Nós colectivo: povo e sociedade

Mapa de Galicia do século XVII ©

Sentencia-se a cotio que todo povo tem direito a decidir o seu futuro ou, já sem evasivas, que toda naçom tem direito á sua autodeterminaçom. Direito proclamado, como é evidentemente, que nada tem a ver com direito reconhecido por instáncia decisória protegido por lei. Povo e naçom som as categorias evocadas: demos diferenciado portador de destino, afinal.

O povo, como substrato de naçom, é proclamado assi titular de direito soberano, titularidade que em rigor só pode ser atribuída ao cidadao inserto numha sociedade democrática. O demos é elevado desta forma a indivíduo singular, sujeito histórico colectivo.

Mais passemos á categoria de sociedade, alguém poderia legítimo proclamar: toda sociedade tem direito a decidir o seu futuro, em definitivo a autodeterminar-se? A pretensom soa agora forçada, mesmo absurda. Autogovernar-se, já sem épica, seria o termo adequado. Autogoverno ou governança municipal, por exemplo.

Qual pode ser a razom desta aptitude da categoria povo para ser investido de direitos históricos da qual a sociedade é excluída?

Em realidade, só o povo, como hipóstase de agente histórico colectivo, é sujeito de direitos conferidos que seria absurdo atribuir á sociedade: eu, ti, o operário e o patrom, o oriundo e o imigrante, o letrado e o iletrado os partidos, os sindicatos, as estruturas de Estado, os médios de comunicaçom.

De onde pode proceder esse suplemento de legitimidade que concede ao povo um estatuto de representatividade política e histórica que lhe é negada á sociedade sendo esta como é a categoria empírica mais imediata e concreta da convivência humana? Na nossa historicidade colectiva reside a diferença. Somos humanos por simples convivência social continuada, somos povo em quanto capazes de figurarmo-nos colectivo com história, sujeitos de um relato colectivo aberto ao porvir.

Ortega y Gasset explicou-o com a sua proverbial claridade: “La razón histórica, que no consiste en inducir ni en deducir, sino lisamente en narrar, es la única capaz de entender las realidades humanas”. O fluxo do tempo acumula lembrança, matéria-prima de toda narraçom. Ortega identifica razom histórica e razom narrativa. É a razom narrativa afinal a instáncia que constitui a sociedade em povo. Da sociedade trata a sociologia, a demoscopia eleitoral, as estratégias publicitárias, a actualidade mediática. O relato histórico é o espelho da narraçom colectiva onde nos imaginamos povo projectado ao futuro. O povo afinca no relato que o identifica e o justifica, a sociedade é umha malha de relaçons sem mais propósito que a sua reproduçom e a persistência.

A projecçom do individuo à sua própria dimensom histórica é prévia á elevaçom de umha colectividade à categoria de povo histórico. A primeira nasce da mesma memoria familiar, a segunda, caso de dar-se, precisa de umha complexa operaçom de tránsito de província do antigo regime a naçom aspirante a estado nacional.

Mesmo numha aldeia galega qualquer, a estirpe familiar, confirmada em ducumentaçom legal acreditativa de herdanças e partilhas, consagrada no elenco de finados do cemitério paroquial, actualizada nos serviços colectivos, na gestom da água e o arranjo dos caminhos, na cooperaçom laboral, nos nascimentos, enterros e festas, atravessa o tempo e vai fijando o perfil de cada estirpe. Um simples indivíduo de qualquer aldeia anónima que emigrava a América sabia-se natural de umha Comarca de e umha paróquia, com tendência a agrupar-se com os seus conterráneos. Foi esta colectividade diferenciada que sabia de quem vinha sendo o lugar onde cresceu o relato identitário de Galiza povo histórico em procura de um destino. As revistas da emigraçom o confirmam.

Povo foi durante muto tempo a denominaçom da gente inominada e pré-política. Arraia-miúda denominavam no Portugal dos quatrocentos a camada plebeia sem título de dignidade ou riqueza. O desdém vinha de longe; lembramos a fórmula Senatus Populusque Romanus da antiguidade latina que aludia á brecha irredutível que separava a classe senatorial da plebe indiferenciada que tardaria séculos em ascender a terceiro Estado na França revolucionária e a quarto Estado no fracassado projecto proletário.

O nascimento fulgurante do Povo como colectividade de destino surge como proclamaçom constituinte, supremo acto de soberania. We, the people of the United States proclamárom os constituintes norte-americanos a maneira de enunciado performativo que inaugurou o povo americano. Nascia um novo agente histórico, titular de direitos inalienáveis. O demos constituinte norte-americano de onde era excluído o nom-cidadao negro, plebe marginada do novo povo surgido por proclamaçom.

Peuple e volk, povo em todo o caso, som substantivos singulares, aptos para serem proclamados e investidos de direitos. Contra toda aparência, people, gente, é substantivo plural que alude a um colectivo complexo, inequivocamente societário. Povo aponta para umha totalidade orgânica, gente para umha multiplicidade heterogénea. Metafísica continental frente a empirismo anglo-saxónico.

O povo habita nos domínios do folk-lore, dos saberes do povo; a sociedade debate-se no caos comunicacional, interactivo e contingente por natureza. A sociedade é sempre politeísta, o povo monoteísta; o politeísta é propenso ao cepticismo, o monoteísta ao dogma.

Os povos protagonizam o curso da história, consagram datas e delimitam períodos, reescrevem continuamente a sua autobiografia distintiva. As sociedades mudam a ritmo variável. Há sociedades estancadas e dinâmicas, coesas ou desestruturadas, arcaicas ou modernas, mestiças ou etnicamente homogéneas. Quando escuitemos falar de “povo” faremos bem em indagar na narrativa inerente. Quando ouçamos “sociedade”, nom esqueçamos reflectir no esquema analítico implícito que explica os resultados pretendidos.

A naçom romântica, veículo histórico do povo como sujeito histórico é o produto de vates que afirmam interpretar as vozes ancestrais. O seu relato, multiplicado em festas pátrias, certames poéticos e literatura identitária constitui-nos em etnia diferenciada, galega, catalã, basca, por nom falar da espanhola que nos impregna e condiciona até o ponto de se fazer invisível. Somos o que cremos ser, todos procedentes desse momento inaugural que foi a onda revolucionária de 1848 que abalou a decrépita arquitectura política europeia para inaugurar a primavera dos povos.

Nós, povo galego, fomos projectados á esta condiçom singular pola onda que tivo o seu início no liberalismo revolucionário e floresceu na Geraçom Nós, capaz de sonhar por primeira vez umha Galiza em construçom, emancipada da olhada alheia, aberta ao pacto com Espanha e Portugal quando as circunstáncias históricas fossem propícias. O relato, tingido já da melancolia da derrota, fica em espera nessa inimitável apologia colectiva e prontuário de aspiraçons que é o Sempre em Galiza e o seu par poético, perdida já daquela toda esperança, Alba de Glória, relato espectral de um povo em permanente tránsito, salvado apenas pola palavra poética.

Somos povo galego, revelado no relato que nos constitui como tal, somos sociedade galega sem atributos nas estatísticas do IGE, nos jornais, nos telediários, nas nossas fugazes biografias individuais.

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