Em meio da incerteza económica em que estamos sumidos, acosados polo medo ao desemprego e à pandemia invisível, os europeus, podemos considerar-nos seres privilegiados em contraste com as sociedades hobbesianas americanas. Habitamos em sociedades inclusivas com um amplo consenso social sobre o seu valor. “Que ninguém fique atrás” é um lema que poucos discutem apesar do insistente discurso, nestes momentos amortecido, das virtudes taumatúrgicas da competitividade irrestrita. A lei do afortunado. Mais alá, sofrem, migram e se debatem os párias do planeta por debaixo do limiar de 1,90 $/dia que o Banco Mundial tem fixado como fronteira da miséria. Subsistir com menos de 60 euros mensais é ficar por baixo da dieta de alimentaçom, alojamento e cuidados de muitos animais de companhia com que nos cruzamos pola rua.
Dous recentes informes sobre a evoluçom da pobreza em Espanha referidos ao período 2009-2018, um do Ministério de Sanidade e Bem-Estar Social e o outro do Banco de España1 oferecem umha apertada síntese deste assunto que os meios nom gostam de frequentar. Ambos informes documentam a severidade do impacto social derivado da crise do 2008 que a partir de 2014 parecia ir remetendo para colapsar de novo estrepitosamente com a pavorosa crise de 2020 de cujas consequências pouco sabemos ainda. Os dados da pobreza referidos ao ano 2018 som, portanto, relativamente optimistas observados desde este verám de 2020 em que a pandemia nos instalou na incerteza radical.
Medir a pobreza em sociedades como as europeias, pouco tem a ver com o limite absoluto de subsistência de 1,90 euros diários e muito, ao invés, com a insidiosa fronteira de índole relativa que separa os que vivem sem temor o dia-a-dia e multidom heterogénea que se encontra um mau dia com que já nom pode pagar umha factura imperativa e a partir dai pode rodar sem remédio ao poço da marginalidade.
Descrever o tránsito da carência relativa à pobreza incipiente e daí à pobreza severa passa por ponderar os parámetros que permitem evidenciá-la. Três som os parámetros actualmente propostos que costumam agrupar-se sob a denominaçom técnica de indicador arope (At Risk of Poverty and Exclusion):
1) Um nível de ingressos de persoas ou fogares com rendas inferiores a 60% da mediana de ingressos, entendendo por mediana o valor que divide em duas partes iguais os ingressos percebidos ordenados de maior a menor. O umbral do 40% da mediana denotaria já pobreza severa.
2) Umha intensidade laboral deficiente, entendida esta como a situaçom em que os membros da família compreendidos entre 18 e 60 anos nom conseguem alcançar o 20% da sua plena ocupaçom laboral.
3) E finalmente o critério de privaçom material atribuída ao consumidor incapaz de satisfazer quatro necessidades como mínimo de um conjunto de nove seleccionadas: pagar o aluguer, manter a casa quente, fazer frente a gastos imprevistos, consumir proteínas um dia de cada três, poder pagar umha semana de vacaçons ao ano, dispor de lavadora, de telefone, de televisor, de automóvel. Umha lista de preferências inevitavelmente contingente e mesmo arbitrária que a primeira vista pode parecer desajeitada de delimitar o âmbito da pobreza mas, porém, haverá algo mais peremptório que essa pequena lista de desejos particulares de cada quem?
Foi umha modesta lista como esta a que inspirou um pequeno poema dedicado ao marginado social, um simples haicai quase, do último período criativo de Bertold Brecht.
A lista do necessário // Conheço muitos que andam por aí com a lista // do que necessitam // Aquele a quem a lista é apresentada diz: isto é muito // Mas aquele que a escreveu diz: isto é o mínimo // E há quem orgulhosamente mostra // a sua breve lista.
Segundo o Inquérito do INE sobre condiçons de vida referido a 2018, 12,05 milhons de indivíduos (26,1% dos 46,18 milhons da povoaçom total) viviam por baixo do nível de ingressos do 60% da mediana: 0,6*14.785 = 8.871 euros/ ano. O umbral sobe a 18.629 euros/ano no caso de umha família de 2 adultos e 2 nenos, ponderando as unidades de consumo. Baixo este umbral vivem 4,51 milhons de famílias, 24,4% das 18,55 milhons existentes naquele ano.
Por baixo do umbral do 40% da mediana entramos no reino da pobreza severa, em que se debatiam em 2018 9,2% das famílias, que agrupavam 4,24 milhons de indivíduos.
Se atendemos ao critério de precariedade laboral, 10,7% das famílias, em volta de 2 milhons de indivíduos, nom conseguiam alcançar o nível de ocupaçom do 20% da força laboral familiar disponível. Esta é a geografia da precariedade laboral disfarçada de trabalho: descontinuidade do emprego, salários simbólicos, arbitrariedade patronal que atinge níveis intoleráveis na exploraçom obscena do temporeiro imigrante que enche as nossas frutarias. Som cifras referidas a 2018, assusta pensar na situaçom pós-pandemia apesar dos apressados programas de emergência desenhados, como os ERTE e o ingresso mínimo garantido.
O exame do indicador de carências materiais mostrava em 2018 que, o 5,4% da totalidade das famílias incorriam em privaçom material severa: 35,9% eram incapazes de fazer frente a gastos imprevistos; 34,1% nom podiam permitir-se umha semana de descanso ao ano; 9,1% nom podiam aquecer o fogar; 8,8% incorreram em faltas de pagamento dos gastos de vivenda nos últimos 12 meses; 5,5% careciam de um computador; 5,1% de automóvel, e um grupo mais reduzido de 3,6% nom podia pôr proteínas na mesa um dia de cada três quando menos. Umha por umha, cada carência pode parecer irrelevante, mas quem pode suster “isso é muito” contra a demanda de “isso é o mínimo” da parábola de Brecht?
Como se distribui a desigualdade social em Espanha? A fronteira do 60% da mediana de ingressos permite classificar as CC.AA. segundo a percentagem de famílias que nom alcançam esse nível. Esta análise de inclusividade social relativa permite diferenciar um norte geográfico inclusivo e um sul desigualitário que a história nos legou e a democracia foi incapaz de remediar ainda. Partindo do facto de que no conjunto do Estado 26,1% dos cidadaos vivem por debaixo dessa primeira fronteira da pobreza, constatamos que a proporçom se acerca ao 50% e nunca baixa de um terço na Espanha do sul com resultados mais mais inclusivos no norte da Península. Ceuta, 49,3%; Extremadura, 44,6%, Andaluzia, 38,2%; Canárias, 36,4%, Castela-A Mancha, 33,5%, Múrcia, 32,7% exemplificam a desigualdade meridional. No norte, a inclusividade marca níveis invejáveis no País Basco: 12,1%; em Navarra: 12,6% e Aragom: 17,7%. E, já em menor medida, no núcleo central de Comunidades que se movem em volta do 20%: Ilhas Baleares, 18,1%; Catalunha, 18,9%; Madrid, 19%; Castela e Leom, 19,5%, A Rioja, 20,4%; Astúrias, 20,9% e a Galiza com um discreto: 23%.
“Dá-me muita vergonha pero tenho que lhe dar de comer aos meus filhos (...) é a primeira vez que venho”. A vergonha social rebenta em voz baixa nas filas de espera dos comedores sociais e nos bancos de alimentos que a crise reactivou. Mais de 100.000 cidadaos desamparados acodem cada dia às filas da fame em Madrid. Na Galiza ai temos a Casa do Pescador de Vigo, Sam Francisco em Pontevedra, Cáritas Ourense, a Cozinha Económica de Santiago ou de Ferrol, o Padre Rubinos da Corunha e tantos centros que oferecem umha mesa e um gesto de calor humano aos vencidos da vida de todas as idades: mais de 3.000 demandas de comida diárias.
A comida ante todo. Segundo dados do Ministério de Sanidade e Bem-Estar, em 2016 fôrom distribuídas 48.000 toneladas de alimentos a 2,3 milhons de beneficiários através de 10.600 organizaçons por valor próximo aos 90 milhons de euros. Também na Galiza se consolida a rede protectora da Federaçom Galega de Bancos de Alimentos que conecta oferentes — produtores, superfícies comerciais, restaurantes — com usuários de comedores sociais.
Panorama de fame em meio da sociedade do desperdício. Umha legiom de obesos mórbidos, vítimas da comida lixo e as bebidas aditivas. Um cartom em qualquer recanto resguardado da chúvia como leito improvisado e disputado, um cartom de vinho ínfimo como único conforto. Som os sinais externos de quem foi assinalado com o dedo acusador do arope. A invisível fronteira da pobreza ubíqua.
1 Ministerio de Sanidad, Consumo y Bienestar social: “ Evolución de la pobreza en España, 2009-2018, Principales indicadores”. https://www.mscbs.gob.es/ssi/familiasInfancia/inclusionSocial/inclusionSocialEspana/Evolucion_indica_pobreza_09_18.pdf
Banco de España: “La población en riesgo de pobreza o exclusión social en España, según la definicións del Consejo Europeo”, Aitor Lacuesta, Brindusa Anghel, 1/2020.
https://repositorio.bde.es/bitstream/123456789/10532/1/be2001-art7.pdf