“O rural é muito romântico de longe e aí estamos instalados, nessa visão”

Raquel Miragaia © Alfredo Mattos

Branca volta à casa familiar, na aldeia, de onde tinha fugido anos atrás. E no processo de readaptação a aquele contexto acaba redescubrindo-se a sim própria através da indagación na história, para ela desconhecida, da sua família. Disto vai ‘Tempo tardade’ (através), o novo romance de Raquel Miragaia.

Tempo Tardade’ é a história de uma volta à origem e de uma tentativa de reconciliação com um espaço do que a protagonista tinha fugido sem percebê-lo. Poderia ser a história de muitos galegos da nossa geração, ou da de qualquer outra pessoa com origens num rural que se transformou muito rápido. Como surge, em concreto, a personagem de Branca?

“Branca é essa personagem que, tendo-se afastado disso tudo, ainda mantém um vínculo forte com essa terra e necessita procurá-la de novo para compreender-se”

A personagem de Branca responde à necessidade de entender o que deve a identidade individual ao lugar em que nasces e em que cresces; mas também, à importância de tomar distância para que essa identidade colha realmente a sua verdadeira dimensão. Como bem sinalas, a experiência de Branca é totalmente generacional, de uma geração que viveu em primeira pessoa uma mudança radical do mundo rural e que contribuiu muito a essa mudança com o desapego da terra.

Mesmo assim, a terra vertebra muitas das experiências vitais mais primitivas como a vivência do tempo, do ritmo da vida, do entendimento do lugar que ocupas… Branca é essa personagem que, tendo-se afastado disso tudo, ainda mantém um vínculo forte com essa terra e necessita procurá-la de novo para compreender-se.

Branca tenta adaptar-se a um mundo ao que pertence sem pertencer. Ao mesmo tempo vai lendo as cartas de Serafim, um familiar que tinha emigrado e nunca se tinha sentido parte do mundo onde fora viver. Os dois têm um conflito semelhante, relacionado com a identidade e a pertença. Por quê contar a história destas duas personagens em paralelo?? 

Porque no fundo creio que o processo de ambos é o mesmo, com a distância do tempo e o contexto que os separa. Ambos vivem uma emigração, uma emigração externa, radical e longínqua no caso de Serafim e uma emigração interna, ambígua e próxima no espaço no caso de Branca. Mas os dous têm que fazer frente a essa pergunta de quem sou e onde pertenço realmente.

Essa pergunta não a teve que fazer quem ficou na casa familiar e, simplesmente, seguiu naturalmente os passos dos antepassados. Não quero com isto dizer que uma cousa é mais fácil que a outra, simplesmente creio que gera perguntas diferentes. Para quem fica, provavelmente a pergunta fosse mais do tipo "que seria de mim se saísse" mas para quem sai o questionamenro é mais o de "que faço aqui? É este o meu lugar?"

Raquel Miragaia © Monica Martins

A nossa relação com o rural, a transformação do rural, é um tema muito tratado na literatura galega. A óptica na que a narradora se situa é a de não romantiza-lo nem renegar dele. Identificas-te tu com essa posição? 

“A sensação que eu tenho muitas vezes é de que há demasiados discursos simplistas sobre o rural, seja de idealizações de estilo arcádico seja de deturpações sobre o atraso secular”

A sensação que eu tenho muitas vezes é de que há demasiados discursos simplistas sobre o rural, seja de idealizações de estilo arcádico seja de deturpações sobre o atraso secular. Imagino que passará o mesmo com a imagem das cidades, mas sinto que se podem encontrar mais representações diversas do mundo urbano.

Nesse sentido, creio que o que melhor pode definir o rural é uma imagem que tente refletir de forma mais equilibrada um mundo complexo, com arestas e diversidade. A minha experiência do rural tem muito de ideal (silêncio bom, natureza, lentitude, comunidade) mas também muito de dureza (trabalho duro, recursos afastados, isolamento, vigilância). Isso é o que tentei mostrar.

A de Serafim é, também, uma história comum. Um familiar emigrado do que não se soube mais, neste caso porque a família preferiu esquecê-lo. Na mesma família há outro homem do que case não se fala. Por quê essa presença do silêncio? (Que está relacionado com o golpe de estado e a guerra).

“Há muitas cousas das que é melhor não falar, porque vão contra a moral estabelecida, contra a lei ou contra quem tem o poder, poder de qualquer tipo”

E, sobretudo, dessa longa posguerra franquista que estabeleceu o silêncio como uma forma de proteção. Há muitas cousas das que é melhor não falar, porque vão contra a moral estabelecida, contra a lei ou contra quem tem o poder, poder de qualquer tipo. Talvez porque eu me dedico às palavras, tanto como professora de língua quanto como escritora, essa forma de dizer sem dizer, mais pelo que se cala que pelo que se diz, sempre me fascinou.

Na vida real pode chegar a ser muito cansativo porque te obriga a um trabalho de interpretação contínuo e com grandes riscos de más interpretações, mas como materia literária achei sempre muito interessante. O silêncio no romance é funcional, está ao serviço da história e do desenho das personagens, mas é também um exercício literário de contenção.

Branca tem uma relação distante com o seu irmão Isaac, que já não tem nada a ver com a casa e a aldeia, e com Modesta, uma vizinha amiga da sua mãe. Os dois são personagens opostos na sua relação com o rural. Por quê precisavas às personagens de Isaac e Modesta e que representam, a respeito de Branca?

Isaac é o caso mais claro, é um contraste muito óbvio de Branca. São dous irmãos que, nascidos e criados no mesmo lugar, escolhem dous modelos de vida completamente diferentes. A função de Isaac a respeito de Branca é, além deste contraste, a de desproblematizar o que Branca problematiza. O que cola a Branca ao chão, como se diria de forma popular.

Modesta é um caso diferente: é uma personagem que nasceu com vocação de ser um satélite de Branca e que adquiriu um protagonismo inesperado para mim, talvez, o romance estava precisando de uma personagem firme, consistente, e essa foi Modesta. Pela sua idade, pela sua experiência vital, Modesta pode afirmar muitas mais cousas do que Branca, que está em dúvida permanente.

Mas o eixo arredor do que gira boa parte do que acontece no livro é a amizade entre Branca e Modesta. Duas mulheres de diferentes idades, socializadas em mundos diferentes. Branca teme, durante muito tempo, a rejeição de Modesta. Em que sentido quiseste, também, contar uma história de amizade entre duas mulheres tão diferentes?

Em grande medida essa história de amizade tem muito a ver com a necessidade de quebrar os nossos preconceitos. Modesta e Branca só podem fazer-se amigas nesse contexto, em qualquer outro seria muito mais difícil. Aí, Branca está desubicada e é ela a que coloca barreiras com os seus medos, também a respeito de Modesta.

A amizade entre elas é algo natural para Modesta que tem essa visão de Branca, vizinha, filha de uma amiga e, mesmo sem tê-la visto muito anteriormente, essas duas circunstâncias são suficientes para aproximar-se dela. Não tinha uma ideia prévia de querer contar essa amizade mas, a medida que Modesta medrou como personagem, a relação entre as duas era muito natural.

Branca redescobre a aldeia ao tempo que redescobre a sua mãe, à que em realidade não conhecia. E isso é uma maneira, também, de descobrir-se a sim mesma. Suponho que, no fundo, é uma história sobre isso, sobre como podemos passar média vida a fugir de nós mesmos, seja no rural ou na cidade. Era o objectivo?

“Descobrir o que esteve sempre ao teu lado e para o que nunca quiseste olhar é uma forma de descobrir-se”

Em certa medida, era. Ou é. A ideia aquela de livro de autoajuda de que o que buscas muito longe às vezes não o encontras porque está ao teu lado (o livro de autoajuda diria que está dentro de ti, enfim…). Descobrir o que esteve sempre ao teu lado e para o que nunca quiseste olhar é uma forma de descobrir-se, acho que essa é uma forma de vê-lo.

Branca tem um conflito com a mãe, um conflito comum de falta de entendimento, mas esse conflito impede-lhe ver realmente a sua mãe como uma mulher, é apenas a sua mãe. Só depois da morte e graças à amizade com Modesta consegue entender a sua mãe como mulher com um percurso e uma vida além dela, além dos filhos. Isso faz com que possa reconciliar-se de alguma maneira com tudo o que ela é: a aldeia, a mãe, o irmão e mesmo a sua fugida.

'Tempo Tardade', de Raquel Miragaia (Através Editora) © Através Editora

Um dos temas de fundo do livro são as relações de género e, no caso de várias personagens, a violência associada à desigualdade de género: maus tratos, maledicência? Nesse sentido, a vida de várias das personagens femininas (Modesta, Josefa) foi marcada por isso, ainda que não se conte de modo muito explícito. Por quê está tratado assim??

“Disse numa entrevista anterior que, em alguma medida, o protagonista do romance é o silêncio, o que não se conta”

Disse numa entrevista anterior que, em alguma medida, o protagonista do romance é o silêncio, o que não se conta. No mesmo sentido, respondi à tua pergunta anterior sobre o silêncio na família da protagonista. Talvez formulado assim seja uma hipérbole mas esta forma de representar as relações de género e, especialmente, a violência, é muito premeditada. De alguma maneira, creio que esse silêncio é uma outra forma de violência que é muito habitual no contexto em que está narrado o romance.

Nos últimos anos, em diferentes conversas com amigas, familiares, vizinhança... senti essa presença da violência dissimulada, referida, mas nunca dita diretamente. É uma questão que mexe muito comigo, essa sensação de que há muitas experiências terriveis que não merecem a palavra porque as vítimas estão envergonhadas. Por isso quis contá-lo assim, nas entrelinhas, porque quem lê sabe perfeitamente o que se está contando e a dor é mais vívida nesse reconhecimento do não dito.

Quanto à técnica narrativa, o relato de Branca em primeira pessoa alterna com o diálogo com os outras personagens e com as cartas de Serafim. E tudo segue uma ordem cronolóxica, de modo que se vai descobrindo o que Branca desconhecia da sua família. É uma estrutura clássica e singela, com um estilo também singelo mas cuidado. Por que escolheste contá-lo assim?

A ordem cronológica fazia sentido para contar a evolução da personagem, isso é o que faz avançar a história. Isso e as perguntas a respeito do parente emigrado. Como a história de Serafim é contada a medida que Branca lê as cartas, essa linha cronológica também faz sentido nessa parte.

A única questão que tinha muito clara é que a história principal de Branca e a de Serafim tinham que estar intercaladas porque iam ser explicadas pelo mesmo facto, a descoberta do "acontecido" é o que responde várias perguntas de Branca, entre elas, algum dos porquês da sua fugida ou da sua relação com a mãe.

Cara o final, Branca comenta que compreendeu o falso romantismo do campo igual que o falso progresso da cidade e já não sabe onde situar-se. É uma reflexão que também poderia ser tua? 

Porque sinto que estamos em tempos estranhos, muita gente tem (ou temos) muito claro que o futuro passa por uma vida mais vinculada ao campo, ao rural e, ao mesmo tempo, não acabamos de dar esse passo. O rural é muito romântico de longe e aí estamos instalados, nessa visão. O progresso da cidade ja não nos satisfaz, faz-nos muito dependentes de entidades que não têm rosto, tira-nos a energia, deixa-nos ansiosos...mas a conexão a internet é muito mais rápida e há aeroportos.

Levas já um tempo dando salas de aulas em Lisboa. Como está a resultar a experiência? 

“Levo muito tempo com este projeto que ficou bloqueado durante anos, até o ponto de pensar em desistir dele”

Do ponto de vista profissional está sendo muito interessante pois trabalho num contexto totalmente diferente, com um alunado muito urbano e dum contexto sociocultural ao que não estava habituada. Tem sido um desafio que me obriga a reaver as minhas certezas continuamente, por isso, muito interessante.

Do ponto de vista pessoal (se é que faz sentido essa divisão) também está sendo muito rico, pela oportunidade de ser em outro lugar, de experimentar a distância e um certo desconforto pelo desconhecimento, mas sem ser algo muito chocante pois as diferenças culturais existem, mas não são tão grandes. A cidade é, além de bonita, uma cidade viva em que estou muito a vontade.

Como foi voltar publicar desde há tanto tempo?

Pois é uma felicidade. Levo muito tempo com este projeto que ficou bloqueado durante anos, até o ponto de pensar em desistir dele. Então, que finalmente saísse é um grande sucesso para mim, devolveu-me um pouco de tranquilidade a respeito da criação, e com vontade de seguir exercendo de escritora, se se pode dizer assim. Sempre ficas com uma certa incertidume pela receção do livro, mas neste caso a alegria de fechar o texto é tão grande que atenua um pouco essa ansiedade.

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