Carvalho Calero e as Bases do Instituto da Língua Galega (Réplica a Xulián Maure)

Carvalho Calero no primeiro congreso de AGAL © AGAL

Sobre “Don Ricardo Carvalho Calero (nacido Carballo Calero)” escreve o amigo Xulián Maure (nacido Julián Maure) um artigo com lembranças (e, também, segundo creio, com esquecimentos ou lacunas ou confusões de memória): Don Ricardo Carballo Calero desde os tempos da “Lúa Nova”

O artigo de Maure (algo injusto com a memória de Carvalho, na minha opinião) é uma boa amostra de certa mentalidade que foi dominante no círculo do poder cultural galego desde os inícios do regime autonómico (poder que ainda hoje continua vigente, embora talvez ameaçado pelas novas gerações e pelo próprio resultado dramático da política linguística que desenvolveram nestes passados 40 anos).

 

As calúnias contra Carvalho Calero

De Carvalho Calero propalaram-se, já em vida dele, muitas calúnias, algumas mesmo por escrito: umas verdadeiramente pitorescas, outras simplesmente ridículas, todas destinadas a contrarrestrar o seu prestígio intelectual e pessoal.

Calúnias teve de sofrer já nos duros anos 40 quando residia em Ferrol em situação de liberdade condicional: neste caso provinham do franquismo governante, nomeadamente dos falangistas locais, onde prevalecia a influência de Torrente Ballester. Nos quinze anos finais (aproximadamente de 1975 a 1990) as calúnias surgiram dos círculos anti-reintegracionistas e assumiram variantes díspares (e até contraditórias: por exemplo, foi acusado tanto de ser “comunista” como de ser “franquista”...).

Com os seus amigos de mais confiança ele tem comentado com humor essas invenções: um humor que dissimulava a dor que não deixariam de produzir no seu espírito –moralmente robusto e habituado às adversidades. Porque, infelizmente, é bem verdade o velho princípio “Calúnia, que algo sempre queda”: muita gente que não conhecia Carvalho acabava por crer semelhantes invenções, de maneira que se criou e se difundiu uma imagem grotescamente deformada da sua personalidade. Há significativos testemunhos de pessoas que, casualmente, entraram em contacto pessoal com ele; manifestavam a sua surpresa ao conhecer a sua índole real, bem diferente da que antes lhes chegara: um homem cordial, respeitoso, de conversa amena e cativante, culto mas alheio a qualquer assomo de arrogância nem pretensão de sobranceria.

Uma das calúnias era que “estava chocho”, que sofria “chochice senil”. Era –como as demais– uma difamação disparatada, pois Carvalho seguiu fazendo intervenções em público até poucas semanas antes de morrer, e aí era fácil constatar a sua permanente lucidez mental –e até a sua prodigiosa memória...

Na verdade, com o passar dos anos, todos percebemos –e temos que reconhecer humildemente– que as lembranças se vão apagando ou baralhando na nossa memória. Daí a importância de documentar bem os feitos e os tempos quando queremos falar do passado que vivemos. Vem ao caso aduzir aqui a difamação de senilidade contra Carvalho porque Xulián Maure tem agora os mesmos anos que tinha Carvalho Calero quando faleceu, e não quero eu de nenhum modo lançar sobre o velho amigo “nacido Julián” nenhuma acusação de “chochice senil”... Porém, creio descobrir no seu escrito algumas lacunas da memória e algumas confusões de tempos, datas e... intenções.

 

Explicar” Carvalho Calero

Diz Maure: “Don Ricardo Carvalho Calero (nacido Carballo Calero) merece unha explicación. Non son eu o máis indicado para dala, pero si podo achegar pequenas luces”.

Realmente, Carvalho está já bastante bem explicado: em primeiro lugar, pela sua ampla obra escrita, mas também pelas suas muitas declarações (conversas e entrevistas várias), e por muitos testemunhos, alguns neutrais e não obtusamente hostis à sua figura, ademais de outros bem próximos e afectivos mas não menos objectivos.

O que, pelo contrário, precisaria de uma explicação detalhada é o comportamento para com ele dos seus adversários e nomeadamente do “oficialismo” cultural galego. E aqui o testemunho de Maure, que esteve próximo do poder todos esses anos, e até chegou a participar dele num período intensamente discriminatório e repressivo para o reintegracionismo (na função de “subdirector xeral do libro, bibliotecas e arquivos”, como ele próprio lembra), poderia decerto achegar alguma informação útil.

No que sim acerta Maure é em reconhecer que ele não é “o máis indicado” para dar “unha explicación” sobre Carvalho. Porque resulta óbvia a sua incompreensão, e mesmo hostilidade, de antes e de agora e de sempre, ao seu velho professor. Se lhe reconhece uma auctoritas científica e moral, só o faz com repetidas restrições e reservas. Porque os seus reconhecimentos aparecem envenenados: fala, por exemplo, de “escuras preocupacións de quen traballou pola súa terra sen deixar de sorprender cada día a alumnos e colegas”, e, surpreendentemente, de um “paso atrás de D. Ricardo” na normativa linguística, e de não ter sabido “ser un de tantos, o «primus inter pares»” ao lado dos seus antigos alunos, dos quais sentiria ciúmes (!).

E, embora reconheça que Carvalho merecia um Dia das Letras Galegas (pela sua obra literária), este reconhecimento serôdio soa a resignada e forçada aceitação de uma decisão que outros tomaram. Deixa transluzir a sua incomodidade com o eco que a figura de Carvalho veio suscitando neste ano na sociedade galega apesar das circunstâncias adversas da pandemia. Porque, vem a dizer-nos Maure, para os que exerceram o controlo do “oficialismo” cultural galego nesses anos, de Carvalho Calero não há nada que celebrar, pela oposição que Carvalho e o reintegracionismo desenvolveram contra aquela política: “é comprensible que a memoria non lles axude a celebrar este ano a nosa festa das letras”.

O que Maure passa por alto é que, naquela confrontação, os meios usados num lado e noutro não eram os mesmos: foi uma luta desigual, pois uns eram os repressores e outros os reprimidos, entre estes Carvalho: a luta da palavra e da resistência passiva contra a imposição política e a discriminação social. E os que tivemos que sofrer então e depois o doloroso papel de reprimidos podemos agora suspeitar que o desejo de não “celebrar”, isto é, de não lembrar e documentar aqueles feitos pretenda silenciar as responsabilidades. Não creio que ninguém alimentemos nenhum ânimo de vingança, mas a história é a história, e deve registar-se e documentar-se tal como foi, para corrigi-la se ainda se puder, e para não repeti-la –e também para dar alguma reparação de justiça, mesmo que seja póstuma, às vítimas (Carvalho a primeira) de aquele abuso.

Maure diz que, apesar disso, espera “achegar pequenas luces” para um melhor conhecimento de Carvalho. Porém, nessas “luces” segue a atitude típica dos adversários de Carvalho todos estes anos: não se param a analisar os argumentos de Carvalho (a identidade linguística, o futuro da língua ameaçado...), mas simplesmente pretendem desqualificá-lo buscando ocultas e fantasiosas motivações psíquicas na sua atitude: neste caso insiste-se sobre supostos ciúmes de Carvalho a respeito de outros professores, nomeadamente dos seus antigos alunos.

A verdade é que essas “pequenas luces” do seu artigo, se não iluminam nada sobre Carvalho a meu ver, sim iluminam algo sobre o autor do artigo e sobre esses outros que não têm nada que “celebrar”, e sobre o seu modo de pensar e de agir.
 

As Bases de 1977

Maure faz alusão às Bases pra unificación das normas lingüísticas do galego, que foi o folheto em que se publicou a primeira normativa do ILG, e das reuniões em que se trataram, e do seu papel pessoal como editor do folheto com esse nome modesto (tomado da normativa ortográfica portuguesa então vigente). Há, porém, algumas inexatidões no seu relato. Fui um dos mais assíduos assistentes a aquelas reuniões, como ele informa (recolhendo uma notícia, de resto indirecta e pouco precisa, de Rivas na revista Teima), e conservo apontamentos bastante detalhados do seu desenvolvimento.

Maure lembra a sua incitação à celebração de aquelas reuniões: “Como editor para Galicia da editorial Anaya [...] convencín aos responsables do Instituto da Lingua Galega da necesidade de promover un seminario”...

A situação que deu origem a aquelas reuniões era complexa. De qualquer modo, o certo é que a editorial Anaya (e a sua filial galega Edicións Xerais, fundada e dirigida por Maure) se beneficiou grandemente da normativa do ILG e da sua imposição política, como ele próprio lembra: da aprovação dos seus livros de texto (e da desaprovação dos que não seguiam a normativa do ILG) e do imenso negócio dos livros de texto aprovados e de obras literárias propostas como leituras obrigatórias ou sugeridas no ensino. A isso há que acrescentar os subsídios oficiais com fundos públicos aos livros editados, a adquisição de exemplares, os prémios literários... Benefícios todos eles rigidamente excluídos para o reintegracionismo.
 

As circunstâncias históricas dos finais do franquismo

Para situarmos adequadamente os feitos que Maure trata convém lembrarmos os principais acontecimentos históricos de aqueles anos, que se sucederam com rapidez e que portanto faziam muito cambiante a situação em pouco tempo, e que determinaram também a nossa situação linguística, igualmente variável à medida que as circunstâncias políticas mudavam.

Enquanto Franco esteve no poder, eram escassas as possibilidades de um tratamento político favorável à nossa língua. Em novembro de 1975 faleceu Franco. No seu lugar entrou como novo «Jefe del Estado» o rei João Carlos I, mas o franquismo continuou em pleno vigor e funcionamento durante mais de um ano.

Na segunda metade do ano 1976, sendo já presidente do governo espanhol Adolfo Suárez desde julho, debateu-se e aprovou-se nas Cortes franquistas uma «Ley de Reforma Política», que servirá de base legal para, pouco a pouco, ir modificando a legalidade franquista. Em 15 de dezembro desse mesmo ano 1976 essa lei submeteu-se a referendo em todo o estado (sem debate livre, pois não havia ainda partidos políticos legais) e resultou aprovada por ampla maioria. Mas, na prática, continuava o “franquismo sem Franco”. Não se podiam ainda fazer previsões sobre quando o galego poderia ser reconhecido oficialmente.

No campo interno da nossa língua também vinham acontecendo cousas nesses tempos finais do franquismo. Desde algum tempo atrás, existia na cultura galega um desejo comum de dispor de uma normativa linguística unificada nos pontos básicos, ainda que fosse provisória.

No momento em que acabava o franquismo (anos 1975-1977) havia duas tendências normativas, com diferenças que eram de pequena entidade linguística mas de grande frequência no discurso escrito e que ademais escondiam uma diferente concepção da língua. Por um lado, existiam umas básicas normas linguísticas da Real Academia Galega. Mas, por outro lado, os responsáveis do ILG, em aberta rebeldia contra essas normas, consideraram-se legitimados para propor umas normas diferentes, mais castelhanizantes e populistas. Aplicando o término que usa Maure para o reintegracionismo, poderíamos falar de uma «heterografia» do ILG. Essa arrogante indisciplina provocara uma surda indignação contra o ILG em boa parte da cultura galega (ademais de na RAG).

Nessa altura, pelos fins do ano 1976, ainda portanto em pleno franquismo, alguns membros qualificados do ILG sentiam que a atitude populista e castelhanizante que vinham defendendo precisava uma reconsideração. Na origem desse sentimento fora decisivo, não tanto o artigo de Lapa de 1973, nem mesmo a posição que Carvalho Calero, o catedrático de galego, manifestara já em 1975 ainda em vida de Franco, mas sobretudo o artigo de Corominas publicado na revista Grial aparecida em setembro desse ano 1976, que com o seu prestígio sacudiu os fundamentos em que o ILG baseava as suas propostas.

De resto, nalguns membros do ILG esse confronto com a Real Academia Galega criava a consciência de que careciam de uma legitimação pública e reconhecida para as suas propostas discrepantes da RAG. Assim foi como decidiram (de boa fé, estou convencido) orga nizar umas reuniões sobre normativa, convocando os amigos que lhes pareceu podiam ter algo que dizer sobre o assunto. O oportuno pulo de Maure para essa decisão do ILG achava, pois, uma situação geral propícia. E não tenho dúvida que esse pulo, embora fosse imediatamente excitado, segundo ele nos declara, por interesses comerciais, provinha seguramente de uma autêntica preocupação pelo futuro da língua.
 

A assistência às reuniões das Bases

A convocatória para essas reuniões fez-se de modo privado mediante contactos amistosos, e assim foi como a mim me chegou. A assistência, porém, foi escassa, irregular e pouco significativa: a maioria dos assistentes eram residentes em Santiago e ligados ao próprio ILG e à sua órbita.

No ILG houve depois uma mitificação dessas reuniões, porque viram que as podiam aduzir como a “legimitação moral e pública” que lhes faltava. O artigo de Maure partilha ainda essa visão mitificadora. Tal mitificação está baseada sobre exagerações que distorcem a sua verdadeira história e silenciam a inadequação fundamental da metodologia nelas seguida. Em artigos que Carvalho Calero publicou na revista Grial (depois recolhidos no seu livro Problemas da língua galega) estão bem formulados os limites de aquele sistema de trabalho.

Ao respeito cumpre precisarmos vários pontos.

O sistema de decisão (algo confuso, por uma espécie de prevalência entre os assistentes, onde o ILG tinha sempre maioria) era desatinado, como Carvalho bem advertiu.

Nem sequer o que se publicou no folheto editado por Anaya em 1977 foi o que se decidira nas reuniões. Algumas das decisões ali aprovadas apareceram formuladas de maneira bastante diferente; por exemplo, aprovou-se dar preferência aos sufixos -bel e -zón, sobre os castelhanos -ble e -ción, cujo uso se toleraria provisoriamente mas se desaconselharia; porém, o publicado é diferente disso. Constantino Garcia confessou-me então que não podiam admitir muitas mudanças simultaneamente, porque isso inutilizaria os livros do método de galego que tinham editados, e já admitiram o plural em -ais.

(E a propósto de Constantino: contrariamente ao que afirma Maure, assistiu a poucas reuniões, e isto com grande alívio de alguns membros do ILG, que não desejavam a sua presença, porque tinham medo às suas intervenções pouco felizes, que os deixavam em ridículo...).

Para mais, há que dizer que mais tarde o ILG renunciou mesmo a algumas propostas, mais proclives ao reintegracionismo, incluídas no primeiro folheto das Bases.

Diz Maure: “Don Ricardo asistiu ás primeiras reunións e deixou de asistir xustificando a súa ausencia por ter convocado, tamén para os sábados, un curso de doutoramento”.

Carvalho Calero assistiu a uma única reunião (e fê-lo por impulso meu, e pouco convencido), mas não quis assistir a mais porque, como explicou bem na recensão do folheto publicado, considerava errada e inválida a metodologia que ali se seguia.

De resto, claro está que Carvalho não tinha que justificar a ninguém a sua ausência, pois nem ele nem ninguém tínhamos nenhuma obrigação de assistir ao que era uma convocatória de iniciativa privada e de colaboração e aceitação livre.

Maure diz: “o académico D. Ramón Piñeiro, que participou ata o final no seminario”.

Piñeiro (como em geral todos os académicos da RAG) não queria saber nada da gente do ILG, e de alguns deles tinha uma opinião muito negativa, manifestada em conversas privadas muitas vezes e por escito em algumas das suas cartas. Não assistiu à primeira reunião, como tampouco nenhum outro académico.

E aí tenho eu algo que dizer. Depois dessa primeira reunião, vendo que nenhum académico quisera acudir à convocatória do ILG (apesar de residir vários deles em Santiago) dirigi-me (pela minha conta e iniciativa naturalmente) tanto a Carvalho como a Piñeiro, com os quais tinha boa amizade, manifestando-lhes que me parecia que a gente do ILG se mostrava agora bem disposta a rectificar as suas decisões normativas e que poderia ser útil participar nessas reuniões, pelo menos até ver qual era de verdade a sua atitude. Ambos assistiram à seguinte reunião. Mas depois dessa experiência, Carvalho não assistiu a mais, como já dixe, e Piñeiro assistiu a alguma outra, irregularmente e sem nenhum entusiasmo nem protagonismo. O mesmo podemos dizer de Fernández del Riego. Neste sentido devemos interpretar a afirmação de Maure de que “o protagonismo dos membros máis novos do ILG [...] reduciu as actuacións dos académicos a pouco máis que a súa presencia”; presença escassa e pouco entusiasta, devemos precisar.
 

A metodologia “democrática”

Diz Maure: “Estas cousas das normativas ortográficas, comentou xa desde fóra D. Ricardo, non se poden facer con votacións democráticas”.

Exacto. Assim exprimia Carvalho essa ideia nesse mesmo ano 1977:

“Hai muita gente dabondo singela para crer que umha conclusom filológica deve adoptar-se por sufrágio universal, como umha medida legislativa num regime democrático. Mais umha assembleia de galegos nom é própria para tomar decisons relativas ao idioma sobre a base de um home um voto, com igualdade de valor o sufrágio do lingüista e do escritor, o do político e o do crego. Realmente non é um hemiciclo parlamentário o local próprio para depurar o idioma.” (Problemas da língua galega, p. 76; originariamente na revista Grial, núm. 56, 1977).

O que deve surpreender-nos, penso eu, é que Maure ponha em dúvida esse princípio. Para o ILG esse método “democrático” resultava muito cómodo, porque tinham sempre maioria entre os assistentes. Com tal critério “democrático” não é de estranhar que haja gente que queira admitir como galego bueno ou pulpo ou Dios ou gallego ou outros castelhanismos claros mas bem vivos na fala de hoje.

 

Um critério dialectológico

Maure, como em geral o ILG, dá excessiva importância aos resultados do Atlas linguístico galego, que tem mais interesse dialectológico do que normativo. Para escolher entre esto e isto, ou entre amábamos e amabamos, ou entre bom e bo, ou entre mai e nai (por citar só alguns exemplos entre outros muitos) os dados da dialectologia não são determinantes; nem sequer o foram nas Bases nem na sucessiva normativa ILG-RAG.

O erro de fundo do ILG (que surge da sua mesma concepção como uma instituição constituída em época de pleno franquismo e segundo os critérios da universidade franquista) é a sua delimitação do campo linguístico galego só à área espanhola, pois prescindem da área portuguesa como de uma “língua diferente”. Com esse princípio apriorístico como base é óbvio que os resultados serão sempre não só anti-científicos, mas também bastante arbitrários.

 

Entre Carballo e Carvalho

Diz Maure: “O Día das Letras Galegas de 1984 [...]. Neste tempo ainda non firmaba Carvalho”.

Também neste ponto Maure está simplesmente mal informado: já no ano anterior publicara-se o seu livro Da fala e da escrita e nesse ano 1984 saiu Letras galegas, ambos com a autoria “Ricardo Carvalho Calero”.

Maure tratou pouco Carvalho e só de maneira ocasional e superficial, e, como se vê, conhece mal a sua atividade nesses anos. Já outras vezes se fez notar que em geral no campo anti-reintegracionista desconhecem a dúzia de livros que Carvalho publicou na década final da sua vida.
 

O “orgulho” de Carvalho

Diz Maure: “Achegueime a Santiago para falar co conselleiro e, mesmo na porta do despacho, cadrei co meu vello profesor Carballo Calero. «Teñen que comprender, díxome, que a máis alta autoridade académica universitaria da lingua galega son eu»”.

Já falei antes das várias e curiosas calúnias que os seus detractores inventaram sobre Carvalho. Mas esta do seu orgulho académico nunca a ouvira. Claro que não me estranha que corresse também, e que alguns a cressem (como, ao que se vê, o próprio Maure, no que interpreto como uma confusão de memória).

É verdade que tanto o seu carácter aparentemente distante como a firmeza com que mantinha as suas ideias podiam dar pé a atribuir erradamente a Carvalho Calero um espírito orgulhoso. A professora Aurora Marco recolheu no seu livro Foula e ronsel o testemunho de Manuel Beiras, companheiro de Carvalho no Partido Galeguista dos tempos da República: “À primeira vista podia parecer orgulloso, vaidoso, pero non, non era nada diso” (2ª ed. 2020, p. 103).

Cousa diferente é atribuir-lhe a ele próprio uma tal declaração. Pelo contrário, os que conhecemos Carvalho de perto sabemos da sua real modéstia, da humildade com que estava disposto a escutar com respeito e interesse outras ideias e outras opiniões, sempre aberto a apreender. E o próprio Mauro nos conta uma anedota na qual fica bem clara essa atitude.
 

Uma colaboração “não escrita”

Bem significativa resulta a anedota que Maure conta sobre a publicação de um livro da Junta sobre Cotarelo, para o qual solicitou a colaboração de Carvalho. Mas, adverte Maure, “para o libro [...] non se podían admitir variantes fóra da norma oficial”.

Surpreende que ainda se possam formular expressões como essa de maneira tão “inocente”: Maure manifesta com descarnada naturalidade o que foi a discriminação dos discrepantes por parte do poder cultural anti-reintegracionista, dispondo dos fundos públicos, e baseando-se em disposições legais abusivas e até imorais que eles mesmos redigiram. Uma discriminação que nem sequer respeitou a figura venerável de Carvalho (quem protestou repetidamente contra essa injustiça nos seus escritos dessa época).

Algo também surpreende que Maure tivesse o atrevimento de solicitar a Carvalho uma “colaboração” que não podia ser escrita: uma seleção de textos de Cotarelo. E merece sublinhar-se a humildade do velho mestre: se fosse orgulhoso, poderia ter intepretado essa estranha petição (a ele, especialista em Cotarelo) como algo cínica; porém, em espírito de fraternidade e em bem da cultura galega, transigiu (mesmo com “un sorriso”, segundo lembra Maure) com semelhante exigência.

 

Contra a marginalização

Há que dizer que não todos os editores se fizeram cúmplices desse silenciamento e marginalização de Carvalho e do reintegracionismo. Sotelo Blanco lembrava recentemente o seu respeito à duplicidade de concepções linguísticas, e o seu compromisso (honra lhe seja) com Carvalho, de quem editou várias obras (entre elas, duas que são talvez as melhores da sua produção literária: o romance Scórpio (1987) e o poemário Reticências (1990)).

Ao mesmo tempo, o seu testemunho confirma eloquentemente o que antes dizíamos sobre a personalidade de Carvalho:

“Corría o ano 1986 [...] como novo editor, pensei que debía empezar a marcar unha liña de publicación na que coubese a pluralidade que se manifestaba na realidade de entón. [...] Como nos sectores enfrontados aos lusistas falábanme mal de don Ricardo, pensei que o mellor era coñecelo. [...] no Derbi de Compostela, logo de horas de parola, decateime de que acababa de coñecer un home encantador. Faloume dos problemas aos que se enfrontaba para poder editar, xa que non era da corda dos do monopolio cultural de Galicia. [...] dende entón non só decidín que lle publicaría as obras que me presentase, senón que pasamos horas conversando á vez que se comezaba a forxar unha boa relación persoal” (O Farelo, outubro de 2020, p. XIII).
 

Epílogo

O artigo de Maure daria pé para outras precisões, porque abunda em afirmações distorcidas e tendenciosas. Só quero ainda notar, para concluir, que na sua “explicación” histórica, não há alusão às consequências atuais de aquela política linguística, à situação dramática da nossa língua na Galiza, nem ao carácter profético das repetidas advertências de Carvalho ao respeito.

Tampouco há no seu artigo indícios da responsabilidade dos que, frente ao “Não estamos sós” de Carvalho, pretenderam construir uma nova língua dizendo aos falantes: “A língua galega é nossa exclusiva, de nós únicos: somos uma nova língua românica!”. Como podemos constatar hoje dolorosamente na constante perda de falantes durante estes 40 anos de Bases e similares, os galegos perceberam também o reverso dessa mensagem: “A tua língua fala-a pouca gente, e não passa além do Minho, não tem muitos livros nem revistas nem jornais nem muitas películas nem muitos canais de televisão nem muitos recursos informáticos, nem é necessária nem útil...”.

Quarenta anos infundindo nos galegos esta mensagem no ensino e nos meios de comunicação teveram uns efeitos devastadores para o nosso futuro linguístico. Essa sim que foi uma “deleiba” (!), e não a normativa aberta proposta por Carvalho. Alguns dos que tiveram responsabilidade naquela imposição normativa têm manifestado, à vista das consequências, que “talvez nos equivocamos e é hora de rectificarmos o rumo quanto antes”. Assim, o saudoso Carlos Casares. Como se vê, não parece ser o caso de Xulián (nacido Julián) Maure...

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