Lúgubre Gaza, dia a dia

Pietá de Kollwitz CC-BY-SA Alinea

A comovedora fotografia de umha desconsolada mulher de nome Inas Abu Maamar abraçada ao corpo inerte da sua sobrinha de cinco anos, Saly, envolveita em sudário mortuário no Hospital Nasser de Gaza é obra de Mohammed Salem que lhe mereceu o Prémio Ortega y Gasset à Melhor Fotografia

A comovedora fotografia de umha desconsolada mulher de nome Inas Abu Maamar abraçada ao corpo inerte da sua sobrinha de cinco anos, Saly, envolveita em sudário mortuário no Hospital Nasser de Gaza é obra de Mohammed Salem que lhe mereceu o Prémio Ortega y Gasset à Melhor Fotografia. A instantánea foi tomada no 17 de Outubro passado, distribuída por Reuters e publicada em meios de todo o mundo. A fotografia bateu-nos nos olhos na primeira página de El País1

O júri do Prémio Ortega y Gasset destacava a esmagadora força de vazio e horror transmitida pola imagem de umha mulher sem rosto que parece abraçar-se ao impossível: recuperar a breve vida roubada sem remédio. O contexto é o sofrimento sem fim nem esperança que esmaga dia a dia à desventurada populaçom gazense2. A barbárie vingativa que parece destilada das Sagradas Escrituras das três religions monoteístas que coabitam na Franja projectada sobre o próprio solar nativo. A identificaçom iconográfica com as imagens da Virgem Dolorosa é imediata: a dor inconsolável da nai despojada do fruto das suas entranhas por um fado incompreensível.

A identificaçom iconográfica com as imagens da Virgem Dolorosa é imediata: a dor inconsolável da nai despojada do fruto das suas entranhas por um fado incompreensível

A pungente potência da imagem, a forma que a mulher tem de tentar apropriar-se do corpo definitivamente perdido, a maneira de agarrá-lo num último esforço por devolvê-lo á vida, evoca em nós a comovedora escultura da nai sumida em dor com o seu filho morto em braços de Käte Kolwich3. A mesma dor desconsolada em ambas as mulheres, o mesmo impulso a pugnar por guardar o corpo no seu seio, nas entranhas talvez, para tentar preservá-lo da terra e a corrupçom. O filho mais novo de Käte Kolwich, Peter, perdido em combate em Flandres na Primeira Guerra Mundial latia com força na consciência dolorida da escultora, como o da bem-amada sobrinha de cinco anos, Saly, nos braços protectores de Inas Abu Maamar, envolveita de pés a cabeça com umha túnica azul-escuro que evoca em nós o manto da Virgem das Dores.

A dor dum filho sacrificado no cenário atroz da frente de batalha, a de umha sobrinha menina tragada polo horror irracional na carniçaria obsessiva da Franja de Gaza. Cinco anos nada mais; de onde vem tanta dor inconsolável como o que deixa fôlegos à sua tia? Onde estám os pais? Onde os irmaos e as amiguinhas? Terá sido alcançada sozinha em qualquer ataque cego desencadeado para arrasar o que fora o seu bairro, o rueiro onde jogava cada dia?

O mundo desolado de Käte Kolwich é o mesmo de tantas mulheres palestinas submetidas a um destino trágico e incompreensível que vai roendo o precário tecido humano que as mantinha vivas. As mulheres de Gaza, vítimas agora dum destino implacável que corre veloz como umha tragédia incompreensível sem memorial que o recorde salvo o bronze imortal de Käte Kolwich ou a efémera túnica de Inas Abu Maamar resgatada num instante do anonimato antes de se sumir no silêncio definitivo da desmemória.

A pungente potência da imagem, a forma que a mulher tem de tentar apropriar-se do corpo definitivamente perdido, a maneira de agarrá-lo num último esforço por devolvê-lo á vida, evoca em nós a comovedora escultura da nai sumida em dor com o seu filho morto em braços de Käte Kolwich

Nestes dias de Semana Santa, nesta Sexta-Feira da Paixom, tornam a nós perdidas vozes poéticas dedicadas ao desamparo humano, vozes como a da Sexta-feira da paixão de Carlos Pena Filho carregadas de melancolia azul —palavras sinónimas em inglês— que bem poderiam servir de epitáfio à dor a Inas Abu Maamar e de todas as desventuradas mulheres de Gaza que contemplamos a diário abraçadas a cadáveres, chorando desconsoladas desgraças familiares e colectivas que som as de todo um povo condenado:

O corpo morto: azul melancolia 
do mesmo azul perdido pelos ares, 
vivo azul sobre os campos, sobre os mares, 
sobre a clara manhã e a hora tardia4

O mesmo azul que é em Inas indumento e mortalha.

 

Notas

1 https://elpais.com/elpais/2024/03/20/premios_ortega_y_gasset/1710938567_519782.html

2 Gazeu e gazeia som os gentílicos abonados polo mestre Houaiss a partir latim gazeaeus,a,um

3 https://www.biografiasyvidas.com/biografia/k/kollwitz.htm

4 https://sopadepoesia.blogspot.com/2012/04/soneto-da-sexta-feira-da-paixao.html

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