O futuro é aqui (distopia brasileira)

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Xoán Carlos Lagares reflexiona sobre o milagre brasileiro deitando algo de escepticismo á vista na pobreza que ainda persiste. En Notícias do Brasil, o blog de Praza sobre o país

O título do livro de Stefan Zweig, Brasil, um país do futuro, já foi invocado inúmeras vezes para fazer referência às potencialidades deste país continental. Profecia eufórica: a sociedade da fusão, do eternamente novo, a civilização da alegria e do despojamento, rodeada da mais exuberante riqueza natural que possa ser imaginada. Apesar das recorrentes crises econômicas, que Zweig relata, a do ouro, a do café, a da borracha, ou mesmo por causa delas, de crise em crise o Brasil chegaria até a vitória final.

É verdade, o futuro é aqui. Deixem-me proclamar que eu vejo o futuro cada dia, da minha janela, ao sair de casa

É verdade, o futuro é aqui. Deixem-me proclamar que eu vejo o futuro cada dia, da minha janela, ao sair de casa. Que pago as minhas contas no futuro. Deixem que, por uma vez, eu seja presunçoso o bastante para vir aqui contar como é que a banda toca. Mas advirto que, com o céu de hoje toldado de nuvens pretas, não pretendo falar de nenhuma utopia redentora. Muito pelo contrário, lendo as notícias que vêm do velho continente, o que aparece ante os meus olhos é o avesso do bordão, sarcasmo histórico que talvez, quem sabe, o autor austríaco vislumbrou instantes antes de se suicidar com sua mulher Lotte, na sua casa de Petrópolis.

E não temam, não pretendo sair pela tangente.

Este futuro que vivemos é o da entrega de toda noção de cidadania ao fetiche econômico da especulação e do lucro a qualquer preço

Este futuro que vivemos é o da entrega de toda noção de cidadania ao fetiche econômico da especulação e do lucro a qualquer preço. A qualquer preço. Não adiantaram as advertências de Celso Furtado sobre o mito do desenvolvimento econômico, que produz sistematicamente exclusão, que dela se nutre. Enquanto esperamos o milagre do desenvolvimento, e cada vez mais brasileiros acedem ao pujante mercado de consumo, o Brasil continua sendo uma das sociedades mais desiguais e injustas do planeta, a sua população continua estando entre as mais desprotegidas, entregue, entre outros riscos, às arbitrariedades do próprio Estado. Enquanto isso, viver com dignidade ainda sai caro. O abismo da pobreza aos nossos pés. Um golpe de azar, uma doença grave, um acidente, pode fazer qualquer um descambar na escala social até a degradação mais absoluta. Sem papai-Estado e nem redes sociais para proteger da queda, em caso de necessidade, recorra ao Luciano Huck da TV Globo e seja salvo pelo show-bussines.

Enquanto esperamos o milagre do desenvolvimento, e cada vez mais brasileiros acedem ao pujante mercado de consumo, o Brasil continua sendo uma das sociedades mais desiguais e injustas do planeta

Cada dia recebo pela internet notícias sobre a Galiza, sobre as remoções de pessoas que não conseguem pagar o aluguel ou o empréstimo do banco, sobre os dados da UNICEF em torno do aumento da pobreza infantil, sobre a massa estarrecedora dos desempregados, sobre o número de suicídios por causa da crise [entenda-se, do roubo], sobre o desabastecimento nos hospitais públicos, sobre as novas vítimas da guerra econômica. E eu, que sempre senti um certo fascínio horrorizado diante da miséria e dos miseráveis, um medo abissal a esse que deve ser o pior dos abandonos, o abandono de si mesmo, concordo totalmente com o Stefan Zweig, entendo que ele tinha razão, que o futuro é aqui. Dada a minha inabilidade para ganhar dinheiro (ou para fazer algo útil), em alguns momentos, mergulhado nos meus pesadelos, cheguei a enxergar o próprio rosto nos semblantes sujos e desolados dos mendigos, e a temer a perspectiva de abandono daqueles que vagam pelas ruas sem terem aonde ir, quando a vida é um exercício demorado e constante de sobrevivência. E em mais de uma ocasião senti o meu próprio suor corporal fervilhar entre os farrapos sujos dos sem-teto que encontrava na rua, dormindo sobre os paralelepípedos mijados de um beco qualquer.

No Brasil, um país onde 107 milhões de pessoas vivem com menos de R$465 mensais (segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de 2011), os miseráveis são legião, e é preciso aprender a conviver com eles

No Brasil, um país onde 107 milhões de pessoas vivem com menos de R$465 mensais (segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de 2011), os miseráveis são legião, e é preciso aprender a conviver com eles, porque dormem em qualquer lugar, diante do portão de casa, ou se arrastam, como ameaçadores espelhos deformantes, nos vagões do metrô, nos ônibus urbanos, às beiras das estradas. Os miseráveis compartilham os bancos dos parques com os casais de namorados, disputam a xepa da feira com os ratos. Aquele senhor que todo o dia exibe com impudor o seu pé necrosado no ponto do ônibus, faz um gesto com a mão ou com a voz sempre que passo ao seu lado tentando ignorá-lo, olhando para outro lado. Firme em seu desejo de que eu não deixe de ver o pus do pé e, ocasionalmente, lhe dê algum dinheiro por ele. Porque a pústula é sua única fonte de renda, ele vive por ela.

Hoje, indo ao supermercado com a minha filha, passei ao lado de um casal de moradores de rua. Ela, muito gorda, estava sentada num banco, na Praça Santos Dumont, e mostrava estar muito irritada com ele, que ouvia as imprecações em pé, de cabeça baixa. “Grana pra sabonete você consegue… Mesmo morando na rua, não dá para estar com um cara que não se lava!”. A pobreza limpa, de quem é como nós, de quem poderíamos ser nós, é mais ameaçadora do que qualquer outra. Pensei imediatamente nos suicidados da crise econômica que noticiam os jornais, na Grécia, na Espanha. Agarrei mais forte a mãozinha da minha filha e apressei o passo, como quem evita chegar perto de um precipício. Imagino os que, na velha Europa, viveram um sonho qualquer de cidadania e agora, de repente, ficaram sem casa, sem emprego, tendo de lutar para sobreviver na rua, como bichos, tendo de lidar apenas com sua fome, como bichos. Pensei no poema de Manuel Bandeira e, já no supermercado, fiz questão de comprar algumas besteiras, chocolate, balas, biscoitos, para comer com a filhota:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Ufanismos à parte, não acho esta sociedade modelar em nenhum sentido. Não me deixo iludir por qualquer promessa de progresso ou desenvolvimento enquanto não se operarem mudanças sociais drásticas

Não falo contra o Brasil. Vivo por opção, e não por falta dela, neste país. Admiro sua cultura e me identifico com seu povo. Pretendo me naturalizar brasileiro e acumular passaportes, cidadanias, acrescentar mundos num continuum sem ruptura. Mas, ufanismos à parte, não acho esta sociedade modelar em nenhum sentido. Não me deixo iludir por qualquer promessa de progresso ou desenvolvimento enquanto não se operarem mudanças sociais drásticas. O Brasil é importante para o mundo, e sendo o maior país do planeta a falar uma língua portugalega é, sem dúvida, importante para a Galiza. Mas o seu presente não é projeto de futuro. Galegos reintegracionistas e brasileiros muito patriotas que me perdoem, mas justiça social é fundamental.

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