Psicofonias conspiranóicas

© Brett Ryder

Na manhã de natal de 2020, a cidade de Nashville, Tennessee, amanheceu sobressaltada pola explosom de um veículo caravana no centro da cidade. O alcaide da cidade avançou a hipótese de que a explosom fora intencionada e a própria FBI, que se encarregou do caso, acrescentou que a intençom fora criar o caos em data tam assinalada. As pesquisas posteriores acabárom concluindo que o sucesso fora devido ao suicídio de um homem de 63 anos de nome Anthony Quinn Warner, obsidiado pola teima de estar sendo espiado pola rede 5G. Quinn Warner, um informático esquivo e solitário, decidira estacionar o seu veículo diante da empresa tecnológica AT&T, colocar a banda sonora da cançom Downtown de Petula Clark que descreve a tristeza dos centros das cidades e activar a explosom libertadora. Decidira apagar o interruptor da vida antes de ter que suportar a ameaça ubíqua que o torturava.

Seis de janeiro de 2021; o Congresso dos E.U.A. é assaltado por unha horda fundamentalista mobilizada para impedir a confirmaçom de John Biden como novo presidente do país. O inconcebível golpe de Estado no país precursor da democracia moderna saldou-se com cinco mortos e numerosos feridos. A tribo assaltante, chegada dos mais apartados Estados da Uniom, pretendiam salvar a República do império do mal encarnado no novo governo. A imagem de Jacob Chansley, também denominado Jake Angeli ou xamám QAnom, ataviado com pele de búfalo e cornamenta e com a cara pintada com as cores da bandeira, permanecerá na retina como imagem do regresso à barbárie tribal de umha sociedade considerada avançada e mesmo exemplar. Em realidade, umha sociedade apavorada, nutrida com lixo mediático transmissor de alternative facts, nova denominaçom da mentira tóxica e infecciosa envolvida em delirantes psicofonias de viés paranóico e intençom autocrática. O fenómeno pode ser interpretado como simples fascismo para consumo popular, e como tal, envolvido numha neo língua como a anunciada por George Orwell em 1984 ou por Victor Klemperer em Lingua Tertii Imperii. Perverter a língua é o primeiro passo para corromper a ordem democrática; a trola, as fake news, circulam sem controlo pola rede, prontas a consumir e a servir de viático aos adeptos.

Os transtornos delirantes alimentados polas teorias conspiratórias necessitam, além de meios e códigos comunicativos próprios, protótipos sociais onde projectar os temores reprimidos e o ódio reparador. Protótipos capazes de concentrar o ódio e o medo que se pretende conjurar: o bode expiatório a precipitar no abismo carregado com as culpas colectivas da antiga Israel, o fogo inquisitorial purificador aplicado ao herege e o insubmisso, personalizados hoje em perversos conspiradores entrincheirados em suspeitosas fortunas com George Soros e Bill Gates como suspeitosos habituais.

Nom há tanto proliferavam os relatos de óvnis, objectos voadores nom identificados, que nos permitiam transcender a desesperante grisalha quotidiana evocando umha consciência planetária optimista e tecnológica habitada por civilizaçons quase divinas, como elementar projecçom cientificista das legions angélicas dos relatos religiosos. Quem nom lembra o filme Encontros na terceira fase, Close Encounters of the Third Kind, de Steven Spielberg (1977), de quando Espanha estreava democracia, ou a série Cosmos de Carl Sagan (1980), ainda ao remol dos trinta gloriosos de prosperidade pós-bélica (1945-1975) que permitiam alimentar umha onda de optimismo social hoje incompreensível. O século XXI acabou cancelando toda esperança: terrorismo sem fronteiras (Torres Gémeas: 11 de setembro de 2001), crise financeira mundial — colapso do fundos especulativos de outubro de 2007 seguida da quebra de Lehman Brothers em setembro de 2008 — pandemia planetária (31 de dezembro de 2019), vaga de incêndios apocalípticos (Califórnia, verao de 2020 com um milhom de hectares calcinadas a consequência da mudança climática global). Vivemos assediados por umha vaga de terror apocalíptico que os restos de optimismo ilustrado já nom conseguem conjurar. A história, em realidade, é mui velha; basta repassar a sequência de anúncios do fim do mundo que acompanhárom a humanidade1.

A incerteza e a contingência impregnam a vida das sociedades pós-modernas: a sociedade de risco de Ulrich Beck, a sociedade líquida de Zygmunt Bauman. A psicanálise adoita atribuir este tipo de comportamentos a personalidades paranóides2, propensas a acreditar em visons distorcidas da realidade para apaziguar a angústia insuportável. Angústia que se propaga sem obstáculos pola tecnosfera de bits que nos assedia: os inevitáveis Google, Facebook, Twitter, Amazon servidos por febris feitorias norte-americanas para traficar com a nossa economia libidinal. A rede 5G em breve.

A sociedade aberta, esse paradigma que combina liberdade individual como paradigma político e a cultura científica como método, tem em Bertrand Russell e Karl Popper dous padroeiros inspiradores da paixom filantrópica humanista mas também dos ódios paranóicos personalizados em Billy Gates e George Soros: santos laicos da filantropia cosmopolita, sinistros inimigos para os cruzados da ordem social reaccionária que floresce na trama negra dos QAnon3.

Habitamos umha biosfera híper conectada por um incessante fluxo de gente e mercadorias, mas também de perigoso material biológico acompanhante — vírus, baterias, fungos — multiplicado pola dinámica atmosférica e oceánica que mantém viva a terra. Material biológico potencialmente letal como demonstra a catastrófica vaga de coronavírus que nos invade que disseminou morte e miséria económica polo mundo adiante. Mas há também outro tipo de tráfico igualmente insidioso que tem no espaço comunicacional — vídeo, áudio, textos, imagens, híper vínculos — o seu veículo e que alimenta redes sociais, foros e enciclopédias digitais controladas por potentes algoritmos que perscrutam sem descanso a nossa atençom e intençom com finalidade mercadológica e publicitária.

Richard Dawkins, o autor de O gene egoísta (1976), formulou a hipótese da existência de memes, unidades informativas transmissoras de contidos culturais que, a semelhança da informaçom codificada na hélice de ADN, determinariam o nosso comportamento cultural da mesma maneira que os genes determinam a nossa natureza biológica. A metáfora de Dawkins ilustra a nossa exposiçom à informaçom, codificada e potencialmente infecciosa, que condiciona as nossas ideias e opinions e pode chegar a confinar-nos em ominosas tribos culturais imunes à crítica. Nom fará falta recordar os nefastos efeitos dos argumentários políticos elaborados por medíocres burocratas sobre militantes e achegados.

As psicofonias de QAnom transformárom Jacob Chansley num extravagante bisonte totémico e levárom à morte no Capitólio à veterana militar Ashli Babbitt, receptora também de umha peremptória mensagem da pátria em perigo que nom podia desatender.

Por estes pagos, lemos nestes dias, que um chefe de alergologia de um centro hospitalário de referência atreveu-se a qualificar de experimento genético de incertas consequências as vacinas do coronavírus confirmando de passo que tampouco a disciplina universitária oferece amparo seguro contra a tamborrada conspiranoica. Pouco antes, outro reputado especialista em virologia e imunologia de nome Miguel Bosé afirmava que as vacinas eram portadoras de microchips ou nano bots inoculados para submeter-nos ao controlo de Billy Gates, suspeitoso habitual destas tropelias.

As teorias conspiratórias proliferam em sociedades de indivíduos anónimos e solitários; em sociedades coesas e rurais, como aquela em que eu me criei, educadas no esforço e no monótono desfile de festas e trabalhos, nom prosperam as fantasias apocalípticas. Só de pensá-lo me vem à memória e resposta esperável à trola passageira: E ti crê-lo?

O realismo, o discernimento, a capacidade de discernir, esse formoso latinismo que significa peneirar, foi atributo sempre dos mais velhos. As trolas infecciosas que agora nos assediam, virám talvez de termos esquecido a arte da peneira?

 

Notas

1 https://es.wikipedia.org/wiki/Anexo:Fechas_del_fin_del_mundo

2 http://www.aperturas.org/articulo.php?articulo=858

3 https://es.wikipedia.org/wiki/QAnon

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