Sota, cavalo e rei

Heraclio Fournier ©

Sota, cavalo e rei é um sintagma quase esquecido já que alude a algo consabido ou reiterado. A sota o cavalo e o rei vem sendo o estado-maior das quatro famílias régias dos ouros, as copas, as espadas e os bastons que já foram rainha, cavaleiro e rei no século XVI. O cavaleiro segue no seu cavalo mas a rainha deu em modesta sota subordinada como parábola da capitulaçom do amor cortês ante a máscula tropa patrilinear.

Som da opiniom de que nada ganham os nossos ouros, copas, espadas e bastons ao se travestirem de picas, trevos, coraçons e diamantes para poderem ser admitidos nos salons da França e a Inglaterra. É como trocar umha animada partida de taverna por um pretensioso salom rococó, nom é?

O maço de naipes espanhol vem de imprecisos tempos recuados mas ficou congelado no ouropel medievalista de guarda-roupa teatral que hoje ostenta como lembrança da estética historicista que lhe deu formato definitivo, alá no último quartel do século XIX. Tempos de revivalismos, com aquela Irmandade Pré-rafaelita como símbolo mais perfeito. Idade meia sonhada como fuga ao tempo das donas de corpo delgado trovadas por Cunqueiro: A dama que ia no branco cavalo levava um pano de seda bordado / O cavaleiro do cavalo negro levava unha fita colhendo-lhe o pêlo. Naipe, estampa medieval em disfarce extemporáneo, inquietante convite também ao tarot de meigaria para conjurar desacougos que nos tiram o sonho; um desamor, um pleito, umha pergunta ao futuro temido.

Baralhar, que vale por brigar ou contender, é verbo antigo que anda nos nossos textos medievais para acabar designando o simples parolar sem tino e a acçom de misturar cousas ou mexer naipes em procura dessa desordem equitativa que a sorte requer para se manifestar. Deconhecemos a etimologia do substantivo baralha, a nom ser que derive do verbo baralhar, misturar, embora haja quem pretenda derivá-lo do baraka árabe que significa sorte. Nom parece muito razoável mas, quem sabe, franceses, ingleses e italianos ignoram o termo.

A ciência do baralho espanhol estabelece que o seu desenho actual procede de um impressor burgalês de origem francês e afincado em Vitoria de nome Heráclio Fournier, premiado pola sua proposta gráfica na Exposiçom Universal de Paris de 1868. O formato gráfico definitivo, aliás, é posterior, do ano 1889 concretamente, em que o baralho renovado volve a ser premiado na Exposiçom de Paris desse ano à sombra da torre Eiffel levantada para a ocasiom. Este foi o avatar definitivo do baralho hispánico, conhecido hoje em todo o mundo e do qual os sucessores de dom Heráclio vendem actualmente 16 milhons de maços por ano mundo afora para fornecer casinos e salas de jogo.

Dom Heráclio nascera em Burgos em 1849 e morreu na França em 1916, em plena guerra mundial. Entrementes, instalado definitivamente em Vitória, dom Heráclio irá provando desenhos até o quase definitivo de 1877, saído dos saberes de um professor de debuxo de nome Emilio Soubrier —o toque francês parece inspirar a casa de Vitória — e do pintor gasteiztarra Ignácio Díaz Olano. Finalmente, depois de comercializar algumha variante de êxito nos primeiros noventa do XIX, um tal Augusto Rius fixa para a posterioridade o famoso maço de naipes de 1899 presidido por um dom Herakles triunfal em formato de as de ouros, ornado de generoso bigode e pêra como imperador internacional do naipe definitivo.

O baralho espanhol consagrado em Paris ao pé da torre Eiffel é produto tardo-romántico de quando concluía a terceira guerra carlista (1872-1876) e Espanha se aplicava à leitura do enaltecedor relato da sua história redigida polo ilustre militante liberal dom Modesto Lafuente. Vinha em seis tomos, editados por Montaner y Simón em 1877 para por ordem e concerto patriótico no acontecer de Espanha desde os míticos tempos primitivos até a morte de Fernando VII. As cuidadas litografias de armaduras, navios, monarcas, estampas e documentos iluminárom o primeiro imaginário da grandeza pátria.

Ultrapassados os três primeiros quartos do século XIX, Espanha viveu unha particular telenovela romântica a conta do infortunado rei Alfonso e a sua namorada Mercedes. Alfonso XII fora proclamado rei em 1874 e, dous anos após, recebido em Madrid com entusiasmo depois de cerrar a triunfal campanha da guerra carlista na frente norte. Em 1878 o jovem monarca casava com dona Maria das Mercedes que ia falecer cinco meses após com 18 anos recém-cumpridos; 21 tinha o infeliz monarca viúvo prematuramente.

A história bem merecia um romance e o romance nasceu como eco de um esquecido antecedente da guerra de Granada recolhido por Gerald Brennan1 «¿Dónde vas, buen caballero? ¿Dónde vas tú por ahí?» «Voy en busca de mi esposa: que hace tiempo no la vi» O cavaleiro vai-se transfigurar no atribulado monarca viúvo da sua fugaz Mercedes: ¿Dónde vas Alfonso XII? ¿Dónde vas triste de ti?”.

Da mao de dom Modesto Lafuente, em plena restauraçom monárquica, Espanha adoecia de umha recaída tardo-romántica impregnada de medievalismo pitoresco, semelhante às icónicas figuras de guarda-roupa teatral de dom Heráclio Fournier. O medievo sonhado salta ao lenço evocador do paraíso histórico perdido como para ilustrar a História de dom Modesto. “El testamento de Isabel la Católica” (1864) de Eduardo Rosales, “El entierro de Felipe el Hermoso” (1877) e “La rendición de Granada” (1882) de Francisco Pradilla pontuam o itinerário da história imaginada. As sotas, cavalos e reis de Fournier, com as suas calças cingidas, amplos gibons e mantos bordados adereçam nas mesas de jogo o cenário ideal.

Inesperadamente, o esquivo poder evocador do naipe toca a mágica sensibilidade do artista, como no onírico jogo de naipes de Balthus ou na dilacerante metáfora de Luís Cernuda: “Qué más da. Tu destino es mirar las torres que levantan, las flores que abren, los niños que mueren; aparte, como naipe cuya baraja se ha perdido”. Como naipe cuya baraja se ha perdido.

1 http://www.ugr.es/~pwlac/G09_17AntonioJ_Lopez-Antonio_Munoz.html

Grazas ás socias e socios editamos un xornal plural

As socias e socios de Praza.gal son esenciais para editarmos cada día un xornal plural. Dende moi pouco a túa achega económica pode axudarnos a soster e ampliar a nosa redacción e, así, a contarmos máis, mellor e sen cancelas.