Orquídeas e filosofia

Cypripedium parviflorum CC-BY-SA Orchi

Nada mais incitante para um leitor de livros de pensamento que as autobiografias intelectuais dos mestres pensadores. É difícil resistir-se a essa íntima mistura de apologia persoal e filosófica que envolvem o leitor interessado na literatura filosófica. As Confissons de Agostinho de Hipona e de Rousseau acodem de imediato às mentes mas, a estas, somaria-lhes eu de bom grado a admirável solidez argumental de Busca sem termo de Karl Popper e o extrovertido breviário Trotsky e as orquídeas silvestres1 de Richard Rorty (1931- 2007). A primeira, pola apaixonada defesa do racionalismo crítico e do princípio de falsabilidade e o opúsculo de Rorty pola sua cativante desenvoltura de polemista consumado.

O opúsculo de Rorty relata o tránsito do autor da fugaz fé trotskista da sua primeira adolescência à inabalável sensatez da filosofia do sentido comum, empirista de raiz e um tanto trivial em resultados, que é o pragmatismo americano. No seu fascinante panfleto autobiográfico, desenvolve Rorty umha plausível apologia do pragmatismo contra a habitual imputaçom de ter abandonado as grandes tarefas encomendadas ao saber filosófico desde Platom. Imponentes moinhos de vento para os limitados recursos do filósofo, sentencia Rorty. Quando me perguntam polo ofício do filósofo fico mudo, replica aos seus críticos, e acabo confessando que um professor de filosofia nom difere muito de um químico de profissom; a sua tarefa limita-se a cultivar a familiaridade com certas tradiçons intelectuais de igual maneira que um químico deve atrever-se a prognosticar o resultado de misturar certas substáncias. A ironia despretensiosa e a agudeza intelectual que caracterizam o estilo de Rorty som qualidades que recordam ao leitor espanhol muitas das intervençons públicas de um Fernando Savater ou de um Félix de Azúa, excelentes impugnadores de todo tipo dogmatismo bem-pensante, ultimamente desluzido pola deriva serôdia a partilhar argumentos com o conservadorismo recalcitrante tam certeiramente impugnados por Ignácio Sanchez-Cuenca em La desfachatez intelectual. Nom podemos por menos de invejar neste arrabalde do noroeste a prática da liberdade polémica incondicionada tam limitada aqui polo confinamento habitual em ortodoxias tribais ou jornalísticas.

Nom é fácil de explicar o persistente fascínio intelectual de Trotsky. Um mito no seu tempo. Derrotado e expulsado da URSS em 1929 e capaz de manter sem desmaio nom obstante a insensata esperança na iminente revoluçom mundial pendente. Foi o Trotsky de Frida Kahlo e o seu selecto círculo mexicano, que acabou assassinado no 21 de agosto de 1940 pola picareta rancorosa de Stalin no seu último reduto no bairro mexicano de Coyoacán onde ainda podemos contemplar as inúteis medidas preventivas instaladas nos muros do seu jardim.

O fascínio trotskista foi capaz de ganhar para a causa honestos militantes da revoluçom permanente como os pais de Richard Rorty. O seu filho herdou deles desde a infáncia a convicçom trotskista, antes que o seu temperamento independente e libertário o desviasse às filas do pragmatismo; essa filosofia de inequívoco cunho anglo-saxónico que acabou por dominar o vigoroso país de Walt Whitman e Mark Twain.

É impossível conter o sorriso ante a prosa linguaraz de Richard Rorty. Num dos artigos incluídos em Pragmatismo e Política, “Os intelectuais e o fim do socialismo” (Rorty, 1992), o filósofo enfia a sua aguilhada ao discurso teórico socialista. Ninguém de nós admitiria de bom grado que alguém falasse dos “excessos de Hitler” para referir-se à ignomínia nazi, argumenta Rorty; pois bem, conclui, o mesmo escándalo experimentam húngaros e checos quando ouvem falar de “os excessos de Stalin”. Vai sendo hora de contemplarmos Lenine, Trotsky e Stalin como aconselhava Vladimir Nabokov, remata: três gángsteres desapiedados diferenciáveis apenas polo formato das suas barbas e bigodes. Todos concordamos, conclui, em que a segunda guerra mundial foi umha guerra justa embora muitos se neguem a admitir ainda que a guerra fria também o foi.

Quando eu tinha doze anos, rememora Richard Rorty, os livros mais chamantes na biblioteca familiar eram os dedicados aos delirantes juízos de Moscovo, 1936-1938, que declarou réus de execuçom à totalidade dos membros do Comité Central bolchevique de 1917. O juízo que preludiou a vaga de terror e assassinatos massivos desencadeados pola fúria paranóica e tiránica da cascuda que habita no Kremlim como o retratou para a sua desgraça o poeta Ósip Madelstam em versos memoráveis. Desde o seu exílio mexicano, Leom Trotsky ousou desafiar a orgia vingativa moscovita organizando a “Comissom de Investigaçom dos cargos formulados contra Leom Trotsky nos Juízos de Moscovo”, conhecida como Comissom Dewey2 pola presidência na mesma do filósofo pragmatista John Dewey. O juízo decorreu entre o 10 e o 17 de abril de 1937 na Casa Azul do bairro de Coyoacán, morada de duas personagens tam fascinantes como Frida Kahlo e Leom Trotsky. Tivem ocasiom de fazer umha saudosa visita às moradas de ambos no distrito de Coyoacán quando ainda me regia o corpo.

A revoluçom russa atraiçoada por Stalin assemelhava-se à sagrada encarnaçom atraiçoada dos católicos para aquele cándido luterano que era eu daquela, burla-se Rorty da sua piedade infantil trotskista. Meu pai, rememora, acompanhou John Dewey a México, e, devido ao facto de os meus pais romperem com o Partido Comunista Americano em 1932, fôrom tachados de trotskistas polo Daily Worker. Aquela ruptura levou os progenitores a se interessarem pola natureza e a botánica num desvio que antecipou à própria viragem de Richard Rorty de Trotsky a Dewey passando polo esplendor dos Montes Apalaches.

Os progenitores do futuro filósofo deram em praticar longas caminhadas pola montanha e daí a se interessarem polas orquídeas que crescem ventureiras nos Montes Apalaches. Foi desta maneira como a família Rorty trocou a paixom emancipatória pola floral que acabou afeiçoando o futuro filósofo no estudo das maravilhosas orquídeas montesinas das quais chegou a identificar dezassete entre as quarenta variedades ali existentes. A sua preferida foi a conhecida como Pequeno Chinelo de Dama Amarelo, a Lady Slipper Cipripedium Parviflorum da botánica floral.

Aos quinze anos cumpridos, recém-ingressado na Universidade de Chicago, Richard emproara definitivamente cara o seu projecto vital definitivo, mergulhar-se no subtil mundo das orquídeas como senda de insubmissom intelectual e liberdade que o conduziria ao cultivo da filosofia.

 

Notas

1 Richard Rorty (1992): “Trotsky y las orquídeas silvestres” em Pragmatismo y Política, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1998.

Ver também: http://www.librosdelcrepusculo.net/2015/11/trotsky-rorty-y-las-orquideas-silvetres.html

2 https://www.laizquierdadiario.com.mx/Los-dias-de-la-Comision-Dewey-en-la-Casa-Azul-de-Frida-Kahlo?id_rubrique=1714

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