Por mares de dêveda nunca dantes navegados poderia ser umha boa metáfora para descrever o estado da economia mundial. O Canto I dos Lusíadas brinda-nos a melhor metáfora da pletora de dêveda pública e privada que inunda os mercados e empacha os bancos centrais. No entanto, as veneráveis regras de endevedamento virtuoso — défice corrente inferior ao 3%, máximo de 60% de dêveda acumulada sobre PIB— ficam prudentemente em suspenso para espanto dos devotos da vulgata neoliberal e regozijo das belicosas heterodoxias económicas em vigor. Entretanto, o ordoliberalismo germánico e o seu séquito resmunga inócuas maldiçons contra a intolerável onda de permissividade imperante.
O século XXI, devemos reconhecer, nasce com péssimos agoiros. No 11 de Setembro de 2001 o terrorismo fundamentalista abatia as Torres Gémeas de Nova Iorque, no 2008 assistíamos ao inesperado colapso de Lehman Brothers que entulhou de activos tóxicos o sistema e provocou umha letal crise económica a ambos lados do Atlántico. Em dezembro de 2019, um feroz inimigo vírico invadia o mundo desde um escuro recanto de Wuhan, China, revirando todo do avesso. Os mais optimistas esperam agora e reediçom dos felizes vinte que acabárom incubando umha guerra feroz, hoje impensável.
O descomunal impacto económico da pandemia COVID-19 nos EUA e na UE em conceito de gasto sanitário e reactivaçom económica disparárom o défice público e o endevedamente a extremos insólitos. No primeiro trimestre de 2021, a dêveda pública espanhola superava o nível de 125% do PIB (1.393.000 M€: 29.400 euros por habitante) enquanto remontava até o -11% sobre PIB. O peso da dêveda — 125,3% sobre PIB confirmado polo Banco de Espanha em março de 2021 — é um acontecimento histórico superado em contadas ocasions como foi no ano 1902 e dantes, em 1881 quando reinava ainda Alfonso XII (1875-1885). Nom sei se pode servir de consolo a alguém que a marca espanhola seja superada por Portugal (133%), Itália (155%) e Grécia (200%), economias meridionais habituais neste tipo de desventuras. Nesta ocasiom, porém, os países meridionais merecêrom geral indulgência de parte das virtuosas tribunas setentrionais, adoecidas igualmente de pandemia planetária e conscientes de que a soluçom deve ser mancomunada.
O virtuoso preceito ordoliberal que proíbe rebasar o 3% de défice público e o 60% de dêveda acumulada sobre PIB fica em suspenso até novo aviso enquanto se promovem ambiciosos programas de recuperaçom financiados a défice. O prioritário agora é afastar a temível doença deflacionária japonesa que ameaça às economias avançadas.
O arsenal de medidas contracíclicas projectado pola FED americana e o BCE e a sua inusitada potência provocam desconcerto nos imaculados círculos do saber académico. O insólito nível do endevedamento mede-se agora em bilions, milhons de milhons, de euros. Os ambiciosos programas aprontados para atalhar a emergência sanitária e financiar a reactivaçom económica supera já o 20% do PIB nos EUA: 5 b$: 22,4% do PIB, (22,29 b$). A UE segue a mesma senda a prudente distáncia: 1,82 b€: 13,25% do PIB (13,77 b€). Som cifras que desbordam a mítica intervençom do Plano Marshall: 17.000 M$ dos anos quarenta actualizáveis a 185.000 M$ de hoje; 0,185 b$ apenas.
O financiamento anticrise comprometido nos EUA distribui-se entre os programas CARES (2,2 b$) — designado para atalhar os efeitos imediatos da pandemia — mais outro complementar de ajudas directas ao desemprego (0,9 b€) e um terceiro de recuperaçom económica orçamentado em 1,9 b€. A abordagem europeia instrumenta-se no programa de recuperaçom Next Generation por importe de 0,750 b€ mais o orçamento extraordinário 2021-2027 dotado com 1,074 b€1: 1,82 b€ em total.
O substancioso quinhom espanhol nos programas europeus ascende a 150.000 M€ — 60.000 M€ a título de transferências nom reembolsáveis 80.000 mais como empréstimos a devolver e 12.000 M€ adicionais a perceber no período 2021-2022 — absorve o 20% dos 750.000 orçados para o conjunto da UE e equivalem ao 11% do PIB espanhol e o 4,6% do europeu.
Pode que estas cifras nom alcancem a comover a eurofobia recalcitrante nem sequer acrescentando o facto de Espanha manter viva ainda umha dêveda prévia com o BCE de 300.000 M€, 160.000 de procedência pública e 138.000 de procedência bancária e corporativa2 que disparam o crédito comunitário concedido a Espanha até os 450 b€, 36% do PIB. Imaginem umha Espanha sem cobertura financeira comunitária nas circunstáncias actuais.
O descomunal esforço financeiro programado para conjurar os efeitos da pandemia comporta significativas novidades. A primeira é a marcada toleráncia com o descomunal nível de endevedamento contraído; a segunda é a marcada autonomia concedida aos estados membros no desenho dos programas de recuperaçom, e a terceira, e talvez mais significativa, é a histórica decisom de mancomunar a emisom de dêveda através do BCE em lugar de endossar-lha aos estados devedores como aconteceu na crise de 2008. Desta vez, as enfáticas invocaçons ao risco moral ficam subordinadas ao pragmático princípio do estado de necessidade. Um progresso memorável.
A drástica mudança estratégica adoptada em comparaçom com o tratamento da crise de 2008 denunciada por Yanis Varoufakis em “Comportar-se como adultos: A minha batalha contra o establishment europeu” é quase incrível. Como esquecer a lúgubre visita da embaixada dos homens de negro teledirigida por Christine Lagarde desde o FMI e Wolfgang Schäuble desde o Ministério de Finanças alemám, desenhada para infligir um castigo exemplar ás dissipadas economias mediterráneas? Os 60.000 milhons canalizados ao FROB naquela ocasiom para sanear o sistema bancário espanhol houve de ser restituído em tempo e forma polos inermes contribuintes para geral escarmento.
Arestora, em 2021, nove anos depois da tétrica visita a Madrid da brigada dos homens de negro, a sangria terapêutica decretada polos severos tribunais hanseáticos mudou radicalmente a um relaxamento monetário e fiscal que teria merecido a aprovaçom do mesmo Keynes. Ainda bem que desta vez os custódios da ortodoxia económica europeia acabassem por emular o pragmatismo anglo-saxónico da FED e o do Bank of England, sempre dispostos a abandonar o fetichismo monetário quando é preciso.
Boa confirmaçom da espectacular guinada protagonizada polos amos da governança económica europeia foi um ressoante artigo do presidente do Bundestag e Ministro de Economia alemám Wolfgang Schäuble publicado no Financial Times3. Nele, o implacável paladim da sanguinária ortodoxia de antano manifesta-se entusiasta defensor do ambicioso programa anticrise da UE com explicito elogio ao magistério keynesiano. No bando heterodoxo, a controvérsia sobre o novo rumo da política económica cristalizou num ressoante artigo publicado em El País4 no qual, um selecto grupo de economistas espanhóis e algum reputado teórico das políticas igualitárias como Thomas Piketty ou o adversário jurado do paradigma neoliberal, Steve Keen, propunham-lhe ao BCE cancelar unilateralmente a dêveda adquirida ou convertê-la em perpétua a troca de os países afectados acometerem programas de investimento por importe equivalente. As airadas réplicas procedentes da ortodoxia neoliberal (J. M. González Páramo, Luís de Guindos) ou anarco-liberal (Daniel Lacalle) nom tardárom em chegar, mas, a subversom estratégica irá ganhando previsivelmente legitimidade académica e política em linha com a deriva revisionista anunciada por Thomas Kuhn para situaçons de mudança de paradigma.
As consequências socioeconómicas da crise em curso som objecto de controvérsia entre os que sustenham que pouco mudará quando venha a bonança e os que crêem inevitáveis mudanças definitivas. A minha opiniom está com os segundos. Se me pedirem um argumento justificativo proponho um irrefutável. Enfrentado o concerto de países á inescusável obriga de devolver a maré de dêveda contraída, 130 deles que concentram 90% do PIB mundial, acabam de acordar o nunca visto, submeter as multinacionais a um gravame tributário mínimo do 15% da cifra de negócio efectuado em cada país5. A UE, os EUA, China e a Índia entre eles. A recadaçom prevista estima-se em 150.000 milhons de dólares como mínimo. A título de curiosidade aponta-se o facto de que a unanimidade dos 27 da UE em prol do acordo viu-se embaçada por quatro dissidências, as de Irlanda, Hungria, Estónia e Chipre. Dissidências anedóticas e possivelmente transitórias; a rapina tributária e os ignominiosos paraísos fiscais, percebidos já como anomalias na ordem internacional, parecem estar chegando ao seu fim.
Notas
1 https://ec.europa.eu/info/strategy/recovery-plan-europe_es
2 https://www.elconfidencial.com/mercados/2021-04-18/rescate-silencioso-bce-evitar-colapso-economia_3038511/
3 https://insider-voice.com/europes-social-peace-requires-a-return-to-fiscal-discipline/
4 https://elpais.com/opinion/2021-02-04/anular-la-deuda-publica-mantenida-por-el-bce-para-que-nuestro-destino-vuelva-a-estar-en-nuestras-manos.html
5 https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11303855/07/21/130-paises-blindan-el-impuesto-minimo-global-del-15-a-las-multinacionales-.html