expressionismo da imagem sugere um cadáver recém-baixado da cruz com signos de extremo sofrimento. Um lívido jogo de luz matizada em sombras acentua o dramatismo da cena. A imagem transtornou Dostoievski: aquele despojo torturado nom podia ressuscitar!

A cena prévia a este Cristo jazente bem poderia ser a do crucificado de Isenheim de Matthias Grünewald. Observamos um Cristo torturado sobre umha tosca cruz, os braços dilacerados tensionam extremamente os dez dedos que se abrem como gadoupas, o epigástrio tensionado, os pés cruzados sobre o madeiro parecem sangrar ainda. Á direita, Maria, de velo branco e rosto lívido parece abater-se cara atrás amparada por Sam Joám. Ao pé mesmo da cruz, Maria Madalena implora com as mãos cruzadas em alto. Na predela do tríptico contemplamos o piedoso descendimento ao sepulcro do corpo perfurado de feridas. A imagem sobre a cruz proclama a inumana dor do justiçado.

A Lamentaçom sobre o Cristo morto de Mantegna expom o corpo jazente em extremado escorço com a planta dos pés em primeiro plano. O corpo está coberto de cintura para abaixo com um pano sabiamente enrugado onde destaca sem falso pudor o vulto do sexo, com a cabeça ao fundo ornada de abondosa cabeleira. Pálpebras serenamente fechadas, corpo branco, marmóreo. À direita Maria, Joám e Madalena somem-se em discreto pranto contido. A encenaçom sugere serenidade frente ao inevitável. A figura, rotundamente escultórica, arquitectónica quase, parece fugir do patetismo. Poderia ser um cadáver exposto para dissecçom num Teatro Anatómico clássico como o da Universidade de Bolonha.

O interminável poder evocador do Gólgota ultrapassa séculos de arte e piedade ante a morte incompreensível. Há quadros onde a cor e o patetismo gestual alcançam cimos insuperáveis. Pensemos no maravilhoso descendimento de Van der Weidem, vestes sumptuosas, lágrimas a fio, figuras desvairadas quebradas pola dor. Em outros, a intensidade da dor torna-se equilibrada serenidade como no Cristo de Velázquez que comovia Unamuno.

Lamentación sobre Cristo morto, de Andrea Mantegna Dominio Público

Fôrom as três imagens de Holbein, Grünewald e Mantegna as que atraírom a aguda visom analítica de Júlia Kristeva no seu ensaio clássico sobre a depresom: Sol negro. Depresom e melancolia1. Umha penetrante incursom na tristeza canibal “que nos morde o coração”, como na emocionanteTirana Saudade de José Afonso. O capítulo quinto de Sol negro, titulado “O Cristo morto de Holbein”, disseca o perdurável impacto do quadro na atormentada sensibilidade de Dostoievski. A imagem retorna no romance O idiota quando o príncipe Mischkin — um inocente, transunto da alma cristã de Dostoievski — exclama ante umha reproduçom do quadro da Holbein: Este quadro pode fazer perder a fé a mais de um!

Conhecemos a data e circunstáncias em que Dostoievski bateu com o quadro de Holbein no museu de Basileia e no repentino fascínio que sobre ele exerceu sobre o escritor. Em 1867, recém-casado com Anna Grigorieva Snítkina, a quatro meses apenas de tê-la conhecido, Dostoievski decidiu refugiar-se em Europa fugindo do monte de dêvedas e compromissos que o perseguiam. Dous anos depois nascia no seu exílio europeu a sua primeira filha que apenas ia viver três meses, sumindo o casal em profundo abatimento. Dostoievski debatia-se naquele tempo contra o europeísmo niilista, personificado em Turgueniev e Herzen, que desafiava abertamente as suas conviçons eslavistas e cristãs. Começa a trabalhar no Idiota como arquétipo moral cristao, doente de epilepsia, por sinal, como o ele próprio.

O acidental encontro do romancista com o Cristo de Holbein, vem pontualmente recolhido na monumental biografia de Joseph Frank. Foi por mediados de agosto de 1867, recém-chegado o casal a Genebra, Fiódor e Anna desviam-se a Basileia para visitar a catedral e o museu. Foi ali onde Fiódor tropeçou com o Cristo jazente de Holbein, o impacto foi imediato e a turbaçom experimentada permanente. Conta-o Anna no relato biográfico daquelas jornadas: “Fiódor apaixonou-se completamente com a imagem, e no seu desejo de perscrutá-lo acercou umha cadeira ao quadro e temim que nos fossem multar como aqui costumam”. A visom do jazente emergirá no Idiota como um abuso intolerável: “...umha imensa, implacável e embrutecida besta... umha máquina... esmaga e devora um grande ser ...digno de toda a terra, que acaso fosse criada unicamente para ele2. O sem sentido da morte definitiva de Cristo devastou a atribulada fé cristã que Dostoievski tentava defender contra o ateísmo revolucionário que impregnava a intelectualidade russa coetánea.

Outros som os tempos neste primeiro quartel do século XIX em que vivemos. A pós-verdade líquida, a crise do grande relato, o ocaso do relato cristão, amortecérom o escandaloso magistério do crucificado impotente e a sua insolente inoportunidade que figera exclamar o Grande Inquisidor dos Irmaos Karamazov: porquê vês molestar-nos?

Relemos Hans Küng, o mais razoável teólogo do século XX e porventura o mais impregnado de cultura humanística. Tomamos Ser cristão3, a sua brilhante apologia do relato cristão perante “o repto dos humanismos modernos”. Na página 146 topamos com umha alusom ao estarrecente pesadelo de Jean-Paul Richter onde o Cristo ressuscitado, interpelado pola multidom dos mortos de todos os cemitérios confessa desconsolado nom ter achado a Deus depois de ter sondado o cosmo inteiro:

Cristo, nom há Deus? — Nom há, respondeu.

No capítulo dedicado ao sofrimento vital na sua autobiografia intelectual O que eu creio4, volta Küng a repensar na cena da crucifixom. O grande teólogo suíço confessa que preferiu um impassível ícone grego para presidir o seu escritório antes que um dolorido crucificado. Era também a escolha dos primeiros cristãos lecciona-nos. Nom há representaçons do crucificado antes do século V, os primeiros cristaos preferiam imaginar o Cristo como um inocente pastor, nom como um despojo de justiçado. Só o gótico tardio, como em Grünewald, cede ao fascínio do suplício injusto. Arrenega Küng da ética cruzada e opom-lhe a própria resistência de Jesus arrastado ao suplício.

Como Kierkegaard, como Unamuno, Dostoievski nom concordaria com a olhada humanista, do teólogo, contrária á morbosa exaltaçom da dor. Estas três grandes testemunhas cristãs prefeririam com certeza a provocaçom da primeira carta de Paulo aos coríntios: “enquanto os judeus pedem milagres e os gregos sabedoria, nós anunciamos o Cristo crucificado, escándalo para os judeus, loucura para os pagaos". A circunspecta olhada centro-europeia de Küng, temperada na reflexom teológica e a ética kantiana da paz universal prefere fugir do sádico patetismo do corpo macerado pola tortura, da piedade barroca que impregna ainda a crença cristã em Espanha: a teatralidade de Semana Santa como parábola da dor de viver e da morte antecipada dos desaparecidos. Dos finadinhos, como dizemos em Galiza com insuperável piedade polos que já nom estám.

1 Julia Kristeva, Sol negro. Depresión y melancolía, Monte Ávila Editores, 1991, Caracas. Reeditada por Wunderkammer Editorial, 2017, Barcelona.

2 Joseph Frank (1997): Dostoievski. Los años milagrosos, 1865-1871, Fondo de Cultura económica, México.

3 Hans Küng (1996): Ser cristiano, Editorial Trotta, Madrid.

4 Hans Küng (2011): Lo que yo creo, Editorial Trotta, Madrid

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.