Em 1950, o sociólogo norte-americano David Riesmann e dous colegas seus davam à luz um ensaio chamado a concitar grande atençom nos E.U.A. A obra, subintitulada “um estudo da mudança do carácter americano”, tentava compreender os estilos de sociabilidade em vigor na sociedade norte-americana. Três eram os tipos de personalidade descritas por Riesmann: a cidadania guiada pola tradiçom, inadaptada às sociedades modernas; a guiada por firmes princípios morais adquiridos na infáncia, vítima da rigidez de ideias, e finalmente, a cidadania disposta a se deixar guiar, idónea para configurar sociedades modernas, em opiniom dos autores. Apesar do seu sucesso inicial, a capacidade explicativa deste esquema interpretativo foi mui fugaz; tradiçons, valores e lealdades vírom-se expostas a forte erosom no imediato pós-guerra e a subsequente globalizaçom acabou triturando os vínculos sociais na amálgama da modernidade líquida em que vivimos. O Twitter, esse grau zero da intercomunicaçom, pode servir de símbolo adequado.
Três eram os tipos de personalidade descritas por Riesmann: a cidadania guiada pola tradiçom, inadaptada às sociedades modernas; a guiada por firmes princípios morais adquiridos na infáncia, vítima da rigidez de ideias, e finalmente, a cidadania disposta a se deixar guiar, idónea para configurar sociedades modernas
Se o livro de Riesman é lembrado ainda deve-se provavelmente à evocadora ressonáncia do seu título: The Lonely Crowd, A Multidom Solitária. Magnífico oximoro, embora, surpreendentemente, nom proceda dos autores da obra senóm dos seus editores. O título, acabaria seduzindo o fino ouvido poético de Bob Dylan que o incorporou tal qual a umha cançom de atmosfera carcerária composta em 1967: I Shall Be Released, Serei liberado. O texto vai debulhando as divagaçons de um recluso entre a impossível esperança e o mais negro desespero: [...] “Standing next to me in this lonely crowd // Is a man who swears he's not to blame // All day long I hear him shout so loud // Crying out that he was framed” [...] “De pé onda mim nesta multidom solitária // Um homem jura que culpa nom tem // Todo a dia a eito a berrar // Que foi incriminado por azar”. I Shall Be Released via a luz no álbum de debute de umha histórica banda de rock: The Band, Music from Big Pink.
Comunidade reclusa, metáfora precisa da multidom solitária que se afana dia a dia no formigueiro urbano ou no encerramento decretado por um exíguo artefacto de ARN monocatenário. Nom surpreende que seja no mesmo ámago deste labirinto de soledade anónima onde brote o seu antídoto societário: a comunidade de sentido, um conceito cunhado para nomear qualquer receptáculo social regido por valores defensivos como a reciprocidade, o convívio e o auto reconhecimento.
A antinomia entre reconhecimento comunitário e anonimato social é fulcral na analítica social. A antropologia cultural da Galiza elevou a princípio até hoje mesmo a antinomia entre família e paróquia rural frente a anonimato urbano. A sombra de Ferdinand Tönnies no anda longe. Devemos-lhe ao sociólogo alemám a importante distinçom entre Comunidade (Gemeinschaft) de umha parte — baseada em vínculos de proximidade territorial e cultural — e Sociedade (Gesellschaft) da outra, onde impera o individualismo competitivo, a divisom de trabalho e o anonimato. A antinomia de Tönnies foi formulada em 1887; justo no ano em que principiava a construçom da Torre Eiffel, chamada a presidir a Exposiçom Universal de 1889. Um símbolo premonitório do implacável século XX, triturador de comunidades e sociedades no morteiro das identidades messiánicas de classe ou etnia.
A antropologia cultural da Galiza elevou a princípio até hoje mesmo a antinomia entre família e paróquia rural frente a anonimato urbano
O conceito de comunidade de sentido é cem anos posterior a antinomia de Tönnies. Em 1986, os professores McMillan & Chavis abriam um debate académico sobre o sentimento de pertença social na sequência de umha obra pioneira do catedrático de Yale, Seymour Sarason (1974). Quatro eram as componentes que os professores lhe atribuírom a umha comunidade de sentido: 1) Sentimento de pertença grupal 2) Existência de relaçons de influência recíproca entre os seus membros 3) Adesom a umha comunidade de propósitos e, 4) Interconexom emocional entre os membros da comunidade. Parece claro que umha arca do dilúvio para navegar a lonely crowd.
Surgidas do intento compensar o mal-estar gerado polo individualismo mercantilista e a perda de afectividade no abismo do anonimato social, as comunidades de sentido proliferárom por toda a parte com os mais variados propósitos. Desde associaçons de vocaçom universal e humanista como som as ONG até os grupos embarcados no delírio como a Cientologia ou a Ufologia, com os seus líderes, profetas, financiamento e noviciado. Há-as defensoras de etnias ou línguas ameaçadas, como é o caso do movimento reintegracionista, e outras de exígua materialidade, unidas apenas por um vínculo digital, dedicadas mormente a apaziguar a ansiedade mútua com variados menus temáticos, desde o simples comentário da imprensa diária à mais selecta e minoritária área temática.
O doloroso dilema entre soledade egocêntrica e convivência conflituosa foi descrito com singular agudeza e economia de meios por esse lúcido pessimista que foi Arthur Schopenhauer: Em meio dum frio insuportável, dous ouriços se aproximam em busca de abrigo mútuo. O frio obriga-os a confundirem-se em apertado novelo, as dolorosas puas a separarem-se. Afinal sempre fica a possibilidade de optar pola ascética tinalha de Diógenes de Sínope como pequeno refúgio auto-suficiente onde guardar a sabedoria do despojamento radical.
Surgidas do intento compensar o mal-estar gerado polo individualismo mercantilista e a perda de afectividade no abismo do anonimato social, as comunidades de sentido proliferárom por toda a parte com os mais variados propósitos
As comunidades de sentido, escusado lembrá-lo, estám inevitavelmente expostas aos azares de dissidência e às pulsons de ruptura. O tédio e o desencanto som consequência natural da frustraçom de expectativas ou do simples cansaço. Umha situaçom descrita como trilema polo grande economista Albert Hirschman no seu livro “Saída, Voz e Lealdade”: alçar a voz, abandonar o projecto ou inibir-se em tíbia lealdade conformista. Singularizar-se em discrepância activa, desvincular-se ou, simplesmente, deixar-se ir.
Quando os mecanismos da frustraçom se tornam destrutivos costumam inspirar soluçons épicas e a defesa numantina do projecto ultrajado pode provocar desvarios interpretativos. Fôrom baptizados como dissonáncia cognitiva polo psicólogo estadunidense Leon Festinger em 1957: se a realidade contradiz o sonho, neguemo-la para salvar o sonho. O rechaço obstinado da realidade pode acabar instalando de forma permanente um viés de confirmaçom que conduz a seleccionar em forma quase automática unicamente as percepçons que confirmam os nossos preconceitos relegando à irrealidade aquelas que o impugnam. Umha doença habitual em hostes políticas, torcidas desportivas e outros cultos identitários.
Quando os mecanismos da frustraçom se tornam destrutivos costumam inspirar soluçons épicas e a defesa numantina do projecto ultrajado pode provocar desvarios interpretativos
No filme de Nicholas Ray, Johnny Guitar (1954), Johnny, o protagonista, que deixara o revólver pola guitarra, tenta resistir o seu fracasso vital suplicando-lhe ao seu antigo amor, Vienna, dona da casa de jogos em que agora actua, que lhe confirme o antigo amor, já impossível: Mente-me, Vienna, diz-me que me esperaste todos estes anos, que terias morto se eu nom volver, que me queres ainda como eu te quero. Vienna vai-lhe confirmando por piedade, umha por umha, todo o rosário de súplicas que unicamente pretendem abafar o insuportável fracasso negado. Muitas graças, replica Johnny.