Cumes de desespero

Sol negro da melancolia Dominio Público Piqsels

Estou desprovido de fé e portanto nom podo ser feliz porque um homem ditoso nunca chegará a temer que a sua vida seja um vagar sem sentido cara a morte inexorável. Nom me foi dada em herdança nem um deus nem um ponto de apoio na terra desde o qual poder acenar a Deus; nem herdei tampouco o furor disfarçado do céptico, nem as astúcias do racionalista, nem o ardente candor do ateu. É por isso que nunca me atreverei a lançar a primeira pedra nem àquele que crê em cousas nas que eu duvido nem a quem idolatra a dúvida como se esta nom estiver rodeada de trevas. A pedra lançada alcançar-me-ia a mim mesmo, posto que de umha cousa estou certo: a necessidade de consolo do ser humano é insaciável”.

Quem deixava por escrito toda a amargura do sem sentido, Stig Dagerman, decidia pôr fim á sua vida asfixiando-se no garagem no 4 de Novembro de 1954, tinha daquela 31 anos. O artigo, cujo primeiro parágrafo encabeça este breve resenha, “A nossa necessidade de consolo é insaciável1, autêntico testamento vital da sua personalidade torturada, fora publicada dous anos antes num semanário sueco para as famílias. Suprema ironia daquele anarco-sindicalista que uns dias antes de se suicidar publicava um sarcástico poema titulado “Cuidado com o cam” em que glosava o estúpido comentário de um edil municipal que se lamentara publicamente de haver gente ainda que mantinha um cam apesar de viver da ajuda municipal. Matemos todos os cans, respondia Dagerman, ou melhor ainda, eliminemos os seus donos.

Stig Dagerman (1921- 1954) é filho directo dos inquietos anos da República de Weimar, do ascenso e colapso do regime nazi e da devastadora pós-guerra que impregnou as consciências da sensaçom de derrota e sem sentido.

Stig Dagerman amava as sociedades solares como a espanhola e a italiana e adorava os seus movimentos libertários que o inspirariam de por vida. Em 1943, o escritor casava com Annemarie, filha dos anarquistas alemáns, Ferdinand e Elly Götze. Quando nova, Annemarie acabaria instalando-se com os seus pais a Barcelona em 1934 com apenas dez anos, em plena revoluçom de Astúrias. A vida de Annemarie é um assombroso relato do terror e transumáncia que eu convidaria ao leitor a conhecer como exercício de actualizaçom num tempo quase inconcebível hoje. O seu testemunho vital é-nos oferecido numha recente entrevista publicada no jornal da CNT2. Impressiona o relato e mais talvez o poderoso atractivo transmitido pola imagem de Annemarie que o acompanha.

A ediçom espanhola de “A nossa necessidade de consolo é insaciável” vem acompanhada de alguns anexos pertinentes á obra e biografia de Stig Dagerman entre os quais quero destacar a testemunha de Federica Monseny, íntima amiga e confidente de Annemarie, a amante esposa de Stig e nai de dous dos seus filhos. Stig acabaria separando-se dela para unir-se à irresistível Anita Björk, celebrada artista cinematográfica, três vezes casada e amante circunstancial de Graham Green.

A texto de Federica Montseny publicado em anexo na ediçom de “Pepitas de Calabaza” procede da revista do exilo anarquista espanhol em Toulouse, Cenit, ano de 1954, o mesmo do suicídio de Stig Dagerman. Federica interpela o suicida desde a pungente identificaçom com a esposa abandonada: “Onde estava Anita Björk?, pergunta.

O ideário moral que inspirara as esperanças emancipatórias parece ter caducado nesta época de expectativas decrescentes e ansiedade apocalíptica

O texto de Federica Montseny, “Stig Dagerman, a tragédia de um génio”, repassa com respeito e admiraçom o percurso vital do escritor a quem conhecera em 1950, o mesmo ano em que Stig ingressava numha clínica psiquiátrica para tentar escorrentar os seus fantasmas mentais. O texto de Federica, primeira mulher ministra em toda a Europa Ocidental, transluz amorosa proximidade com Annemarie e com Stig: “a mulher-nai do homem-filho marcado cruelmente polo génio” anota agudamente. Aquele precoce génio literário que chegou a manter correspondência com personalidades tam decisivas como Camus, Malraux, Hemingway, Faulkner e Steinbeck, recorda Federica.

Solidariedade, apoio mútuo, anarcofeminismo, autogestom, anarcossindicalismo enumera em titular a maneira de ideário o jornal da CNT que estamos a citar. Boa síntese do ideal político que inspirou Stig e o seu círculo familiar, incluída Federica. Umha olhada fraternal e internacionalista apenas reconhecível hoje em sociedades como a nossa blindadas por fronteiras circundadas de desesperados anónimos, vítimas da violência e a miséria. O ideário moral que inspirara as esperanças emancipatórias parece ter caducado nesta época de expectativas decrescentes e ansiedade apocalíptica.

A imagem de Stig pondo fim prematuro à sua vida trague á memória a fraternal admoestaçom póstuma de Rainer Maria Rilke ao seu caro amigo epistolar Wolf Von Kalckreuth3, aprendiz de poeta e suicida aos dezanove anos: “... nom te envergonhe agora roçares-te com os mortos, eles que soubérom perseverar até o fim...cruza com eles tranquilamente a tua olhada, como de costume...Quem fala de vitórias?. Resistir é todo”. Resistirmos pois, precário remédio do inconveniente de ter nascido.

1 Stig Dagerman: Nuestra necesidad de consuelo es insaciable; “Pepitas de Calabaza”, Logroño, 2020. Em Espanha fôrm publicados também La serpiente (Alfaguara, 1990) e Niño quemado (Nórdica , 2021) da sua mesma autoria. O opúsculo, um texto de culto em círculos libertários, é disponível actualmente na Rede: https://archivo.argentina.indymedia.org/uploads/2011/03/nuestra_necesidad_de_consuelo_es_insaciable.pdf

2 https://www.cnt.es/noticias/conversacion-con-annemarie-dagerman-una-nina-en-la-revolucion-espanola/

3 O poeta suicida Wolf Von Kalcreuth era filho do pintor Leopold, conde de Kalckreuth, e da condessa Berta York de Watenberg. Á parte da sua correspondência epistolar com Rilke, Wolf deixou umha mão-cheia de poemas e traduçons de Verlaine e Baudelaire:

https://depoesiasyotras.blogspot.com/2011/06/requiem-para-el-peoeta-wolf-von.html?showComment=1635271001317#c1106037889710940900

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