Polos mares fabulosos de Simbad

As viaxes de Zheng He Dominio Público

O mar imenso e tentador, cenário de maravilhas e tragédias, é o protagonista da história narrada por David Abufalia1 num prodigioso volume de 1.400 páginas ilustrado com umha mao-cheia de mapas e imagens alusivas para regalo do leitor. Abufalia é um reputado historiador británico filho da gloriosa estirpe sefardi portuguesa que nos deu um David Ricardo e um Baruch de Espinosa. Um mar sin limites. Una historia humana de los océanos (Crítica, 2013)2 é umha fascinante história universal de descobertas, embaixadores navegantes, ousados mercadores e marinheiros de fortuna possuídos pola insaciável paixom de explorar os ignotos confins dos oceanos em procura de glória e ventura.

A história dos grandes navegantes depara biografias tam fascinantes como a de Zheng He, conhecido no seu tempo como Ma Sanbao, protagonista de umha assombrosa epopeia que conseguiu unir a costa chinesa com as terras maravilhosas do elefante, a girafa e o prodigioso pássaro Roc dos relatos de Simbad, umha avestruz talvez da costa queniana de Melinde onde iria aportar Vasco da Gama em 1498. O grande almirante Ma Sambao já visitara a celebrada cidade em 1414, quase cem anos antes.

Ma Sambao que passou a ser conhecido como Ma He e finalmente Zheng He é um personagem histórico fascinante. O patronímico Ma, abreviatura de Muhammad, véu-lhe por parte de pai que pertencia á etnia Hui, de religiom muçulmana. O pai de Ma Sanbao era um respeitado hajji por ter cumprido a preceptiva hajj da peregrinaçom á Meca. A família do futuro Zheng He gabava-se de proceder do rei Muhammad de Bukhara, no actual Uzbekistám, onde nascera e estudara por ventura o grande sábio Ibn Siná, conhecido entre nós como Avicena.

Prouve ao destino que o jovem Ma Sambao fosse capturado quando novo, castrado, e incorporado ao exército imperial onde destacou em seguida pola sua sagacidade que lhe valeu imediato prestígio e inúmeras amizades no selecto círculo do príncipe Yan ao ponto de este alcançar o trono imperial como imperador Yongle em 1402. Estamos nos primórdios da gloriosa dinastia Ming (1368-1644), que conseguia aceder ao poder depois de ter derrocado a precedente dinastia Mongol em 1368. O novo imperador procedeu e recompor de imediato a estragada economia do celeste império e a promover a indústria naval e as técnicas de navegaçom com o manifesto propósito de dominar os mares da China e o Oceano Índico. Foi nestas circunstancias quando Ma He acabou adoptando o nome de Ma Zheng e finalmente o de Zheng He no momento em que era nomeado almirante imperial plenipotenciário dos Oceanos por vontade imperial.

Em 1405 começou Zheng He a sua epopeia ao mando de umha descomunal frota de 62 baixeis e 27.800 tripulantes. A ambiciosa aventura nom seria possível de nom contar com umha avançada tecnologia naval e profundos conhecimentos da arte da orientaçom e a navegaçom possuídos pola corte da dinastia Ming. Admira ainda a avassaladora majestade dos imponentes juncos imperiais: 137 metros de eslora (450 pés) por 55 de manga (180 pés) que minimizam o discreto porte das caravelas ibéricas; as de Vasco da Gama nom superavam os 23 por 18 metros (74 por 18 pés). O celeste império localizou os seus estaleiros na dilatada foz do rio Yangtze, perto de Nanquim.

O grande viageiro berbere do século XIV, Ibn Battuta (1304-1378), relatou o seu assombro ao contemplar os juncos chineses na baia de Calcutá: Os navios tinham até 12 velas, todas feitas de bambu entrelaçado. A tripulação podia chegar ás mil persoas, 600 marinheiros e 400 guerreiros e as sua famílias viviam a bordo do navio, onde cultivavam verduras, legumes e gengibre em tanques de madeira. Contodo, nada seria possível sem o preciso conhecimento do regime dos monçons de inverno e verao imperantes no mar Arábico, Índico e Chinês. Ciência árabe e hindustánica velada aos europeus até ser revelada por Diogo Cão, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama no curso das suas viagens circum-africanas em procura do mítico reino do Preste João, das Índias e o Cipango.

O propósito dos ambiciosos périplos de Zheng He pode resultar chocante para a nossa pragmática mentalidade: exibir a glória do celeste império Ming e trocar elegantes manufacturas chinesas por exóticas maravilhas para o requintado desfrute da corte imperial; especiarias delicadas e exemplares de elefantes, girafas, zebras, avestruzes ou antílopes de torneada cornamenta. Puro consumo conspícuo na terminologia de Thorstein Veblen grata aos economistas como demonstra o facto de nunca ter estabelecido feitorias e bases comerciais nos seus périplos como faziam portugueses e holandeses.

O desígnio exibicionista e apologético que inspirava a insólita epopeia de Zheng He3 em nada impediu o seu desmesurado programa, sete maravilhosas viagens aos confins do Oceano Índico: 1405-07, 1408-09, 1409-11, 1413-15, 1417-19, 1421-22, 1431-33. Sete aventuras oceânicas empreendidas em quase trinta anos. Na primeira, segunda e terceira viagens contornou Zheng He a costa de Bornéu, Java e Sumatra até Calcutá, no sul da Índia, no quarto alcançou a costa da península arábica até Ormuz e Adém e a partir do quinto explorou a costa africana oriental até Mogadíscio e o mítico Malinde dos portugueses, terra de requintados presentes para a gloriosa dinastia Ming.

Sete fôrom as viagens de Zheng He; impossível nom pensar nas sete de Simbad o navegante, ou o marujo como gostam dizer os portugueses. Ma Sambao bem pode ser conceituado como o antecedente histórico certo do seu homónimo Simbad, como este foi o inspirador das saudosas memórias do Velho Simbad e a sua airosa nau Venadita relatadas polo grande timoeiro de sonhos Al-Faris Ibn Iaquim Al Galizí de Mondonhedo. Sete as viagens de Ma Sambao, sete as de Simbad como os sete os dias inaugurais do Génese.

Da epopeia de Ma Sambao fica apenas esvaída memória em enciclopédias eurocêntricas, a memória de Simbad no entanto mantém-se viva nessa enciclopédia de maravilhas que som As Mil e umha Noites. A célebre colecçom de contos árabes que chegou a nós através da versom francesa do orientalista Antoine Galland que a deu a luz entre 1704 e 1717. Surpreendentemente, a história de Simbad nom figurava na ediçom inicial e foi incorporada logo após polo próprio tradutor. Galland era um orientalista apaixonado que já tinha traduzido o Kalila e Dimma e as aventuras de Simbad nos anos finais do século XVII com dedicatória á sua mecenas, a Marquesa d`O, filha do embaixador da França em Constantinopla. Estamos no tempo inaugural do orientalismo que iria engaiolar geraçons de leitores a fio.

Simbad o navegante, as-Sindibād al-Baḥri como é conhecido em árabe, acabou entrando afinal nos relatos da corte de Harune Arraxide — Aarom o Justo — (786-809)4, califa de Bagdad, na figura de um pobre moço de fretes da cidade califal ao qual a boa ventura levou a conhecer um dia um rico comerciante que ao ouvir o seu nome se surpreendeu de coincidir com o seu próprio e daí a confessar-lhe que também ele nascera pobre antes de que o bom fado o tornasse rico e a convidá-lo a escuitar a incrível história das sua viagens e a sua actual fortuna.

O embriagador aroma de lenda que envolve o reinado de Harune Arraxide e as suas mil e umha noites convida-nos a parar mentes na engaiolante biografia do califa. Estritamente contemporáneo de Carlomagno (747-814), ambos coincidírom no plano diplomático na comum oposiçom á dinastia cordovesa dos Omeias ou Omías, que conseguira estender o seu fabuloso império desde o califado de Damasco até o de Córdova (756-929). A magnanimidade de Harune Arraxide permitiria a Carlomagno garantir o acesso pacífico dos peregrinos a Jerusalém. Tempo de prodígios relatados em miniados pergaminhos. Na lenda áurea compostelana da Historia Turpini, incorporada como apêndice ao Codex Calistinus, assistimos á edificante expediçom guerreira de Carlomagno aos reinos da Espanha por oportuna inspiraçom apostólica em que o santo Apóstolo Santiago se aparecerá em sonhos ao invicto imperador para encomendar-lhe limpar de sarracenos o sagrado Caminho que leva ao seu sepulcro. A encomenda nom só iria a ser atendida com solícita benevolência como ainda suplementada com a piedosa assistência do imperador a um concílio convocado em Compostela para investir a cidade da dignidade de sede apostólica, ao par de Roma e Éfeso. Na encantadora lenda compostelana transparece através dos séculos as engenhosas argalhadas do denodado escritório de Gelmírez em prol da imarcescível glória de Compostela5.

Sete fôrom as maravilhosas viagens e naufrágios de as-Sindibād al-Baḥr, cavalgando baleias ou transportado pola fabulosa Ave Roc, atravessando vales ateigados de diamantes e serpentes, esquivando monstros ávidos de carne humana ou conseguindo safar-se do Velho do Mar impossível de desmontar quando era quem de agavear a carranchapernas do pescoço do infeliz portador. Simbad foi arrebatado até ante o mesmo trono de Alá e os seus anjos.

Entretecido neste relato de maravilhas ecoa o mapa dos roteiros marinhos navegados dantes por Ma Sambao, como na chegada de Simbad ao reino de Serendib, no Ceilám, onde o fabuloso marinheiro consegue fascinar o monarca com as notícias da corte de Harune Arraxide ao ponto de este lhe confiar umha taça esculpida numha única pedra de rubi como condigno presente ao poderoso califa de Bagdad. Ou no demorado deambular final de Simbad polos mares de Ásia com que cerra o seu mágico périplo de 20 anos polos reinos da fantasia de Zeng He.

Zeng He, Ma Sambao, Simbad o mainheiro, Carlomagno, Harune Arraxide: como poder evocá-los sem a varinha mágica da prodigiosa caneta de Cunqueiro6?

 

Notas

1 https://es.wikipedia.org/wiki/David_Abulafia

2https://www.casadellibro.com/libro-un-mar-sin-limites-una-historia-humana-de-los-oceanos/9788491993056/12231145

3 https://www.britannica.com/summary/Zheng-Hes-Achievements

4 https://pt.wikipedia.org/wiki/Harune_Arraxide

5 Ermelindo Portela Silva: Diego Gelmírez y el trono de Hispania. La coronación real del año 1111

6 https://core.ac.uk/download/pdf/287747345.pdf

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