Umha ostentosa poltrona avermelhada rodeada de vulgares cadeiras portáteis e intercambiáveis é a poderosa metáfora visual elegida por Penguin Random House UK —Editorial Cátedra em Espanha— para ilustrar A tirania do mérito, umha obra de actualidade de ressonante êxito dedicada a desmontar o domínio do discurso meritocrático sobre o indivíduo comum. A ditadura do elitismo académico ou profissional sobre a massa social.
O credencialismo, quer dizer, a exibiçom de um selecto currículo universitário emitido por umha universidade de elite como passaporte aos círculos do poder, forma parte essencial do procedimento. Lembremos quando Trump tentou desqualificar a Obama desta maneira como antes tentara desacredita-lo esgrimindo a suposta estrangeirice do seu nascimento. A insuportável pressom dos usos e valores norte-americanos contamina sem remédio o espaço mediático espanhol como demonstra a exigência de exibiçom pública dos seus títulos a académicos a Sánchez e Casado —discretíssimos em ambos casos— como se eles garantissem a sua competência política. A estupidez, potenciada polo barulho das redes sociais, nom tem cancelas.
A tirania do mérito aborda de frente, sem rebuscadas divagaçons academicistas, os perversos efeitos da carreira meritocrática sobre a categoria do bem comum, essa veterana categoria da filosofia moral que o autor pretende reabilitar
A crítica à fractura social provocada polo domínio da meritocracia é exposta por Michael J. Sandel em A tirania do mérito1. Sandel, lembremos, é um reputado científico social norte-americano, professor em Harvard e prémio Princesa de Astúrias em 2018. O seu livro converteu-se desde o primeiro momento em objecto de apaixonado debate que desbordou aginha o interesse dos círculos académicos para ganhar a atençom da opiniom pública mais atenta e reflexiva. O amplo eco levantado em todo o mundo prova a pertinência da questom.
A tirania do mérito aborda de frente, sem rebuscadas divagaçons academicistas, os perversos efeitos da carreira meritocrática sobre a categoria do bem comum, essa veterana categoria da filosofia moral que o autor pretende reabilitar. A tirania do mérito, esmeradamente cultivada nos selectos cenáculos das universidades de elite e das escolas de negócios, é defrontada com a sua antítese encarnada nas maiorias sociais do trabalhador comum sem atributos, fundamento do bem comum. Ética neoliberal frente a ética comunitária: triunfadores frente a perdedores, os loosers ou pringados do inóspito imaginário social norte-americano.
A perversa mistura de soberbia elitista e ressentimento social que explicam o ascenso de Trump e minam as bases da convivência e respeito mútuo na sociedade americana é o alvo da crítica de Sandel desde o mesmo prólogo da obra. Estamos ante umha obra de sociologia militante, argumentada com sólida contundência teórica inabitual nestes tempos de desconcerto axiológico. Bem-vindo seja o reforço perante o avanço inexorável da vulgata neoliberal e os seus acólitos de toda índole.
O discurso comunitarista de Sandel parte da demoliçom explícita das posiçons teóricas de Hayek e Rawls como fundamento de umha sociedade justa que se disputam hoje a preeminência nas ciência sociais
O discurso comunitarista de Sandel parte da demoliçom explícita das posiçons teóricas de Hayek e Rawls como fundamento de umha sociedade justa que se disputam hoje a preeminência nas ciência sociais. Sandel desqualifica ambos por igual etiquetando as suas posiçons de liberalismo de livre mercado e de liberalismo do Estado de bem-estar coincidentes em confiarem o progresso quer seja às leis cegas do mercado competitivo quer a umha espécie de meritocracia redistributiva fundamentada na igualdade de oportunidades. O rechaço a ambas posiçons estriba, a juízo de Sandel, na preeminência outorgada por ambos às elites possuidoras em razom do seu contributo ao bem-estar colectivo. O erro do argumento reside em ambos casos em ocultar o facto de que todo contributo individual à sociedade depende inevitavelmente da sociedade em que opera, a pirámide social apousa inexoravelmente sobre a base que a sustenta. Um discurso do bem comum enfrentado aos contra discursos de exaltaçom do mérito individual.
A filosofia moral defendida por Sandel tem raiz inequivocamente comunitarista, na linha de um Charles Taylor ou dum Michel Walzer. Na procura de antecedentes intelectuais, dedica Sandel umha secçom do livro a enaltecer a figura de um pioneiro da filosofia comunitária, o militante laborista Michael Young, cuja obra, O triunfo da meritocracia (1954), denunciava com vigor o princípio meritocrático esgrimido polas elites, ufanas do seu poder e singularidade social e cegas ante o valor basilar dos seus subordinados, as maiorias sociais. Mercado frente a Comunidade, dinheiro frente a votos, categorias em pugna na ordem social, complementarias e mal-avindas.
A carreira implacável pola preeminência individual impregna a dinámica das sociedades. Podem servir como paradigma a moreia de estabelecimentos universitários de elite liderados pola Sociedade Phi Beta Kappa norte-americana, alegadamente nascida “para promover a excelência nas humanidades e nas ciências", prolongada na coorte de universidades privadas como as vinte e seis que operam em Espanha com a de Abanca como última incorporaçom. Umha série de estabelecimentos de docência superior afanada em promover a excelência curricular e a cultivar a diferença com a finalidade de aceder à nomina de consagrados nos círculos do poder: Conselhos de Administraçom do Ibex-35, corpos superiores da Administraçom do Estado, unidos na senda dos triunfadores por laços de exclusividade e reconhecimento mútuo.
Recordo um genial debuxo de El Roto onde umha nai leccionava o seu filho com carteira escolar ao lombo: “Recuerda que para tu futuro que lo importante no es lo que aprendas, sino al lado de quién te sientas”. impossível sintetizar melhor a insaciável ansiedade parental para assegurar o acesso ao círculo dos triunfadores. O procedimento tornou há tempo em imperativo educativo precoce bem visível no envio de crianças a cursos em Irlanda ou nos EUA para tentar dominar o inglês como idioma imprescindível para poder competir.
A carreira implacável pola preeminência individual impregna a dinámica das sociedades
A impulso do neoliberalismo hegemónico a filosofia meritocrática foi impregnando a consciência social até converter-se em imperativo profissional. A categoria económica de capital humano é reinterpretada na óptica do individualismo possessivo para configurar o manual do samurai do êxito. Umha via que consiste em transmutar o ser humano num empresário de si mesmo dedicado a acumular capital humano em forma de competências que lhe garantam o êxito no universo hobbesiano de todos contra todos em que se vê sumido.
Maximizar as possibilidades de triunfo é o objectivo que perseguem um enxame de entidades educativas especializadas na direcçom moral dos aspirantes a triunfadores. Técnicas de oratória e autoconfiança como o coaching acompanharám o neófito na exibiçom das suas habilidades ante os seus pares e competidores. “Nom existe essa cousa chamada sociedade, só existem os indivíduos” sentenciava Margaret Thatcher abrindo a época do individualismo possessivo e a competência desatada. Fica cancelado o bem comum como categoria moral obsoleta, o zoon politikon que nos constitui em cidadaos da pólis é engolido polo homo oeconomicus que contabiliza méritos e afectos.
A impulso do neoliberalismo hegemónico a filosofia meritocrática foi impregnando a consciência social até converter-se em imperativo profissional. A categoria económica de capital humano é reinterpretada na óptica do individualismo possessivo para configurar o manual do samurai do êxito
A filosofia moral que nos inspira aproxima-nos à corrente comunitarista dos Charles Taylor, Michel Walzer e Michael Sandel e mesmo á ética social-democrata de um John Rawls que Sandel desconsidera. E contodo, algo achamos de exótico no discurso de Sandel que nos afasta e da sua raiz anglo-saxónica. Os criados na sociabilidade mediterrânica nom saberíamos prescindir da rede de proximidade protectora que nos ampara. Somos filhos do nepotismo da tradiçom apostólica romana, do compadrio, do favoritismo político e o enchufismo que nos protegem da pugna competitiva. Culturalmente meridionais, nom podemos por menos de olhar com aberta desconfiança o inclemente regime do individualismo competitivo que preside a sociedade meritocrática anglo-americana. Afeitos ao habitual concurso de méritos temperado por discretos laços de cumplicidade e pertença nos resistimos a aceitar as regras da competência em campo aberto da mesma maneira que tendemos a desconhecer as virtudes da filantropia habituais no mundo anglo-saxónico. Somos mais da lealdade tribal e os vínculos de pertença. Educados no indulgente trámite sacramental do perdom dos pecados ficamos dispensados da petiçom pública de desculpas ante o prejudicado e a sociedade. Nom é sem consequência que as nossas igrejas estejam repletas de santinhos protectores e as reformadas vazias de numes valedores.
A nossa sociabilidade tradicional tende um inevitável véu de ironia sobre a inóspita ética individualista hobbesiana e tende a menosprezar o ideal filantrópico. Boas-vindas a este breviário do bem comum assediada polo implacável avanço do discurso neoliberal, à vindicaçom das modestas cadeiras frente à ostentosa insolência da poltrona insolidária.
Notas
1 Michel J. Sandel, La tirania del mérito ¿Que ha sido del bién común?, Editorial Debate (Penguin Random House), 2020.