De quando Espanha inaugurou o liberalismo europeu

'Fusilamiento de Torrijos y sus compañeros en las playas de Málaga' Dominio Público Museo del Prado

Nos começos do século XIX, umha Espanha depauperada e desnortada conseguia inscrever duas palavras-chave nos dicionários de todo o mundo: guerrilha e liberalismo

Nos começos do século XIX, umha Espanha depauperada e desnortada conseguia inscrever duas palavras-chave nos dicionários de todo o mundo: guerrilha e liberalismo. A primeira para nomear a mobilizaçom popular armada e informal contra exércitos de ocupaçom disciplinados e poderosos; a segunda para designar governos sujeitos ao império da lei emanada do povo. Foi aquele um momento estelar que elevou a Espanha proto-romántica a paradigma das liberdades frente ao pacto reaccionário que vigorava na Europa pós-napoleónica.

Finalizado o ciclo revolucionário 1791-1793 aberto pola Constituiçom francesa de 1791 e o regime de Terror de 1793 e desbaratada a aventura imperial napoleónica, a Europa dinástica e absolutista aprestava-se a afogar o vírus insurreccional que ameaçava a ordem restabelecida. O Antigo Regime negava-se a perecer a mãos da plebe finalmente apouvigada.

Há uns meses via a luz um brilhante opúsculo1 dedicado a resgatar um texto fulcral de teoria política: A liberdade dos modernos (1819) de Benjamim Constant (1767-1830). Constant, suíço de nascimento e francês de exercício e vocaçom, viveu umha vida vertiginosa de amores sucessivos ou simultáneos, duelos e conspiraçons, por onde desfilárom Napoleom e madame Staël (amante de Constant, como a própria irmã desta), Goethe e Schiller e, finalmente, Luís Felipe de Orleans a cuja cerimónia de entronizaçom nom quixo faltar Constant, levado em angarelhas na ocasiom em homenagem ao novo rei constitucional. Corria o ano da insurrecçom de 1830 imortalizado por Eugène Delacroix num quadro de todos conhecido, A Liberdade guiando o povo.

A vida de Benjamim Constant cobre esse interregno de ordem vigilada da França pós-napoleónica que decorre entre a restauraçom borbónica de Luís XVIII de 1814-1815 e o brote revolucionário de 1830 que derrubou o último Bourbon da dinastia, Carlos X, para entronizar o rei cidadao Luís Felipe.

Na Espanha, o ideal liberal, engendrado na mobilizaçom geral de 1808 e concebida na Constituiçom de 1812, debatia-se contra a confabulaçom absolutista juramentada na Santa Aliança (Paris, 1815)

Na Espanha, o ideal liberal, engendrado na mobilizaçom geral de 1808 e concebida na Constituiçom de 1812, debatia-se contra a confabulaçom absolutista juramentada na Santa Aliança (Paris, 1815) do czar Alexandre I, os Impérios Austríaco e Prussiano e, finalmente, dos Reinos italianos e finalmente confirmada no Congresso de Verona de 1822.

A entente contra-revolucionária vai repor Fernando VII no trono de Madrid em 1814 e este nom perderá tempo em derrogar da Constituiçom de 1812 dando passo ao sexénio absolutista. O contragolpe constitucionalista chegará decontado com o pronunciamento de Riego o primeiro de Janeiro de 1820. Fernando VII viu-se forçado a restaurar a Constituiçom de Cádis que abriu o triénio liberal 1820-1823. Cinco anos antes, no mês de Setembro de 1815, o pronunciamento liberal de Juan Díaz Porlier fracassara na Corunha, castigado com ignominiosa condena por enforcamento depois de juízo sumaríssimo, prévia degradaçom da sua condiçom militar. Corriam tempos de destemidos conspiradores e temerários patriotas empenhados em submeter o poder monárquico absoluto à soberania constitucional emanada do povo, maioritariamente ausente, aliás.

A fugaz primavera constitucional do Triénio Liberal 1820-1823 seria finalmente abafada pola força expedicionária francesa de Os Cem Mil Filhos de Sam Luís, enviada por Luís XVIII com a bençom da Santa Aliança consagrada em Verona. A expediçom, inspirada por Chateaubriand e comandada polo Duque de Angulema, dava passo á Década Ominosa que finalizaria em 1833 com o falecimento do calamitoso rei Fernando e a Regência de Maria Cristina no intre da menoridade de Isabel II.

O fracassado intento de reverter a Década Ominosa legou-nos um sentido poema romántico e um quadro comovedor. O protagonista da desventurada tentativa foi José Maria Torrijos, regressado do seu exílio britânico para a infausta ocasion com um punhado de homens em dezembro de 1831. Nove dias depois será fusilado com quarenta e oito fiéis na praia de Sam Andrés de Málaga. O poema de Espronceda — Helos allí: junto a la mar bravia cadáveres están ... — e, sobre todo, o emocionante quadro retrospectivo de Antonio Gisbert (1888) servirám de digno epitáfio áquela aventura serôdia que pretendia restabelecer a monarquia constitucional. Um ideal perigoso naquela altura.

O pequeno livro do professor Rivero ilumina com sábia concisom o texto e o contexto do histórico discurso de Benjamin Constant em defesa do liberalismo constitucional contra a dupla ameaça do despotismo revolucionário jacobino e do retorno da antiga ordem, absolutista e clerical. Umha monarquia constitucional ao estilo británico como remédio á amarga disjuntiva entre o poder da plebe e o poder omnímodo cifrava as esperanças de Benjamin Constant. Era a mesma liberdade dos modernos que inspirara os Riego, Porlier e Torrijos.

A Europa da Restauraçom, 1814-1830, foi um período de agudo confronto teórico entre os Lafayette, Benjamin Constant, François Guizot, alinhados em torno ao constitucionalismo monárquico, e os Bonald, Chateaubriand e Joseph de Maistre congregados arredor do Trono e o Altar. Foi entom quando Espanha arvorou ante Europa a bandeira da liberdade.

O triunfo liberal na Espanha e em Itália ecoou de imediato no Porto desencadeando a insurrecçom militar em agosto de 1820

O dia um de julho de 1820, dia de Santo Teobaldo, padrom dos carvoeiros, rebentava na vila de Nola, próxima de Nápoles, umha insurrecçom popular. O movimento, encirrado pola sociedade secreta dos carvonari, conseguiu entronizar como monarca constitucional um filho de Carlos III de Espanha de nome Fernando, obrigado-o a adoptar a Constituiçom espanhola de 1812 e ceder o trono em seguida ao seu filho Francisco. Ao tempo, as tropas carbonárias entravam vitoriosas em Nápoles arvorando a bandeira vermelha, azul e negra em homenagem ao fogo da caridade u fume da esperança e o negro do carbom gremial. Puro romantismo insurgente e libertário, devoto de simbolismos.

O triunfo liberal na Espanha e em Itália ecoou de imediato no Porto desencadeando a insurrecçom militar em agosto de 1820, confirmada em breve em Lisboa. O Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa de 15 de dezembro de 1820 é um texto impregnado de retórica patriótica e solenes protestos de lealdade ao rei D. João VI infelizmente forçado a residir em Brasil desde 1807. A patriótica proclamaçom tem a tonalidade de um saudoso lamento pola orfandade anárquica em que se encontrava o país. Provisoriamente, adoptar-se-á a Constituiçom espanhola de 1812, no intre da aprovaçom das Bases constitucionais de março de 1821 que serviria de prelúdio á proclamaçom constitucional do ano seguinte.

Naquele mesmo ano de 1821, Jeremy Bentham animava os portugueses a seguirem o exemplo espanhol: ¡Portugueses, ouvide a minha voz desde a Inglaterra (...) Tomade exemplo dos vossos amigos de Nápoles, adoptade a Constituiçom Espanhola de 1812, adoptade-a toda inteira...!

Acabarám adoptando os termos liberal e liberalismo como categoria política consagrada, em justo reconhecimento a aqueles temerários militares e conspiradores que conseguírom elevar Espanha a paradigma de paese di libertá

Desde os conciliábulos das sociedades secretas, a Constituiçom de Cádis chegava em março de 1821 ao Piemonte, o outro grande reino italiano junto com o Nápoles, ou das Duas Sicílias, e obrigava o rei Victor Manuel I a abdicar no seu irmão Carlos Félix. A resistência espanhola de 1808 e a Constituiçom de 1812 consagrárom Espanha como paese di libertá2

Na esteira do pronunciamento de Riego e do Triénio Constitucionalista que se seguiu, a voz dos liberais franceses partidários da liberdade dos modernos e a ala radical dos whig britânicos acabarám adoptando os termos liberal e liberalismo como categoria política consagrada, em justo reconhecimento a aqueles temerários militares e conspiradores que conseguírom elevar Espanha a paradigma de paese di libertá.

1 Ángel Rivero (2019): Benjamin Constant. La libertad de los modernos, Alianza Editorial. Introducción, traducción y notas de Ángel Rivero.

2 Gonzalo Butrón Prida: “La inspiración española de la revolución piamontesa de 1821”, Universidad de Cadiz, 2012. Disponível na rede é umha excelente introduçom ao impacto do primeiro liberalismo espanhol na Itália.

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