Duas fidalguinhas professas em Sam Paio e um final desventurado

Retrato das infantinhas Isabel Clara Eugenia e Catarina Micaela, filhas de Felipe II e de Isabel de Valois, por Sánchez Coello no ano 1575 Dominio Público

Gostaríamos contar com algumha imagem daquelas duas fidalguinhas que ingressárom de noviças em Sam Paio de Antealtares no mês de Junho de 1586. A falta da imagem pode-nos servir como arquétipo epocal o encantador retrato das infantinhas Isabel Clara Eugenia e Catarina Micaela, filhas de Felipe II e de Isabel de Valois, que pintara por Sánchez Coello em volta do ano 1575. Afinal, onze anos apenas separam a data do retrato e a do ingresso em clausura de Berenguela e Gregória. As nossas infantinhas, orfas de dona Ana de Soutomaior, decidiram, ou foram induzidas, a tomar os hábitos beneditinos do mosteiro de Sam Paio da mao da sua tia paterna, dona Leonor Rivadeneira, vizinha do Couto de Sam Martinho de Valadouro. O seu pai, Gomes Pérez das Marinhas, vivia longe, dedicado a mais altas tarefas que às do exercício da paternidade. O senhor exercia na altura de Capitám General do Reino de Múrcia. 

Foi a tia, dona Leonor, acompanhada por dom Rodrigo Maceda de Aguiar, vizinho de Viveiro —naquela altura, como até há bem pouco, a capacidade legal da mulher era nula— a que apresentou a solicitude formal de ingresso no mosteiro ante a abadessa dona Catarina de Fonseca. Ali ficárom as duas noviças, destinadas à vida contemplativa em comunidade ao serviço do Senhor. Dous frágeis rebentos da linhagem de Gomes Pérez das Marinhas, neto do Marechal Álvaro Gonçáles de Rivadeneira, filho este de Fernám Dias de Rivadeneira e de dona Berenguela de Haro e das Marinhas.

O mosteiro beneditino feminino de acolhida renascera havia pouco do seu glorioso passado de serviço ao sepulcro do apóstolo, a par da Catedral

O mosteiro beneditino feminino de acolhida renascera havia pouco do seu glorioso passado de serviço ao sepulcro do apóstolo, a par da Catedral. A comunidade feminina que agora habitava o mosteiro de Sam Paio ocuparia este desde o 23 de Julho de 1499 em que fora constituída por decreto fundacional dos Reis Católicos para pôr fim ao dilatado período de abandono do mosteiro pola crise tardo medieval de vocaçons e patrocínios. As luzes do renascimento iam apagando pouco a pouco as trevas medievais persistentes ainda.

A nova comunidade feminina nascia a partir de um núcleo fundacional de treze professas procedentes de Valhadolid presidido pola abadessa plenipotenciária dona Beatriz de Acuña sob dependência já em adiante de Sam Bieito de Valhadolid. Um episódio flagrante da ominosa assimilaçom da singularidade política galega polo projecto unitário renascentista em curso em toda a Europa.

Entrada ao mosteiro de San Paio de Antealtares © Santiago Turismo

A nova comunidade iniciava a sua actividade com a absorçom decretada da constelaçom de pequenas comunidades monacais rurais que subsistiam na Galiza através de séculos e penúrias. Catorze pequenas comunidades beneditinas, nada menos, espalhadas polas províncias de Lugo, Ourense e Pontevedra fôrom esvaziadas entre as quais nom me resisto a lembrar a de Sam Miguel de Eiré, fundada no século XII na Ribeira Sacra lucense. A sua derradeira priora, dona Inês Fernandes, faleceria em Compostela em 1507 com saudades talvez do seu recatado reduto matricial. A integraçom forçada das comunidades rurais galegas numha comunidade forânea e alheia desencadeou um movimento de rebeldia. Ao amparo da noite, relata a diligente historiadora da comunidade e monja professa de Sam Paio, Sor Maria Mercedes Bujám1, escapárom do mosteiro nove reclusas para viverem como senhoras e nom como súbditas. Coitadinhas, a liberdade foi fugaz, nos recintos recém-abandonados nunca mais voltariam a ecoar os piedosos murmúrios que lhes infundiam vida comunitária.

Catorze pequenas comunidades beneditinas, nada menos, espalhadas polas províncias de Lugo, Ourense e Pontevedra fôrom esvaziadas

Gostaríamos poder imaginar aquele velho mosteiro compostelano renascido antes de experimentar o seu primeiro restauro pola mao esperta do mestre de obras português Mateus Lopes2. As obras intermináveis que se seguiram veriam desfilar os melhores arquitectos de Compostela: os Fernández Lechuga, Velasco Agüero, Fernando de Casa Nóvoa, Ferro Caaveiro. Corriam tempos renascentistas na cidade de pedra e sinos a impulso do arcebispo galego dom Alonso de Fonseca e Ulhoa, humanista e promotor do Colégio de Fonseca que iniciara obras em 1522 e luzia já completo quando as duas noviças marinhás ingressavam em Sam Paio.

Em 1588, as madaminhas Berenguela e Gregória renunciárom formalmente às suas legítimas por parte materna em favor de seu pai para formalizarem os seus votos de clausura

Em 1588, as madaminhas Berenguela e Gregória renunciárom formalmente às suas legítimas por parte materna em favor de seu pai para formalizarem os seus votos de clausura perante a abadessa dona Isabel de Souto e Quiñones com um contributo por dote de 1.000 ducados mais propina e umha renda anual perpétua de 20 ducados a satisfazer por Natal cada umha. Este contributo à arca das dotes nom pode ser qualificado de excepcional. No relato histórico oferecido por Sor Maria Mercedes Bujám constam dotes de 2.000 ducados garantidas com censos sobre rendas de propriedade, suplementadas com rendas anuais de 100 ducados de réditos do 5% sobre o censo, como foi o caso de outras duas fidalgas orfas de pai e nai, dona Beatriz de Moscoso e dona Luísa de Caamanho, professas em 1639. As rendas procediam neste caso de terras herdadas na comarca de Soneira geridas na altura polo coirmao das noviças António de Moscoso e Caamanho. Rendas e apelidos evocadores do Condado de Altamira que fundara Lope Sanches de Moscoso e Ulhoa em 1.471 com terras de senhorio nas comarcas de Soneira e Corcubiom. Berenguela, Gregória, Beatriz, Luísa, mais ou sont les neiges d'antan?

Conquista das Filipinas Dominio Público

As horas transcorreriam lentas intramuros para dona Berenguela e dona Gregória muito ao contrário das do seu pai Gomes Pérez das Marinhas que recebia o hábito de Santiago no mesmo ano em que as professas entravam enclausura e ele era nomeado Capitam General e Governador de Filipinas

A história dos Perez das Marinhas tem um epílogo cruel nas Ilhas Filipinas do qual temos notícia no opúsculo Esteban Rodríguez de Figueroa Gobernador y Capitán General de Mindanao3 redigido por um aplicado colegial da Universidade Complutense

Trás da conquista das Filipinas em 1565, o território insular passou a configurar-se como Governaçom e Capitania General dependente do Vice-reinado mexicano de Nova Espanha em 1574. Dez anos depois, em 1584, foi criada ademais a Real Audiência de Manila, encomendada igualmente ao Capitám General.

As horas transcorreriam lentas intramuros para dona Berenguela e dona Gregória muito ao contrário das do seu pai Gomes Pérez das Marinhas que recebia o hábito de Santiago no mesmo ano em que as professas entravam enclausura e ele era nomeado Capitam General e Governador de Filipinas

Tempos decisivos na arte da navegaçom. Naquela altura produzia-se umha crucial inovaçom técnica com a descoberta da rota da torna-viagem, el tornaviaje como foi denominada, que conseguia salvar a descomunal distáncia que separava as Ilhas Filipinas de México aproveitando os ventos dominantes no Pacífico norte. A descoberta da rota é atribuída a um neto do fidalgo de Zumárraga Miguel López de Legazpi e ao seu leal conselheiro frei André de Urdaneta que decidiram rumar das Filipinas ao Japom em 1565 para enfiar dali cara a Califórnia aproveitando a chamada Corrente de Kuroshio. Nascia assi a gloriosa rota do Galeom de Manila chamada a assegurar a prosperidade do Vice-Reinado da Nova Espanha (1535) e um lugar no mapa-múndi do comércio àquele império filipino onde o sol nunca se punha. Na torna-viagem da Cidade de México às Filipinas, López de Legazpi fora acompanhado polo português Estevo Rodrigues de Figueiroa, qualificado de destemido soldado por uns e de intrigante aventureiro por outros, justos provavelmente ambos qualificativos em tempos como aqueles em que fortuna e heroísmo soíam florescer juntos. Estevo Rodrigues de Figueiroa conseguiu prosperar por méritos próprios como soldado leal dos sucessivos Governadores de Filipinas até ao mandado do Governador Gomes Pérez das Marinhas. O infausto Governador acabou encontrando desventurado final narrado polo frade agostinho frei Gaspar de San Agustin na sua história da conquista de Filipinas, 1575-16154. Embarcado numha intrépida expediçom às míticas Ilhas Molucas, pródigas de especiarias, o Governador Pérez das Marinhas morreu decapitado por piratas chineses quando assomava a cabeça ao sair do seu camarote. O sucessor finalmente nomeado foi o seu filho dom Luís Pérez das Marinhas, filho de dona Ana de Soutomaior e irmao das duas meninas fidalgas professas em Sam Paio. Afinal, o destemido aventureiro e piedoso patrocinador das missons jesuíticas naquelas ilhas, Estevo Rodríguez de Figueroa, encontrou igualmente morte trágica em 1596 no curso de umha expediçom militar à Ilha Joló que ele mesmo sufragara.

Saudosas histórias trágico-marítimas, evanescentes figuras femininas que reverberam ainda em textos esquecidos. Terá feito dom Luís a torna-viagem para visitar as suas irmás reclusas trás das grades de Sam Paio? 

 

Notas

1 María Mercedes Buján Rodríguez: Información de las monjas que habitaron en el Monasterio de San Paio de Antealtares de Santiago de Compostela desde 1499 a 1899, Consorcio de Santiago, 2006.

2 https://1library.co/article/mateo-l%C3%B3pez-t%C3%ADtulola-arquitectura-conjunto-monumental-mart%C3%ADn-pinari.zkw2ermz

3 https://www.ucm.es/adamuc/file/esteban-rodriguez-de-figueroa-gobernador-y-capitan-genera-de-mindanao-filipinas-articulo-de-juan-hernandez-hortiguela

4 https://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/filipinas/es/consulta/registro.do?id=6730

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