Gaza e a gramática que nos governa

Beit Lahia, en Gaza, destruída pola invasión israelí CC-BY-SA Jaber Jehad Badwan

Falar de outra cousa seria ensinar indiferença e normalizar o genocídio. Pensar filosoficamente começa por escutar a dor — fazer o pensamento passar através dela.  Hoje, o nome que porta a universalidade é Palestina e a única maneira de sentir a minha galeguidade emigrada e até a minha “judaicidade” é com plena solidariedade à Gaza. Costuma-se dizer que todo pensamento é pensamento a partir de um lugar. Não tomo isso como limitação a um ponto de vista fixo, como se apenas quem está lá pudesse pensar. Proponho outra leitura: há lugares-sintoma, espaços onde uma contradição global se explicita e uma verdade expulsa retorna. Lugares que nenhum pensamento com pretensão de verdade pode ignorar. Associar-se a um lugar de que não viemos quando ali se decide o destino comum. Para a nossa época, esse lugar talvez seja Gaza.  Para moitos, a imagem que fez trocar sua percepção foi a do massacre na rua Al-Rashid: mais de cem pessoas mortas quando buscavam comida. Esse massacre ocorreu duas vezes: no nível físico e no simbólico. O documento que circulou era a visão “cirúrgica” do drone, reduzindo corpos a pontos. Da perspectiva do drone aquelas pessoas já estavam mortas. Essa segunda morte revela o ponto cego de nossos disgenocícursos de justiça: áreas de desumanização onde o luto público é impossível.

No final da minha adolescência, em meados dos anos 80 durante a 1a intifada, aprendi a permanecer fiel a uma causa justa, mesmo quando o realismo pragmático diz que a situação não tem saída. No conflito atual, a primeira narrativa dizia que o Hamas atacou “do nada”. Agora sabemos havia indicações prévias, avisos externos, vigilância total. Israel  deslocou uma divisão que protegia a área duas semanas antes de 7 de outubro e, durante anos, financiou o Hamas via Catar para manter Gaza separada da Cisjordânia e esvaziar a pressão por dous Estados.  Bezair Smotrich disse isso mesmo em 2015 e, de acordo com vários relatos, Netanyahu fez uma observação semelhante numa reunião da facção Likud no início de 2019, quando foi citado dizendo que aqueles que se opõem a um Estado palestino deveriam apoiar a transferência de fundos para Gaza, porque manter a separação entre a Autoridade Palestina e a Cisjordânia na Cisjordânia e o Hamas em Gaza impediria o estabelecimento de um Estado palestino. Objetivamente, o Hamas funciona como desculpa para Israel. Destruir Gaza sem ‘eliminar’ o Hamas preserva o pretexto para a expansão da guerra e a transferência da repressão para a Cisjordânia para “mercar tranquilidade” e manter a cisão. Porém, apenas os habitantes de Gaza serão mortos. Aprendemos tudo isso nos anos 80: não confiar em promessas de negociação entre imperios, não confiar na comunidade internacional, não esperar que a consciência ocidental acorde por si só.

Também aprendemos a desconfiar em solidariedades ocidentais que, ao final, deixam os povos subalternizados. Na altura, também o povo palestino estava sendo massacrado ao vivo na imprensa e a lógica de colonialismo de assentamento desmascarada. E a vida segueu como de costume — ou quase de costume. Porque hoje o poder já não precisa de tanta justificação; a violência é exibida, não escondida. O que muitos dos meus vizinhos e colegas de geração não compreenderam na altura é que, desde o nosso confort para resistir ao genocídio em Gaza, não era necessário ser independentista e marxista. Penso que muitos ainda não perceberam isso, decidindo aceitar que o nome do seu pertencimento comunitário seja mobilizado para nomear a indiferença diante da violência do massacre. Não se trata de concorrer em horrores. Os números chocam, mas o ponto é outro: Gaza móstra-se como laboratório de técnicas de governo exportáveis (e Europa faz o que faz para evitar fazer o que realmente precisa ser feito para parar a atividade genocida de Israel) e como evidència para os gazatíes de que há liberais ocidentais para quem são indiferentes.

O enredo. Vivemos uma conjunção de crises (ecológica, social, econômica, política, psíquica) estabilizadas como regime. Em vez de transformação estrutural, naturaliza-se a exceção: o medo contínuo legitima medidas autoritárias. A guerra infinita torna-se método — corre para a frente sem horizonte de paz, erode o multilateralismo e militariza subjetividades: milícias, virilidade armada, medo e indiferença como afetos centrais; inimigos eternos que periodicamente reaparecem para manter a coesão. A narrativa dominante começou em 7 de outubro: “o Hamas atacou do nada”. Mas nada “surge do nada” num território monitorizado ao milímetro, historicamente sitiado e saturado de vigilância. Houve sinais, alertas, precedentes e, sobretudo, um contexto de décadas em que a exceção foi convertida em rotina. Em anos recentes, assistimos a políticas que favoreceram a cisão entre Gaza e a Cisjordânia, com fluxos de dinheiro canalizados por terceiros, e a uma governação da “emergência” na qual a existência do Hamas funcionou de modo objetivo como pretexto permanente para bloqueios, incursões e transferências de violência. Destrói-se Gaza sem eliminar o pretexto — e, com isso, preserva-se a engrenagem para expandir a repressão e deslocá-la para a Cisjordânia. A gramática do medo e da punição coletiva gera o seu próprio combustível político.

Legalidades performativas. Grande parte da nossa perplexidade nasce da crença de que o direito descreve um mundo previamente dado. Ao contrário: decisões jurídicas performativas moldam o mundo que depois chamamos “normal”. Foi assim com a Resolução 181 da Assembleia Geral (1947), que aprovou um plano de partilha sem processo constituinte dos nativos e sem consulta democrática, convertendo em “necessidade histórica” um conflito aberto. Não foi exceção: é o modo como o direito moderno, acoplado à geopolítica, opera — confere forma jurídica a uma relação de forças e chama a isso de “ordem”. A Resolução 194 (1948), por sua vez, consagrou o direito de regresso e compensação para os refugiados palestinianos; ironicamente, foi uma das condições para a admissão de Israel na ONU, e permanece, até hoje, sistematicamente esvaziada.
Ao mesmo tempo, o Mandato Britânico sobre a Palestina (1920–1947) condensou a contradição estrutural: tratava-se de um Mandato “Classe A”, que, em princípio, reconhecia provisoriamente a capacidade de independência e o desenvolvimento de instituições de autogoverno; mas o instrumento do Mandato incorporou a Declaração Balfour, vinculando o poder mandatário ao objetivo de estabelecer um “lar nacional judaico”, salvaguardando, em teoria, os direitos civis e religiosos de “todos os habitantes”. O resultado foi um dispositivo que prometia autonomia ao conjunto da população maioritariamente árabe-palestiniana (muçulmana e cristã) e, simultaneamente, incentivava a imigração e a aquisição de terras por colonos judeus. As revoltas de 1920, 1921, 1929 e a Grande Revolta de 1936–39 foram reprimidas duramente — e o fim do Mandato chegou não como solução, mas como catástrofe: a Nakba, a expulsão em massa, a normalização do provisório e a transformação da “linha verde” em mau hábito cartográfico.

A ocupação como regime. Desde 1967, a ocupação militar tornou-se regime. A Quarta Convenção de Genebra proíbe a potência ocupante de transferir a sua população civil para o território ocupado; contudo, a transferência continuada de colonos e a arquitetura física de controlo — colonatos, estradas segregadas, checkpoints, muros, zonamentos e jurisdições militares diferenciadas — consolidaram uma realidade de facto. Em julho de 2024, a Corte Internacional de Justiça concluiu que a presença continuada de Israel no Território Palestiniano Ocupado é ilícita, que a política de colonatos deve cessar, que há obrigações de reparação e que terceiros Estados têm deveres de não reconhecimento, não assistência e cooperação para pôr termo à situação. É um marco. Mas também é a confissão serodia de que décadas de “exceção administrada” já territorializaram a violência como norma.

Infraestruturas da exceção. Costuma dizer-se que “o contexto” é importante. No caso de Gaza, “contexto” não é pano de fundo: é infraestrutura. O bloqueio, intensificado a partir de 2007, tomou a forma de uma governança pela escassez: da mobilidade às calorias, da eletricidade à água potável, da reconstrução aos cuidados de saúde, a vida foi transformada num cálculo administrativo. “Presídio a céu aberto” não é hipérbole: é uma engenharia de governo que combina linguagem, logística e cartografia. Ordem de evacuação, “corredor seguro”, zona “humanitária” que muda de lugar — a gramática é parte da arma. O objetivo explícito é gerir populações, não resolver um conflito. A exceção vive do desenho. No terreno, a soberania materializa-se em mapas (Weizman): autorizações, barreiras, enclaves, permissões, coordenações, perímetros. A exceção gera ritmos e dicionários — “neutralização”, “visar infraestruturas”, “danos colaterais”, “janela de oportunidade”, “desconexão humanitária” — que não descrevem a realidade, mas a constroem. Ao leitor distante, as palavras soam técnicas; ao corpo palestiniano, elas chegam como ruído de drones, pó de betão e a sirene que diz quando se pode ou não atravessar.

É neste palco que a nossa linguagem pública oscila entre duas tentações paralisantes. A primeira é a moralina simplificadora, que recicla o pós-11 de Setembro: “luz contra trevas”, “civilização contra barbárie”, “connosco ou com os terroristas”. A segunda é a anestesia liberal, que transforma gestos simbólicos em substitutos da ação. Ambas preservam a gramática da exceção: a primeira amplia o consentimento; a segunda poupa a consciência.

A política europeia é movida por culpas herdadas e por uma antiga solidariedade imperial. Ao longo de décadas, “Nunca Mais” tornou-se um credo cívico; mas um credo que, por vezes, se converteu em licença para a indiferença seletiva. Chora-se — justamente — os avós assassinados, e tolera-se o assassinato diante dos olhos. Israel foi paulatinamente enquadrado como ponta avançada do Ocidente em território árabe; a colonialidade sionista responde a uma subjetividade geopolítica que naturaliza o outro e hierarquiza quem fala e quem é objeto. O resultado é um sistema de exceções aceitáveis.

Anúncios vs expedientes. Em setembro de 2025, multiplicaram-se notícias sobre a alegada “anulação” de contratos espanhóis com empresas de defesa israelitas. Uma leitura técnica da documentação oficial esclarece que três processos muito mediáticos — SPIKE LR2 (adjudicado a PAP Tecnos, 22/11/2023), SILAM (UTE Escribano/Rheinmetall, com tecnologia Elbit, adjudicado em 15/12/2023) e o acordo‑quadro de POD Designador (adjudicado a Rafael em 26/02/2024 e formalizado em 23/04/2024) — aparecem como «Anulados» na Plataforma de Contratação apenas no sentido de ter sido anulada a publicação do anúncio de adjudicação. Não existe, nos documentos disponibilizados, resolução que anule a própria adjudicação. À data de 21/09/2025, os três contratos constam como vigentes.

Indícios adicionais apontam para continuidade: (i) forte subida das importações espanholas de material Taric 93 procedente de Israel entre dezembro de 2024 e maio de 2025; (ii) contratos colaterais em agosto‑setembro de 2025 para veículos Vamtac ST5 BN1 com lançador SPIKE, afustes e acessórios SPIKE para M‑113 TOA; (iii) ensaios em mar no âmbito do projeto SILAM, incluindo qualificação de foguetes Accular, Extra e Predator Hawk, sob patente da Elbit. Em paralelo, alguns meios noticiaram cancelamentos de grande monta (SILAM e outro contrato), totalizando perto de mil milhões de euros; a divergência entre a retórica política e a realidade administrativa recomenda cautela: sem resolução publicada que revogue a adjudicação, o efeito jurídico é nulo. Se a gramática quer mudar, precisa traduzir‑se em atos administrativos efetivos (desistência, revogação, resolução contratual) e em medidas materiais como embargo de armas e sanções.

A questão é como chegamos a essa inversão, na qual a extrema direita global se torna aliada objetiva das políticas hegemônicas em Israel, seja ela figurada em Marine Le Pen, Donald Trump, Bolsonaro e Milei, entre outros? Estava inscrito desde o início no processo de constituição do Estado de Israel, permeável a acordos com forças teológico-políticas que visam consolidar um horizonte de etnocracia imperial. Uma combinação explosiva entre a halachá (lei religiosa) e o Estado. Esse retorno do teológico-político como operador central da disputa levanta uma questão maior: até que ponto as nossas “democracias ocidentais” se mostram permeáveis a esse horizonte? E aponta um problema estrutural contemporâneo: os riscos e limites do uso político de identidade e trauma social como fundamentos de Estado. É incontornável admitir que a afirmação identitária pode surgir como defesa legítima contra a violência e a vulnerabilidade — ela partilha a memória do trauma e cria espaços de luto. Contudo, há um momento em que a identidade, gestada pelo Estado, tende a converter-se num dispositivo de imunização segundo o qual quando violentados uma vez, ninguém velou por nós; logo, temos direito a usar qualquer meio para garantir a nossa inviolabilidade e segurança contra quem quer que nos ameace. O problema é nídio: nenhum direito de defesa inclui o direito de massacrar. E há um ponto cego quando o massacre sistemático do outro só produz em mim indiferença — e a ambição de decidir quem deve habitar as minhas fronteiras. Daí a pergunta incômoda: vale “direito de defesa” quando a reação provém de um território ocupado ilegalmente há mais de cinco décadas, em desacordo com o direito internacional e com decisões recentes da Corte Internacional de Justiça?

Coabitarmos não é uma escolha, mas uma condição da comunidade política. Os eventos pós-7 de outubro indicam que o projeto dominante em Israel quer decidir que população não deve lhe fazer fronteira — e propaga-se um movimento que reivindica a remoção de populações inteiras de Gaza pola única democracia no Médio Oriente que justifica as suas medidas em termos religiosos fundamentalistas acreditando que palestinos são os sucessores diretos dos amalequitas bíblicos.

Despossessão e genocídio. Isso não é defesa; é despossessão. Uma fasse do processo de genocídio segundo o qual o Estado se torna guardião do trauma, bloqueiando a possibilidade de uma solidariedade indiscriminada com situações de violência análogas à que se sofreu, independentemente de quem é o oprimido de hoje. É uma prática de Estado que rompe o vínculo ao comum (genos): desumaniza, apaga corpos e memória, silencia o luto. Linguagens que indistinguem civis e combatentes, que chamam humanos de “animais”, que celebram ruínas e preconizam deslocamentos em massa não são meros excessos retóricos. São sintomas de intenção e prática genocidária. A invocação do “escudo humano” não concede licença para massacre. Até segunda ordem, não inventaram o direito de massacre.

Não é o Estado que guarda o trauma social no espaço e no tempo, mas, antes a possibilidade de internacionalismo  transfronteirizo capaz de implicar-se de maneira real com a alteridade e com a multiplicidade das vozes que dão testemunho de sua dor. Essa é a potência a recuperar na consolidação de uma política pós-identitária que ansiamos — uma potência que sentimos como latência e que, tantas vezes, é silenciada por quem aprendeu a mobilizar medos sociais numa sociedade capitalista em crise, vendendo a ideia de que não há lugar para todos e que o único racional é lutar para integrar o grupo restrito que atravessará o dilúvio.

O que esta gramática nos faz. A gramática que nos governa desloca o foco, produz ignorância e corrói o direito. Desloca o foco quando substitui a estrutura material de ocupação por uma metafísica do inimigo: “não há inocentes”, “a culpa é herdada”, “retaliação ilimitada”. Produz ignorância quando ressignifica o orientalismo como senso comum: a Palestina aparece como vazio a “organizar”, a sociedade palestiniana como ruído irracional. Corrói o direito quando transforma a segurança em cláusula mágica: cada norma passa a carregar uma alínea suspensiva, cada salvaguarda tem a sua exceção utilitária. Para os oprimidos, lembra Benjamin, o estado de emergência é a regra. No plano mediático, a nossa gramática hipervisibiliza o episódio e invisibiliza a estrutura. O “acontecimento” — uma explosão, uma operação, um discurso — ocupa todo o ecrã, enquanto as condições que o tornaram possível desaparecem do quadro. É assim que aprendemos a viver com crateras sem mapas, com listas de mortos sem políticas, com datas sem história. O jornalismo da urgência, quando renuncia à continuidade analítica, torna-se aliado involuntário da exceção. Também por isso a palavra “genocídio”, tão carregada de horror e história, foi no início tratada como excesso retórico. O desencadeamento posterior de investigações e opiniões jurídicas mostrou que não se tratava de uma acusação gratuita, mas de uma hipótese jurídica a ser examinada à luz dos fatos e das obrigações internacionais. Quando a mais alta corte de justiça do sistema internacional conclui que a presença continuada nos territórios ocupados é ilícita e que os colonatos violam o direito, não estamos perante mera disputa semântica: trata-se de um juízo jurídico que impõe obrigações, inclusive a terceiros, e que desmascara o conforto morno das “posições de equilíbrio”.

O mínimo ético: interromper a exceção. Se a exceção se tornou norma, a tarefa não é pedir mais exceção “do lado certo”, mas instaurar uma interrupção real. Isso tem nomes concretos. Cessar-fogo imediato e permanente. Acesso humanitário pleno, estável e supervisionado. Levantamento do bloqueio como regime. Embargo de armas e sanções direcionadas a quem desenha, ordena e executa crimes sob cobertura de eufemismos. Cooperação internacional para garantir reparações e responsabilização. Reversão do regime de colonatos e demolições. Trabalho diplomático consequente, não performativo. E, no plano interno a cada país, desobediência civil e pressão institucional que removam o conforto dos cúmplices. Nada disso é “radicalismo moral”. É alfabetização democrática básica. São os abecês de uma ordem internacional que diz existir para proteger vidas — não para as contabilizar. É o mínimo ético quando a gramática dominante insiste em nos habituar às piores cousas como se fossem razoáveis.

Palestinos feridos polos ataques israelís en Gaza CC-BY-SA WAFA

Universalidade, outra vez. Por que insistir na ideia de universalidade quando tudo nos empurra para identidades exaustas polo capital? Porque a palavra “universal” não é uma generalidade abstrata — é um nome próprio que muda de lugar historicamente. Durante muito tempo, o nome “judeu” concentrou a consciência universal da vítima, impondo à Europa um espelho que a confrontava com a sua barbárie. Hoje, esse lugar foi ocupado por “Palestina”. Dizer isto não apaga a experiência judaica; restitui-lhe, pelo contrário, a dignidade de uma exigência ética que não pode ser instrumentalizada para justificar a violência sobre outros. Ser humano, aqui e agora, é estar com a Palestina. É recusar a gramática que autoriza o irreparável.A fidelidade de que falo não é sentimental mas política. É a decisão de agir mesmo quando o realismo cínico repete que “não há saída”. É recusar a anestesia liberal — a que promete que “o tempo resolverá”, “as negociações voltarão”, “a comunidade internacional agirá” — porque sabemos, pela experiência, que a esperança como adiamento pode ser uma forma de abandono. É perder a esperança — no sentido passivo — para recuperar a coragem da ação. Recusar não é fechar os olhos, é abrir um espaço onde a linguagem política se desgarra para reaprender a dizer “nós”. Por isso mesmo, fala — como precisa — a pleno dia.

Gaza expõe a nossa linguagem e as nossas escolhas. Expõe o direito quando este serve para legitimar a criação de Estados, mas falha em proteger povos. Expõe a Europa quando celebra a memória, mas trai a promessa do “Nunca Mais” diante do sofrimento de outros. Expõe os governos que preferem anunciar reconhecimentos a interromper fluxos de armas. Expõe uma imprensa apressada que narra eventos e esquece estruturas. E expõe, sobretudo, a nossa disposição para aceitar que a exceção governe o mundo em nosso nome.
Gaza concentra, de maneira exemplar, quatro processos que hoje operam como dispositivos globais de governo. O primeiro é a repetição: ciclos de violência que retornam como se fossem rotina, até que o extraordinário pareça normal. O segundo é a dessensibilização: um treino social para já não sentir o intolerável, em que imagens e discursos filtram a dor até ela se tornar ruído de fundo. O terceiro é a desistoricização: a narrativa recomeça sempre “no último ataque”, como se nada tivesse acontecido antes, apagando ocupação, bloqueio, expulsões, e com isso neutralizando a compreensão do presente. Por fim, há o vazio legal: a suspensão seletiva da lei, a produção de zonas de exceção administradas como se fossem ordem, onde o direito serve menos para proteger vidas do que para justificar a sua eliminação.

Falar de Gaza, portanto, não é disputar a aritmética do horror. Os números chocam — e devem chocar —, mas o essencial é perceber que ali se consolidou um laboratório de técnicas de governo que podem ser replicadas noutros lugares e contra outras populações. Se queremos nomear o que nos acontece como época, precisamos encarar essa engrenagem: a repetição que naturaliza, a dessensibilização que anestesia, o apagamento que desarma a memória e a exceção jurídica que fecha o circuito. É por isso que Gaza nos diz respeito — não apenas pela escala da dor, mas porque ali se testam as gramáticas que amanhã podem administrar a vida de todos. A gramática que nos governa escreve as vidas dos outros na voz passiva. Desobedecer a essa gramática — na política, no direito, na cultura e na vida quotidiana — é a condição mínima para, um dia, podermos dizer que aprendemos alguma cousa. Enquanto aceitarmos esta gramática, aceitaremos o enredo: urgências sem fim, “cirurgias” que abrem crateras, decisões sem garantia apresentadas como razão. A única fidelidade que conta, agora, é a que interrompe: sanções, embargo de armas, responsabilização e uma prática solidária que recuse deixar Gaza sozinha.

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