O Reino da Lotharingia passa de leve polas prodigiosas Crónicas do Sochantre:
“En Lorena hai que faguer o nó no aer e meter lazo pola cachola do penado. É que ali rexe a lei de Boloña —apostilhou, sabido, o escribano de Dorne — Ven nos textos: Lotharingia reget lege romana”.
A Lotharingia que chegou a nós é umha ferida cicatrizada a maneira linha de sutura entre a Francónia e a Germania
O Reino carolíngio da Lotharingia (855-959) foi um dilatado domínio real que abarcava os actuais territórios de Holanda, Bélgica, Luxemburgo e a Lorena — topónimo que daí procede — junto com a totalidade da Renánia e o Sarre, já na Alemanha. O seu breve fulgor coincide com o milagre jacobeu: entre o episcopado de Teodomiro, descobridor da sepultura do Apóstolo (818-847), e o de Sisnando Méndez de Íria, da linhagem dos condes de Présaras (951-968); pouco antes de ocupar a sede compostelana Pedro de Mezonzo.
A Lotharingia que chegou a nós é umha ferida cicatrizada a maneira linha de sutura entre a Francónia e a Germania. A ferida fora aberta por Napoleon e reaberta a sangue e ferro, em 1870, 1914, 1939 quando a Germania tentou saldar todas as afrontas. A terra batida e dilacerada durante 75 anos é hoje viveiro institucional do projecto europeu presidido polo assisado lema de unidade na diversidade. A diversidade dá-se por descontada, a unidade está por ver.
A Lotharingia actual é umha restra de pequenas cidades afanadas na prática da mestiçagem cultural sob a atenta vigilância do eixo Paris-Berlim em papel de fideicomissário e garante de um projecto de incerta trajectória. Para bem ou para mal o incómodo sócio británico despediu-se de maus modos atacado por morbosas saudades imperiais ou incapacitado talvez para entender qualquer cousa que nom seja umha impossível Commonwealth com capital em Londres.
A Uniom Europeia nasceu da vontade de concórdia e de amortecimento das arestas identitárias ao amparo de dous princípios aglutinantes: legalidade e moeda, direito comunitário e euro. O aprendizado da convivência nem sempre é fácil ameaçado como está por ocasionais arrebates de saudades introspectivas e conflitos de competências. Jean Monnet, um dos pais fundadores da Uniom, já o augurara: A Europa forjará-se nas crises e será o resultado das soluçons que lhes vaia dando. E antes: Os homens só aceitam mudanças quando se vem forçados pola necessidade e só reparam nesta em momentos de crise. Sabedoria dialéctica nascida do desengano histórico.
O aprendizado da convivência nem sempre é fácil ameaçado como está por ocasionais arrebates de saudades introspectivas e conflitos de competências
Estrasburgo, Luxemburgo e Bruxelas formam o triángulo do poder comunitário. Entre as três repartem-se a superfície dedicada ao debate parlamentar num cerimonioso torneio de prosápias encontradas. Do milhom largo de metros quadrados que ocupam os serviços parlamentares — um incessante formigueiro de um quilómetro de lado — Bruxelas concentra 56%, Estrasburgo 29% e Luxemburgo 15% da totalidade. Estrasburgo acolhe ademais o Tribunal de Direitos Humanos e Luxemburgo o omnipotente Tribunal de Justiça, e o Banco Europeu de Investimentos reservando-se Bruxelas as funçons executivas: Governo e Comissom.
Atravessamos a fronteira alemá e dirigimo-nos a Frankfurt — ou Francoforte se preferimos o sonoro classicismo do nosso idioma — para contemplar a orgulhosa torre do BCE (185 metros de altura) e, à par dela, o discreto edifício do Bundesbank desenhado polo arquitecto catalám Josep Lluís Mateo. Dirigimo-nos depois a Karlslruhe — fronteira com França, quase enfrente a Estrasburgo — sede do Tribunal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha, o TCFRFA, o Bundesverfassungsgericht, em dissuasória prosa germânica. Temível adversário caso recear a mais mínima ameaça ao sagrado texto constitucional que lhe foi encomendado.
Um subtil jogo de equilíbrios que se duplica ainda com entrambilicadas fórmulas de promoçom aos órgaos de poder: um Parlamento encabeçado por Itália, a Comissom comandada por Alemanha, o BCE gerido por França, o Conselho de chefes de Estado presidido por Bélgica. Equilíbrio rotacional periodicamente testado em cada revezamento.
Será capaz de reagir com eficiência tam imponente e frágil equilíbrio ante os descomunais desafios que enfrenta, como a Grande Recessom desatada no 2008 e o Grande Confinamento em que estamos mergulhados? Abrirám-se deveras os airbags imaginados por Jean Monnet?
A resposta à intromissom do TCF de Karlsruhe nom tardou em chegar. A presidenta do BCE, Christine Lagarde, declarava em nome do BCE que acolhia “sem imutar-se” a aludida interferência, e o vice-presidente De Guindos que o BCE era “independente, de governos e lóbis"
Houve ocasiom de comprová-lo nestes dias: 5/05/2020, o Tribunal Constitucional de Karlsruhe declara suspeito de vulneraçom da legalidade o instrumento-chave da política monetária do BCE para situaçons de crise: a compra massiva de títulos soberanos e corporativos para travar o ataque dos mercados. Um programa lançado no 2015 sob a presidência de Mario Draghi para tentar superar a crise da Grande Recessom que o pavoroso choque do Grande Confinamento volve a pôr de actualidade.
A declaraçom do Tribunal Constitucional de Karlsruhe foi recebido com estupor nas instáncias comunitárias, nom só por questionar o imprescindível programa de Mario Draghi senóm sobretodo pola ameaça implícita á legitimidade do instrumental da política monetária do BCE.
O BCE pareceu nom dar-se por aludido de entrada; o excelente programa Draghi, em vigor entre 2015 e dezembro de 2018, fora automaticamente reactivado pola sua sucessora Christine Lagarde com compras de dêveda soberana por importe de 20.000 milhons cada mês. Nada que nom fagam todos os grandes Bancos Centrais a começar pola Reserva Federal norte-americana. A inesperada intromissom do Tribunal de Karlsruhe desvendava em forma flagrante o atávico temor da judicatura germânica a dous fantasmas económicos particulares: O denominado risco moral que premia o dilapidador e incentiva a indisciplina e o inveterado terror à inflaçom. Injectar dinheiro fora da mais estrita disciplina reaviva dolorosos temores germánicos e desencadeia reflexos introspectivos.
Além de impertinente, o desafio do TCF, carecia de fundamento legal. A tarefa essencial encomendada ao BCE é a da custódia da estabilidade de preços — artigo 127 do Tratado de Funcionamento1 — mas, é importante sublinhá-lo, mantendo o índice de inflaçom “below, but close to 2% over the médium term2. Absorto na interpretaçom do texto constitucional, o Tribunal de Karlsruhe esquecia o autêntico perigo com que se enfrenta a Uniom: o abismo deflacionário em que o Japom se debate actualmente, incrivelmente ausente no ditame. Por nom falar da flagrante vulneraçom da hierarquia competencial que reserva a preeminência da legalidade comunitária ao Tribunal de Justiça da Uniom, como estabelece o artigo 258 e seguintes do Tratado da Uniom.
Detrás do BCE, a Comissom europeia presidida por Ursula von der Leyen também se manifestou á altura do desafio sanitário e económico apressando-se a dotar um fondo de recuperaçom de 750.000 milhons
A resposta à intromissom do TCF de Karlsruhe nom tardou em chegar. A presidenta do BCE, Christine Lagarde, declarava em nome do BCE que acolhia “sem imutar-se” a aludida interferência, e o vice-presidente De Guindos que o BCE era “independente, de governos e lóbis”. No 13 de Maio finalmente, o próprio TJUE respaldou explicitamente a política monetária do BCE invocando a tal efeito o artigo 123 do Tratado a maneira de recordatório de quem ostenta a preeminência legal comunitária.
Uns dias depois, em 4/06/2020, o BCE retomava com vigor renovado a iniciativa económica ante a emergência pandémica incrementando a dotaçom desde os 750.000 milhons de euros acordados em 18/03/2020 até os 1.350 milhons, a somar aos 20.000 milhons injectados cada mês segundo o programa em vigor. O novo teito de 1,35 bilhons é realmente impressionante que supera à totalidade de efectivo actualmente circulante na Uniom3.
Lagarde aproveitou a sua comparecência para avisar que a queda da economia europeia em 2020 podia situar-se entre o 8% e o 12% do PIB comunitário e para recomendar de passagem ao Constitucional alemám a leitura das actas do BCE para comprovar o rigoroso respeito à regra da proporcionalidade nom inflacionária que deve guiá-lo.
Afinal, a Lotharíngia primordial parece confirmar a imagem de Jean Monnet: umha Europa plural e conflituosa que avança de crise em crise até o ponto de nom retorno, tanto por ausência de alternativa como por respeito aos valores que proclama
Detrás do BCE, a Comissom europeia presidida por Ursula von der Leyen também se manifestou á altura do desafio sanitário e económico apressando-se a dotar um fondo de recuperaçom de 750.000 milhons: 500.000 de transferências sem devoluçom e 250.000 em créditos reembolsáveis. Espanha aspira a captar 77.000 milhons das transferências (15%) e 63.000 milhons dos créditos (25%) dos préstimos; 140.000 em total equivalente a 11% do PIB. O pacote da Comissom inscreve-se num ambicioso projecto de orçamento plurinacional comunitário 2021-2027 por importe de 1,85 bilhons em espera de aprovaçom.
Afinal, a Lotharíngia primordial parece confirmar a imagem de Jean Monnet: umha Europa plural e conflituosa que avança de crise em crise até o ponto de nom retorno, tanto por ausência de alternativa como por respeito aos valores que proclama.
Notas
1 http://www.concorrencia.pt/vPT/A_AdC/legislacao/Documents/Europeia/Tratado_Funcionamento_U_E.pdf
2 https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/other/monetarypolicy2011en.pdf?4004e7099b3dcdbf58d0874f6eab650e
3 Em 2019 havia 24,1 milhares de milhons de bilhetes em circulaçom por um valor total de 1,3 bilhons de euros:
https://www.ecb.europa.eu/pub/annual/html/ar2019~c199d3633e.en.html#toc51