Dor de viver e ataraxia

Dominio Público

O desacougo ante a obriga de viver é umha sensaçom que acomete ao ser humano umha vez que verifica a certeza da sua finitude ao final da infáncia. O paraíso da infância é esse tempo onde a inconsciência ainda é permitida e o futuro se confunde com um presente sem fim.

A cultura clássica que nos impregna nom podia deixar de indagar no desconforto inevitável que acompanha a tarefa de viver. Cancelar a dor de viver, praticar a ataraxia, é o nobre propósito que inspira à filosofia clássica do abandono do balbordo do viver. O epicurismo e o estoicismo som as duas sendas paralelas da vida razoável que nos legou a sabedoria helénica, actualiza na antiguidade tardia nas Meditaçons de Marco Aurélio1 que agora podemos reler a prazer na biblioteca universal da internet. Os seres humanos somos filhos da precariedade e a finitude a apartar-se a tempo da ansiedade do viver foi património dos sábios que nos precedêrom.

Longe da rede cultural tardo clássica que nos educou na arte do sobreviver floresce a impassível olhada Zen, nascida da escola budista chinesa e adoptada afinal com fervor em Japom e nos EUA. Nela se prescreve a prática de meditaçom como via de fugida da própria consciência e o refúgio no silêncio sem resposta do universo. Amortecer a perturbaçom dos sentidos, confundir-se com o próprio alento, é a estratégia que seduz arestora à legiom de altos executivos empachados de êxito e atenazados pola ansiedade. Um retorno tardio ao contemptus mundi que inspirou o ascetismo e a vida retirada durante séculos.

A literatura é testemunha fiel desse desacougo existencial que nos acompanha de por vida. Fernando Pessoa, explorador radical do sem sentido imaginou no poema O grande sol na eira, o alívio da vida elementar longe do convívio humano: O grande sol na eira Talvez seja o remédio...Não quero quem me queira, Amarem-me faz tédio (...) O resto é gente e alma (...) Tira-me o sonho e a calma E nunca é o que é.

O barroco percebeu com ímpar lucidez o peso absurdo do jugo do viver. Ayer se fué; mañana no ha llegado; hoy se está yendo sin parar un punto; soy un fue, y un será, y un es cansado (...) presentes sucesiones de difunto, meditava com intensidade superlativa aquele impar desenganado qu foi Francisco de Quevedo (1580-1645). Que distáncia sideral á estratégia do seu coetáneo Miguel de Cervantes (1547-1616) que ensaiou a proteger-se das desventuras da vida com a resistente couraça da ironia!. Ironia e desengano.

©

Nos nossos tempos temos o contributo de um Emil Cioran que apenas achega novos argumentos à gramática do desespero embora nos facilite a entrada na olhada metafísica de Heidegger de sermos seres arrojados ao mundo desumano do dasein, simples estarmos aí em soledade defrontados ao fluxo do viver.

E, naturalmente, a literatura psicanalítica. Um texto clássico da psicanálise explora os lúgubres meandros do sem sentido: Sol Negro. Depresión y melancolía de Julia Kristeva2. O livro da reconhecida psiquiatra búlgara explora o mundo espesso da melancolia — a antiga azedia monacal— presidido pola poderosa imagem do sol negro da melancolia do sem sentido.

A tentaçom da fuga do sem sentido da vida inspirou todas as filosofias da retirada. A filosofia budista representa a figura do iluminado com os dedos polegar e índice aparelhados, os olhos cerrados e a mente instalada na harmonia cósmica como supremo refúgio da inconsistência do viver e do pesar de existir.

O Pessoa–Álvaro Campos mais metafísico descreve no poema Tabacaria3(1928) este sentimento de alheamento irremediável: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Naquele dia o nada passeava nu por Lisboa, Fernando deixou constáncia.

Na filosofia greco-latina que nos sustenta, o conceito que expressa a fugida da vida é a ataraxia, ausência de inquietude, indiferença, desprendimento. É a via proposta por Demócrito e a filosofia helenística que impregna a nossa cultura: cepticismo, estoicismo epicurismo. Carregar com a própria vida sem esperar ajuda de ninguém, como imperativo ineludível do viver.

Também na arte em que representamos o nosso universo simbólico. A melancolia protagoniza a inquietante figura proposta por Durero, deusa ou anjo absorta na mediçom da razom geométrica dos sólidos pitagóricos que sustentam a harmonia cósmica na filosofia clássica. A sabedoria renascentista de Durero recorre ao fundamento pitagórico com um o quadro mágico auto-suficiente que vulnera a liberdade aritmética. Pôr medida ao cosmos, ironizar sobre o poder da aritmética som formas de relativizar o suposto poder humano sobre um mundo impassível e alheio.

Deambulando por internet em busca das técnicas ordinárias de resistência à inquietude do viver, batemos de frente com as imagens actuais da ataraxia. Entre elas impom-se-nos poderosamente a escultura de umha cabeça feminina deitada e alheia a todo que transmite de imediato a serenidade budista do nirvana. 

Ignoramos o autor ou autora, ignoramos em que parque encontrou a sua definitiva morada, perfeita alegoria da inconsistência do viver. Essa serenidade exânime sem referências ressume de golpe a inútil agonia de procura de unha razom para viver. O dasein arbitrário é a nossa inóspita morada, a nossa chocolatina metafísica da rapazinha perdida na Tabacaria de Pessoa–Álvaro Campos

A misteriosa cabeça num parque desconhecido transmite umha inquietante imago junguiana de serenidade exánime guardado no nosso subconsciente colectivo. Talvez por isso, a misteriosa cabeça reverbera em inúmeras imagens semelhantes de recente factura.

A cabeça feminina deitada constitui de facto umha potente imago intemporal que conseguiu contagiar outros artistas desafiados polo seu poder evocativo. Umha escultura semelhante de Brancusi acode de imediato à memória visual. A semelhança com a cabeça anónima deitada num parque demonstra a sua qualidade de imago contemporáneo. A surpreendente semelhança das imagens confirma a comunhom dos artistas em experiências vitais comuns.

© Vladimir Dunjić

Constantin Brancusi, Roménia 1876 – Paris, 1957, è um pioneiro da arte moderna amplamente reconhecido. Nascido de família campesina e ele próprio pastor até os treze anos de idade, carente de estudos, começa a talhar em madeira por impulso irresistível. Inicia os seus estudos de Belas Artes na Escola de Arte y Ofícios de entre 1894 e 1898 que remata na Escola Nacional de Belas Artes de Bucareste em 1901. Em 1903 recebe a encomenda de um busto de um general romeno, Carol Davila, tributários habituais de esta tipo de homenagens. Milícia e política acaparam desde sempre os espaços públicos num afã desmedido de imortalidade. Nom é infrequente mesmo que “a Pátria” se veja obrigada a agradecer-lhe os serviços prestados.

Depois, Paris onde se mergulha na obra de Rodin e na arte contemporánea. Acontecimento significativo das afinidades electivas que guiam os artistas foi o tempo de trabalho partilhado com Amedeo Modigliani. E dai o salto à fama mundial com a retrospectiva do Museu Guggenheim de Nova Iorque de 1955.

Brancusi é um artista comprometido com a interpretaçom dos sonhos e desventuras da modernidade. Nom pode surpreender portanto a sua aguda qualidade de médium capaz de revelar a imagem arquetípica da ataraxia.

A cabeça feminina deitada no nirvana revela a sua inequívoca pertença ao mundo onírico colectivo onde habita o Buda iluminado e a cabeça feminina perdida num parque anónimo, imago emergente e repetida da inútil fugida do nom ser.

Há algo misterioso no surgimento e multiplicaçom das figuraçons artísticas. Nascidas por necessidade de expressom artística em tempo oportuno —no seu kairós, filho de Cronos, como criam os gregos— multiplicadas em seguida nos ecos repetidos através do universo artístico, as figuras, transmutadas em imago de época, confirmam na proliferaçom a sua pertinência ineludível como paradigmas da época em que surgem.

Em tal sentido, nom pode surpreender a versom actualizada de Vladimir Dunjic4, jovem artista sérvio nado em 1957 instalado actualmente em Belgrado cujo universo onírico o conduziu inexoravelmente à reproduzir umha cabeça feminina deitada no nirvana.

 

Notas

1 https://www.elejandria.com/libro/las-meditaciones-de-marco-aurelio/marco-aurelio/1301

2 https://www.wunderkammer.es/libros/sol-negro-depresion-y-melancolia-julia-kristeva/. Há disponível em rede um pdf com o texto deste famoso ensaio: https://dokumen.tips/documents/julia-kristeva-sol-negro-depressao-e-melancoliapdf.html?page=2

3 https://www.culturagenial.com/poema-tabacaria-alvaro-de-campos-fernando-pessoa-analisado/

4 https://www.pinterest.es/sagotutu/vladimir-dunji%C4%87/

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.