Na sequência das diferentes reações, protestos e conversas entre políticos e membros de algumas organizações da sociedade civil motivadas pela situação linguística na Galiza, a AGAL desfecha o ano 2024 a analisar a Lei Valentim Paz-Andrade, as suas potencialidades e aquilo que está por se implementar.
Após dez anos de esta lei estar em vigor, tanto a oposição na Câmara galega quanto uma parte importante do movimento associativo cultural e linguístico atualmente acham que a implementação real da lei pelo Parlamento da Galiza nunca chegou
A Lei 1/2014, de 24 de março, para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a lusofonia, mais conhecida como «Lei Valentim Paz-Andrade», é uma lei do Parlamento da Galiza, aprovada por unanimidade no ano 2014, após ser enviada para o Parlamento galego no ano 2012 como uma iniciativa legislativa popular que contou com o apoio de mais de 17.000 assinaturas. A norma tem o seu nome em reconhecimento ao economista, jurista e escritor galego Valentim Paz-Andrade, defensor da reaproximação entre a norma escrita galega e portuguesa, e que foi homenageado no Dia das Letras Galegas de 2012.
Esta lei, entre outras questões, visa alargar o ensino de português na Galiza, estabelecer como objetivo estratégico as relações em todos os níveis com os países de língua oficial portuguesa e, aliás, favorecer a troca recíproca das emissões de rádio e de televisão entre ambos os países de forma a reforçar as ligações linguísticas e culturais comuns.
Porém, após dez anos de esta lei estar em vigor, tanto a oposição na Câmara galega quanto uma parte importante do movimento associativo cultural e linguístico —que há anos viram na norma uma oportunidade para o galego ganhar atrativo, nomeadamente nas gerações mais jovens, devido à sua conexão com o português— atualmente acham que a implementação real da lei pelo Parlamento da Galiza nunca chegou.
Não podemos esquecer que a própria Associaçom Galega da Língua, a Academia Galega da Língua Portuguesa, a Fundaçom Meendinho, com a adesão da Associaçom de Estudos Galegos enviámos uma carta aberta ao presidente da Junta da Galiza, naquela altura, Alberto Núñez Feijoo, apenas quatro anos após a aprovação da lei, isto é, em 2018, na qual transmitiamos o mal-estar pelo «nulo desenvolvimento jurídico, incumprindo o compromisso adquirido durante a negociação connosco, e com os grupos parlamentares galegos, na altura da sua aprovação pela unanimidade dos deputados. [...] regista-se também um nível de aplicação ínfimo e testemunhal nos âmbitos de atuação previstos na Lei, não indo além de medidas provisórias e parciais, que dão nas vistas, mas carecem de orçamento e garantia de continuidade, dececionando as expectativas geradas e reduzindo ao mínimo a credibilidade do Governo nesta matéria».
Para além disso, as entidades que assinámos esta carta, denunciámos também, naquela altura, a atitude do Governo da Galiza por se apresentar publicamente como o maior defensor da lusofonia na Galiza «enquanto os departamentos de cultura e política linguística continuam a ignorar patentemente as entidades culturais galegas que, de longa data e com os seus próprios recursos, mantêm atividades [...] em relação ao espaço lusófono» (PGL, 4-6-2018). Aliás, as quatro entidades que apoiámos esta carta aberta criticámos, igualmente, que o ensino do português dependesse do voluntarismo e da vontade da sociedade civil, além de chamar a atenção para o facto de que pouco se tinha trabalhado para receber em aberto a RTP na Galiza, que o Governo galego não criasse nenhum órgão específico para o relacionamento bilateral galego-português, e que as políticas estruturais do Governo em relação à lusofonia não tinham caráter executório, isto é, não fixavam objetivos, prazos nem orçamentos específicos, ficando em simples declarações de boas intenções que, na realidade, não se tencionam levar adiante e, muito menos, cumpri-las.
O Conselho da Junta da Galiza aprovou, com uma década de atraso, a criação do Observatório da lusofonia Valentim Paz-Andrade
O Conselho da Junta da Galiza aprovou, com uma década de atraso, a criação do Observatório da lusofonia Valentim Paz-Andrade, através do Decreto 134/2023, de 28 de setembro, publicado no Diário Oficial da Galiza (DOG) em 10 de outubro de 2023. Este Observatório tem como fim «assessorar o Governo, criar planos de ação e programar atividades de conhecimento, troca e programação. [...] Servirá como foro de diálogo permanente entre as diferentes administrações públicas e outras organizações representativas de interesses no âmbito da lusofonia, a fim de assegurar a participação ativa na abordagem das relações da Galiza no referido âmbito, bem como unirá esforços, coordenará as ações público-privadas e procurará a consolidação no tempo da Galiza na lusofonia.». Este organismo estará formado pelo Conselho da Cultura Galega, pela Real Academia Galega, pelas três universidades galegas, pela Federação Galega de Municípios e Províncias, pela Confederação de Empresários da Galiza, pela Academia Galega da Língua Portuguesa, pela associação Docentes de Português na Galiza e pela Associaçom Galega da Língua, deixando assim a porta aberta para que organizações galegas que trabalham há anos da ótica lusófona possam fazer parte deste órgão. Por outro lado, apesar de que no Decreto se salientava que a sessão constitutiva do Observatório teria lugar no prazo de seis meses a partir da entrada em vigor deste decreto (10-10-2023), o que nos leva, portanto, a abril de 2024, não foi até fins do mês de outubro que teve lugar a primeira reunião do citado Observatório, isto é, um ano após a publicação do Decreto que criava o Observatório da Lusofonia Valentim Paz-Andrade e dez anos depois da aprovação da Lei Valentim Paz-Andrade. Por conseguinte, esta forma de atuar coloca em evidência a pouca vontade do Governo galego e os incumprimentos contínuos da própria legislação, com iniciativas interessantes que sempre chegam muito atrasadas no tempo.
A Conselharia de Educação da Junta da Galiza tem demonstrado pouco interesse por acrescentar o número de docentes de português no ensino
A Conselharia de Educação da Junta da Galiza tem demonstrado pouco interesse por acrescentar o número de docentes de português no ensino. É muito frequente que as vagas oferecidas nas convocatórias públicas para língua portuguesa fiquem num número simbólico: 3 ou 4. Isto é intolerável e confirma a relutância do Governo em promover o português, que seria mais do que benéfico para o galego. E, como se isso fosse pouco, no início do último ano académico, tivemos conhecimento das tentativas para eliminar o Departamento de Português no IES S. Paio de Tui, um centro educativo de referência no ensino do português desde há mais de vinte anos. Não deixa de ser mais um exemplo das políticas, pouco interessadas na lusofonia, deste Governo. Felizmente, neste caso em concreto o Governo galego recuou, no passado mês de outubro, na sua intenção de não manter o departamento de português nesta escola de ensino secundário. Nesse sentido, o departamento mencionado permanecerá em ativo em troca de o português se tornar na primeira língua estrangeira, o que implicará que o IES S. Paio necessitará, ao menos, mais um docente de português ao se incrementarem as horas letivas nesta língua.
No âmbito do ensino, mesmo utilizando dados de organismos oficiais, no ano 2024 há perto de 50 vagas para professores de português no ensino obrigatório da Galiza. O número de alunos de português é por volta de 5.000, contando também aqueles que frequentam as escolas oficiais de idiomas, o que equivale a 4% de estudantes. Fazendo uma comparativa, se o Governo galego mantiver este ritmo de crescimento, não atingiremos a percentagem de alunas e alunos a estudarem português que a Comunidade Autónoma da Estremadura tinha em 2014 (perto de 20.000) até dentro de 40 ou 50 anos.
A Secretaria-Geral de Política Linguística, dirigida por Valetín García, continua a sustentar que a implantação do português como segunda língua estrangeira está sujeita diretamente à demanda das alunas e alunos e que, supostamente, a inscrição cresce ano após ano. Porém, a Junta da Galiza tem de promover o ensino em português, já que, algo que não é informado desde o próprio Governo, será desconhecido para a sociedade e, portanto, não haverá demanda. Não pode ser deixado tudo nas mãos da boa vontade dos docentes, que encorajam os seus estudantes a se inscreverem em português e fazem por ministrar esta cadeira. Também, chama a atenção que na Estremadura todos os estudantes possam inscrever-se em língua portuguesa, mas que na Galiza não aconteça o mesmo. E é também, quando menos, sintomático ou paradoxal que o português pretenda ser ensinado como segunda língua estrangeira, mesmo depois do inglês, na Galiza.
Quanto ao estreitamento dos laços da Galiza com os países da lusofonia, a Secretaria-Geral de Política Linguística valoriza os avanços que fizeram até agora, porém não concretizam nenhuma medida, para além da aprovação da Lei de ação exterior para melhorar a projeção no estrangeiro
Quanto ao estreitamento dos laços da Galiza com os países da lusofonia, a Secretaria-Geral de Política Linguística valoriza os avanços que fizeram até agora, porém não concretizam nenhuma medida, para além da aprovação da Lei de ação exterior para melhorar a projeção no estrangeiro. A intenção da Junta da Galiza é aperfeiçoar a colaboração com o Instituto Camões. No entanto, os grupos da oposição do Parlamento da Galiza questionam os esforços feitos com relação aos vínculos internacionais. Estas relações poderiam ter um potencial imenso para as empresas galegas, tendo em conta o contexto atual, pois dar-nos-ia um pulo extra para os fundos de recuperação europeus.
Outro aspeto fundamental da Lei Paz-Andrade é a coprodução de conteúdos audiovisuais entre a Galiza e Portugal. Nos últimos anos têm-se desenvolvido algumas séries que foram emitidas na TVG e na RTP. Porém, ainda é impossível ver a televisão portuguesa na Galiza, uma das medidas mais esperadas da referida lei. A Junta ressalta que seria de imensa utilidade para o conhecimento mútuo das línguas, mas, ao mesmo tempo, aponta que ainda não é possível porque a partilha do espaço radioelétrico é uma competência do Estado. Não obstante, também é verdade que o Governo galego não fez grandes esforços, como Governo autónomo que é, para conseguir essa competência, nem entrou num debate sério com o Estado para conquistar este direito, que temos mesmo reconhecido na Carta europeia das línguas regionais ou minoritárias.
E como se isso ainda não bastasse, a própria Lei Valentim Paz-Andrade exige um informe anual e pormenorizado para avaliar o grau de cumprimento da lei, mas, dez anos após a aprovação desta norma, ainda não foi facilitado o primeiro informe, o que demonstra mais outro incumprimento da Junta da Galiza.
Não podemos nem devemos desvalorizar os esforços realizados, alguns importantes e outros apenas simbólicos, como foi a edição em português do DOG. Podemos salientar uma série de ações desenvolvidas pelo corpo de docentes, pelos pais dos estudantes, e certas iniciativas da Direção Geral de Política Linguística. Porém, no que diz respeito a esta última, das muitas propostas que lhe foram apresentadas, só ligou para poucas, o que só pode ser qualificado como muito insuficiente.
Na AGAL consideramos que a Lei Valentim Paz-Andrade não só devia inspirar os discursos de organizações políticas e culturais mas também orientar, de facto e de forma maciça, o conjunto de medidas e iniciativas
Já por último, no último trimestre do ano tivemos conhecimento de que o Instituto Galego de Estatística (IGE) publicou os dados sobre o conhecimento e o uso do galego em 2023; dados provenientes dum estudo elaborado a partir de 9.200 inquéritos. As cifras confirmam uma queda importante de galego-falantes entre a mocidade e coloca o castelhano como a língua mais falada frequentemente na Galiza. Apenas 16,19% das crianças entre 5 a 14 anos fala galego sempre ou mais que o castelhano, enquanto 32,4% da rapaziada entre essas idades reconhece não saber expressar-se em galego. É a primeira vez na história que o galego dispõe duma percentagem de falantes habituais inferior ao castelhano. Como bem refletia Eduardo Maragoto, ex-presidente da AGAL: «Há de se prestigiar o galego mais do que normalizá-lo, e a Lei Paz-Andrade é um bom ponto de partida. Se tivéssemos uma aliança maior com o português, teríamos um galego muito mais atrativo, tanto para quem já o fala quanto para quem não». Esta lei deveria estar no centro de qualquer política linguística, pois «A lusofonia dá uma enorme potencialidade ao galego. Com esta abordagem, já não se trataria tanto de competir com o castelhano, mas de fazer mais atrativo o galego por si próprio». Seria importante focar os esforços no português no ensino, já que «Se aumentarmos os esforços, qualquer aluno ou aluna poderá finalizar a escola secundária com B1 ou B2 de português».
Assim sendo, na AGAL consideramos que a Lei Valentim Paz-Andrade não só devia inspirar os discursos de organizações políticas e culturais mas também orientar, de facto e de forma maciça, o conjunto de medidas e iniciativas, que nascidas deste debate pela saúde do galego, visem honestamente um futuro para a nossa língua a longo prazo.