Um apertado novelo de nais aterrorizadas unidas no desamparo é a imagem de Käthe Kollwitz que acode à mente quando pensamos na Ucránia submetida a umha iníqua “operaçom militar especial de desnazificaçom” desenhada por Vladimir Putin. Operaçom especial, desnazificaçom, eufemismos mendazes manufacturados polo departamento de acondicionamento de consciências. Nada novo, a LTI, a Lingua Tertii Imperii nazi descrita por Victor Klemperer, a Neolíngua de George Orwell, descrevem a perfeiçom os artefactos de colonizaçom das consciências manufacturados polos poderes omnímodos. Na guerra sem quartel, a palavra, a mensagem, é parte do arsenal militar. Filias e fobias som parte da dieta inoculada aos contendentes pola intendência operativa. No cimo, o Supremo, único responsável ante a pátria e a história, dita ordens inapeláveis.
Um apertado novelo de nais aterrorizadas unidas no desamparo é a imagem de Käthe Kollwitz que acode à mente quando pensamos na Ucránia submetida a umha iníqua “operaçom militar especial de desnazificaçom” desenhada por Vladimir Putin
É verdade que na Ucránia opera legalmente o Batalhom de Azov, declaradamente nazi de ideologia e legalmente integrado nas forças armadas ucranianas, mas, cumpre temperar o critério com o facto de que o partido político promovido polo tal Batalhom nom conseguiu representaçom parlamentar na Cámara legislativa ucraniana e a circunstáncia de que o partido político de estrema direita com presença na mesma, Svoboda (Liberdade), só atingiu 1 deputado, contra os 254 de Servidor do Povo, o partido do presidente Zelenski, e os 43 conseguidos pola Plataforma de Oposiçom de tendência pró-russa.
O apertado novelo maternal representado na comovedora xilografia de Käthe Kollwitz está datada em 1922-1923 que figura actualmente no Brooklyn Museum de Nova Iorque. O lúgubre novelo feminino que parece aguardar o golpe definitivo da desgraça foi concebido em plena República de Weimar (1919-1933), quando o horror da primeira guerra mundial mutava em surdo ressentimento social preparatório da segunda. O último presidente daquela tormentosa República chamava-se como é bem sabido Adolf Hitler. A piedade maternal polos filhos mortos em batalha lacerava o coraçom de Käthe Kollwitz que perdera um filho seu na frente de batalha na Primeira Guerra Mundial.
Outra obra mestra de Käthe Kollwitz acode inevitavelmente à memória quando pensamos no efeito da barbárie guerreira no coraçom das nais despojadas dos seus filhos, a comovedora escultura de bronze em que umha nai envolve com o seu corpo o cadáver do filho morto na guerra exibida num pequeno habitáculo a céu aberto na avenida Unter Den Linden de Berlim que ninguém que por ali passar pode esquecer jamais.
Longa é a história de horrores na Ucránia moderna. O arrepiante genocídio decretado por Estaline em 1932-1933 para colectivizar a terra provocou umha onda apocalíptica de fame com milhons de cadáveres. Seguírom as bárbaras massacres de judeus perpetradas pola barbárie nazi em Lviv e Babi Yar (Kiev)
Käthe Kollwitz (1867-1945), nascera em Könisberg, hoje Kaliningrado, cidade alemá em tempos e pátria de Kant, enclave russo entre Polónia e Lituánia hoje. Todo um símbolo da fragilidade irremediável da fronteira oriental de Europa. Kaliningrado fica unido hoje a Bielorrússia por um estreito corredor de 96 quilómetros, um fio apenas no mapa que separa Alytus em Lituánia de Suwalki em Polónia. Nom nos atrevemos a pensar que aconteceria se o frágil fio se romper.
Longa é a história de horrores na Ucránia moderna. O arrepiante genocídio decretado por Estaline em 1932-1933 para colectivizar a terra provocou umha onda apocalíptica de fame com milhons de cadáveres, conhecida na Ucránia como o Holodemor. Seguírom as bárbaras massacres de judeus perpetradas pola barbárie nazi em Lviv e Babi Yar (Kiev) no verao de 1941. Sombrios antecedentes da actual invasom decretada por um enigmático ex oficial da KGB de fria olhada reptiliana para lavar o surdo ressentimento histórico acumulado. Putin ostenta o poder supremo da Federaçom Russa desde há mais de vinte anos com aparente aquiescência social, habitual aliás naquelas latitudes.
A atribulada história do país tem muito de enigmático para nós. A voz autorizada de Wolfgang Streeck, director emérito do Instituto Max Planck, previne-nos da complexidade da situaçom1 sem por isso tentar escamotear a distáncia radical entre agressor e agredido que alguns mistagogos sectários pretendem validar. Como quer que seja, a verdade incómoda da existência de grupos inequivocamente nazis integrados no exército ucraniano vai-se tornando manifesta; é o caso da temível organizaçom paramilitar Batalhom de Azov, fundada em 2014 e com sede em Mariúpol onde se livra agora um sanguinário confronto com as forças russas. Este facto relativiza a impoluta imagem democrática do governo de Zelenski mas nom cancela o abismo moral que separa o agredido do agressor nem absolve o ominoso projecto pan-eslavista instigado polo Kremlin das escuras aderências estalinistas em que se inspira.
E porém, como esquecer as dolorosas cicatrizes infligidas à consciência patriótica russa polo colapso do império soviético e a nostalgia da grandeza perdida, de quando Rússia era grande e respeitada? Trás do desmoronamento do Muro de Berlim, o expansionismo da OTAN capitaneado polo imperialismo ianque desatou umha autêntica invasom do espaço político russo vivenciada como humilhante imposiçom do vencedor polo povo russo.
Trás do desmoronamento do Muro de Berlim, o expansionismo da OTAN capitaneado polo imperialismo ianque desatou umha autêntica invasom do espaço político russo vivenciada como humilhante imposiçom do vencedor polo povo russo
Em 1999 ingressavam na OTAN Polónia, Hungria e a Chéquia, em 2004 seguírom-lhes a Roménia, Bulgária, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Letónia e Lituánia. Em 2009 somárom-se-lhes Albánia e a Croácia e agora mesmo guardam fila de espera Geórgia, Bósnia e Macedónia. Um ameaçante cinto de hostilidade apontando ao coraçom de Rússia. Os países acolhidos ao recinto protector da OTAN durante o quinquénio 1999-2004 som membros de pleno direito já da UE, A Croácia incluída. Para obscurecer mais o panorama Suécia e Finlándia sopesam solicitar o ingresso na OTAN. Umha ominosa ressurreiçom da aliança militar que articulou a Guerra Fria quando estava agonizante. Gorbachev chegara a propor umha estrutura pan-europeia de seguridade que incluía o ingresso da propria Rússia na OTAN2. A sobrançaria hegemónica norte-americana estragou a oportunidade. Mália a clamorosa ausência de Europa após da Segunda Guerra Mundial!
O ressentimento histórico acumulado sob as ruínas da URSS, hoje Federaçom Russa, derivou em involuçom autoritária e esmagamento de toda a dissidência interna com notável cumplicidade social. Como explicar senom a cruel indiferença da sua opiniom pública perante a assanhada invasom de um país inerme e congénere que a ninguém ameaçava?
A grandiloquência imperial exibida por Putin denota um sentimento de angústia ante o isolamento internacional que a guerra actual poderia tornar definitivo. O majestoso pavoneio do líder supremo através dos imponentes salons do Kremlin, a grandiloquente gestualidade da guarda de corps, as descomunais portas douradas que se abrem ao vigoroso passo do solitário czar indiscutido, a interminável longitude da mesa de recepçom que pretende diminui o interlocutor e enaltecer o anfitriom. Make Rússia great again!, o argumento é-nos conhecido.
A guerra de Ucránia parece preludiar umha nova ordem mundial liderada por Xi Jinping com data de apogeu em 2049 em que se comemora o centenário da fundaçom da República Popular Chinesa. Um amanhecer euro-asiático onde a Rússia toca-lhe o papel de fiel centuriom da fronteira ocidental com autonomia limitada. A guerra ucraniana permitirá dimensionar o grau de lealdade chinesa neste pacto tácito que nom pode vulnerar aliás as relaçons de cooperaçom competitiva com a UE e os EUA, vitais para a China nos âmbitos tecnológico e comercial. Rússia pode ser percebida como um obstáculo maior neste novo cenário na medida em que a pulsom militarista ameace a cooperaçom tecnológica e comercial com a UE. A paciente subtileza confuciana casa mal com a brutal arroutada imperial.
A guerra de Ucránia parece preludiar umha nova ordem mundial liderada por Xi Jinping com data de apogeu em 2049 em que se comemora o centenário da fundaçom da República Popular Chinesa. Um amanhecer euro-asiático onde a Rússia toca-lhe o papel de fiel centuriom da fronteira ocidental com autonomia limitada
A espectacular viragem da Alemanha em política armamentista e energética e o crescente desassossego da Uniom Europeia ante a desapariçom do manto militar protector do amigo americano marcam um ponto de nom retorno na política de defesa europeia.
Europa bate por primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial com a atroz experiência de umha guerra em próprio território com os EUA e a China enfrentados num confronto geoestratégico no eixo Indo-Pacífico junto com actores de primeira linha como Austrália e o Japom, a Índia e Indonésia, com o Oriente Meio e África entremeias. O futuro preludia conflitos comerciais, financeiros e tecnológicos e um reacomodo de blocos de influência com a OMC e a OTAN em papel arbitral. Sofisticados mísseis de cruzeiro e demais artefactos do arsenal dissuasório garantirám o ominoso equilíbrio de terror do sistema.
A hipótese do progresso ético da humanidade volta a ser desmentida a sangue e fogo; a lógica hobbesiana do homo homini lupus prevalece sobre a da paz perpétua imaginada por Kant
A hipótese do progresso ético da humanidade volta a ser desmentida a sangue e fogo; a lógica hobbesiana do homo homini lupus prevalece sobre a da paz perpétua imaginada por Kant. As bandas assassinas do Grupo Wagner e Black Rock ocupam de novo o cenário enquanto retrocede o Tribunal Penal Internacional falto de valedores.
Entretanto, paira sobre nós o cenário de pranto e o terror que o implacável buril de Käthe Kollwitz soube representar em apertado novelo maternal há justo cem anos. A dor nunca mente, a guerra lembra-nos aliás o que temos ainda de horda primitiva.
Notas
1 https://www.sinpermiso.info/textos/todos-perdedores
2 https://www.realinstitutoelcano.org/el-espectador-global-que-le-prometio-la-otan-gorbachev/