Quarentena

Doutor Pico de Roma, gravado de Paul Fürst, 1656 Dominio Público

Entramos no portal da OMS dedicada à pandemia global, consultamos o mapa da epidemia da COVID-19 (assi, em feminino, com o D de Doença coincidente com o D de Desease do acrónimo original). Entramos no mapa-múndi da pandemia mundial. Consultamos o dia de hoje, 26-03-2020: 416.686 casos confirmados em 197 países, 18.589 falecidos no mundo. Em Espanha, quarto país em incidência, 39.673 infectados, 2.696 falecidos. Sincronia da virose e a informaçom no contador diário.

A aparência de governança mundial da doença transmitida pola OMS teria satisfeito o ideal de paz perpétua universal formulada por Kant em 1795. Cosmopolitismo humanitário frente a fronteiras bloqueadas e eriçadas de arame farpado.

Dezembro de 2019, polo que sabemos, a pandemia emergiu na cidade chinesa de Wuhan num afastado mercado de animais exóticos para satisfazer a selecta voracidade dos filhos do celeste império. A partir talvez de um exótico animal que a nossa teologia cultural teria rejeitado por impuro. Em 31 de Janeiro de 2020 o frenético vírus chegara já a Itália e em 1 de Fevereiro movia-se por Espanha.

O vírus é umha breve cadeia de ARN de 150 nanómetros de longitude — 150 milionésimas de milímetro — transmutado por incessante replicaçom em temível exército invasor da espécie humana em escassas semanas de fulgurante blitzkrieg. A exígua cadeia genética que nos ameaça surge como o inesperado efeito mariposa em sistemas dinámicos instáveis predito por Edward Norton Lorenz.

Pouco sabemos do seu potencial efeito destrutivo, especialmente quando chegar a países carentes de recursos e defesas. A sua capacidade invasiva ultrapassa as nossas frágeis defesas imunitárias e morais desatando temores ancestrais a pestilências apocalípticas adormecidos no subconsciente colectivo. A nossa memória reverbera em inquietantes cenários distópicos. Os filmes da desgraça fatal acodem à memória onde guardamos os arquétipos da desventura colectiva: The road, Melancholia.

O exíguo agente da pavorosa pandemia global tem a sua imagem: umha constelaçom de minúsculos astros eriçados de tentáculos submetida ao incessante escrutínio de potentes microscópios instalados em selectos laboratórios trabalhando em rede. E tem também o seu simbolismo: a máscara preventiva de boca e olhos para atalhar o inimigo invisível que flutua no ar em espera do momento propício.

Máscara e peste, arquétipo intemporal do pavor social. A memória icónica leva-nos agora ao inquietante gravado de 1656 de Paul Fürst. É o doutor da peste, vestido de longa túnica encerada da cabeça aos pés, os olhos protegidos por grossos óculos de vidro, amplo sombreiro enfiado na boca bem tapada, vara na mao direita com relógio da areia alado na ponta para lembrar a fragilidade do viver. Um ominoso peteiro de ave de mal-agoiro no nariz, cheio de ervas aromáticas para conjurar os temíveis miasmas invisíveis. O extravagante uniforme foi-se difundido desde a França a partir da Peste Negra do século XIV para uso dos servidores públicos encarregados de diagnosticar infectados e certificar defunçons. O verso satírico que acompanha a figura alude ao funcionário fúnebre como sinistro coleccionista de cadáveres, semelhante a corvo em esterqueira. Memorável ícone do pavor social ministrado pola autoridade oculta, competente e vigilante.

A magnitude do impacto social e económico em curso aconselhou o Governo activar o estado de alarme previsto no artigo 116 da Constituiçom, junto com os estados de excepçom e sítio. Suspensom de garantias. Excepcionalidade; palavras maiores que remetem à Teologia Política de Carl Schmitt, 1922: gente confinada no próprio domicílio por via coercitiva, estado de emergência; mobilizaçóm total formulada por Ernst Jünger em 1930. Cenário: os vinte e trinta do século XX em que se incubava a mais brutal carniçaria, acompanhada de música de cabaret para abafar o horror vivido no decénio anterior. Em 1929, a antena filosófica de Ortega detectava o tempo da rebeliom das massas. A mobilizaçom total chegaria seis anos depois a Espanha, dez a toda Europa.

Saltando da biologia à biopolítica, as bolsas de valores colapsam empobrecendo por igual a opulentos especuladores e a sólidos fundos de modestos pensionistas, as autoridades económicas abandonam atropeladamente os compromissos de défice e aprontam verbas extraordinárias, os organismos internacionais meditam planos de emergência, decreta-se em fim o confinamento domiciliário e a sociedade reage com episódios de desabastecimento e desconcerto como prelúdio à resignada vida em retiro. Pensamos em O grande silêncio dos filhos de Sam Bruno. 

Algum insensato pretende escorrentar o medo viajando só ou em família às praias de Múrcia e Valência ou aos cumes pirenaicos da Cerdanha. Fogem do medo, mas o medo os acompanha. Deveriam atender aquele velho e sábio apólogo que nos avisa de que de nada vale tentar burlar a morte fugindo a Samarra porque é em Samarra onde ela está esperando.

De Madrid al cielo, salta o sarcasmo desde Edimburgo. A cada um o seu céu: De Barcelona a Perpignan. O vírus que infecta a república dos sonhos já tem nome: COVID-155. Inútil onomástica a do vírus; cego às fronteiras avança a breve cadeia de ARN que só obedece à própria lei escrita em código implacável. Aduanas e fronteiras decaem. A gente saúda amistosa ao vizinho desconhecido enquanto avança a maré de fraternidade de reclusos em prisom domiciliária. Enfrentada ao infortúnio, a humanidade é convidada a um abraço universal: Seid umschlungen, Millionen! ¡Abraçai-vos, milhons num beijo universal! Cantava Schiller por boca de Beethoven. Celebremos a lenta emergência da consciência planetária ante a desventura comum

Aos três ginetes do apocalipse que afligem a humanidade: o do imparável açoute da mudança climática, o das migraçons desesperadas para fugir da morte e a miséria e o da insone economia especulativa codificada em anónimos algoritmos, vem-se somar agora um quarto, o mais antigo, um exíguo protocolo de ARN codificado no alfabeto da vida.

Recupero nos dicionários a voz renascentista esquecida: solitude. Invoco a virtude da ataraxia, a impassibilidade serena praticada polos estóicos naquele tempo indeciso quando os deuses já morreram, o Cristo nom nascera ainda e o homem estava radicalmente só evocado por Flaubert e venerado por Marguerite Yourcenar.

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