Retirar-se da vida com Kamo no Chomei

Dominio Público

Agora, na velhice, gosto de frequentar leituras meditativas como os “Pensamentos desde a minha cabana” de Kamo no Chomei, mestre de sabedoria e testemunha singular da irremediável fugacidade da vida. Repetir em voz alta anacos deste breviário serve-me de exercício de resistência contra a insidiosa disartria que me ameaça e de acolhedor mergulho no ritmo impassível do tempo e a memória. 

O regueiro jamais se detém, a água flui e nunca se repete, as borbulhas que flutuam no remanso esvaecem-se de contado para reaparecerem de ali a pouco, mas nunca por muito tempo. Desta maneira, espida e contemplativa, começa o relato clássico conhecido em japonês Hojoki que tem sido traduzido a todos os idiomas como “Pensamentos desde a minha cabana”. Pouco mais adiante, prossegue Chomei ... Nem cuido da minha vida nem temo á morte, a minha existência é umha nuvem errante...os peixes jamais se cansam da água nem os páxaros do ar; a alegria de viver em soledade quem poderia entendê-la sem tê-la vivido? Com ritmo demorado decorre este breviário da vida contemplativa redigida em 1212 por Kamo no Chomei. O mestre decidira fugir dos desastres que se abateram sobre Kioto para acomodar-se na soledade dumha pequena cabana. A minha morada envelheceu comigo, há mais de cinco anos que moro nela e as folhas e o musgo acumulam-se sobre ela —medita o mestre— e ainda que o meu habitáculo é pequeno nada lhe falta, tem um leito para dormir e um espaço para me sentar durante o dia. Mil duzentos e doce, 1212, ano mítico na historiografia hispânica pola batalha das Navas de Tolosa que enfrentara os reinos cristaos do norte com o califado almofade de Jaén. Tempos turbulentos em Espanha e no Japóm.

Kamo no Chomei (1155– 1216) forma —junto com o grande poeta dos haiku Matsuo Bashō (1644-1694)— um clássico das letras japonesas do género do pensamento contemplativo que procura na comunhom com a natureza a paz e a beleza perdidos no balbordo do viver. Dous mestres ambos que evocam o estoicismo das Meditaçons de Marco Aurélio: Em nenhures pode encontrar o homem refúgio mais acolhedor que na sua própria alma, matinava o imperador; com similar filosofia que a que conduziu Kamo no Chomei ao seu perdido cabanel.

Kamo no Chōmei, por Kikuchi Yōsai. Dominio Público

A ataraxia da filosofia helenística como cifra do desprendimento do mundo é temperada na mística japonesa por um irrenunciável impulso à comunhom com a natureza, escassa aliás na tradiçom tardo romana e na vida eremítica cristã. Acode à mente o comovedor filme O grande silêncio rodado integramente na Grande Cartuxa, casa matriz da ordem contemplativa dos cartuxos. A cámara de Phillip Gröning vai percorrendo lentamente o imenso mosteiro e documentando a vida exígua dos seus moradores. Transparece no comportamento dos cartuxos o ideal de ascese, ausente na vida eremítica oriental, e o desinteresse pola beleza da natureza como lenitivo da fugacidade da vida. Os exíguos jardins individuais da Grande Cartuxa parecem um insolente menosprezo à grandiosa paisagem alpina que enchia de incomparável alegria aos felizes noviços na singular jornada de festiva de confraternizaçom recolhida pola atenta cámara de Gröning. Umha comunidade de solitários a Grande Cartuxa, um solitário contemplativo singular na cabana de Chomei

Inúmeras som as ediçons do clássico japonês Hojoki, a minha1, está prologada por Natsume (1867–1916), um clássico das letras japonesas ele mesmo, tradutor ao inglês e especialista reconhecido na obra e tempo de Kamo no Chomei. O epílogo reserva-se a Tamamura Kyo que contextualiza minuciosamente as vicissitudes da filósofo poeta no tempo convulso em que lhe quadrou viver. A traduçom devemos-lha a Kazuya Sakai, (1927-2001), artista polifacético argentino de estirpe japonesa com projecçom nos EUA e em México onde colaborour em tempos com Octávio Paz na revista Plural. Umha ediçom exemplar, em suma.

Kamo no Nagaakira, como se chamava na vida pública Kamo no Chomei, era segundo filho de um servidor de um santuário que se elevava ao pé do rio Kamo, próximo de Kioto. O futuro mestre da vida solitária acompanhara o seu pai no seu efémero apogeu e posterior preteriçom que acabaria levando a Chomei a renunciar à sua prometedora carreira de poeta cortesao e á magra herdança familiar depois de o seu pai morrer nos primeiros anos da década de 1170. Solteiro e sem descendência, Kamo no Chomei decidiu encerrar-se numha modesta choupana para praticar a sabedoria eremítica budista; primeiro no lugar de Ohara, perto de Kioto onde permaneceu cinco anos e depois, já para sempre, no monte Hino onde se entregou de pleno à vida contemplativa preconizada polo budismo Mahāyāna que cultiva o vazamento mental e o silêncio. Caso renunciar a aprofundar no contexto e significado da biografia de Chomei, o leitor eventual pode aceder ao relato original no seguinte enlace2.

Retirar-se ao ermo, ao deserto idealizado da Tebaida que excitara a imaginaçom piedosa nas turbulências do século IV durante o prolongado declive de Roma, tem o seu orgulhoso escudo de pedra na Casa de Exercitantes de Santo Ignacio da compostelana Praça de Massarelos que, por acasos da história, foi erigida nos anos trinta do século XVIII por um esquecido bispo de apelido eremítico: dom José del Yermo. Instituto de Ensino Secundário onde eu cursei o bacharelato primeiro e Faculdade de Filosofia na actualidade. No opulento escudo que preside a fachada podemos ler o lema da Casa de Exercitantes: In Eremo.

Nom faltam na Galiza lugares de memória da vida solitária, os cenóbios de Sam Pedro de Rocas e o pequeno mosteiro de Caaveiro som de obrigada mençom, por mais que o autêntico solitário foge do convívio humano, de forma temporal ou permanente, para refugiar-se em si mesmo seguindo a escondida senda dos sábios de Frei Luís.

No curso da minha já dilatada vida alcancei a conhecer dous solitários retirados do mundo mais por inspiraçom persistente que por umha arroutada irreflexiva e transitória. Um deles foi Manfred Gnädinger, O alemám de Camelhe como era conhecido, o outro, o filósofo Ignácio Castro Rey (Compostela, 1952), meu amigo. O primeiro encontrou a sua tebaida definitiva nos coídos de Camelhe, o segundo nunha pequena cabana perdida nos montes de Quiroga onde habitou um milhar de dias a finais dos oitenta.

Contorna do mosteiro de Caaveiro CC-BY-NC Fernando Coello

A aventura do alemám de Camelhe tivo um final aziago nos derradeiros dias de 2002 quando a sua mínima morada a beira-mar foi açoutada furiosamente pola atroz maré de chapapote do Prestige que se abateu sobre Galiza naqueles dias aziagos. O retiro de filósofo compostelano rematou com a sua reincorporaçom à actividade académica e cultural em Madrid onde reside. De Man conservamos ainda restos das suas oferendas aos deuses do mar nos coídos de Camelhe: pelouros puídos pola mar brava, lenhos mineralizados polo bater do mar, restos aleatórios dumha estranha colecçom de objets trouvés, de art o ready-made, que o náufrago de Camelhe gostava exibir como efémeros presentes leixados do vento no mar de Ninhons cantado por Pondal.

O Roxe de Sebes descansa entre os meus livros em companhia do seu irmao japonês em harmoniosa companhia. Como o Hojôki de Chomei, o Roxe de Sebes de Ignácio é fruto do livre fluxo do pensamento engrenado na paisagem como oferenda à fugacidade da vida, essa experiência pungente que só os seres humanos somos capazes de perceber. 

 

Notas

1 Kamo no Chomei: Pensamientos desde mi cabaña, prólogo de Natsume Soseki, Errata Naturae, 2018: https://erratanaturae.com/product/pensamientos-desde-mi-cabana/

2 No hipervínculo: https://www.washburn.edu/reference/bridge24/Hojoki.html pode-se aceder ao texto em inglês eventualmente convertível a português.

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