Morreu-me o amigo, morreu-se-nos o mestre, aquele que nos revelou a centralidade inexpugnável do galego nesse extenso e singular universo linguístico que é o romance ocidental que abraça continentes. Ele nos leccionou de como esse universo apousa no território matricial da língua galega
Morreu-me o amigo, morreu-se-nos o mestre, aquele que nos revelou a centralidade inexpugnável do galego nesse extenso e singular universo linguístico que é o romance ocidental que abraça continentes. Ele nos leccionou de como esse universo apousa no território matricial da língua galega.
Na sexta 10 de Janeiro 2020, dava eu a notícia do nosso encontro em Praça Pública que o professor aproveitava para insistir no seu rejeitamento da posiçom reintegracionista que eu pratico e que afinal nos foi separando sem por isso conseguir enfriar a nossa sólida amizade alimentada de umha corrente contínua de encontros epistolares que unírom Mértola e Compostela. Mértoa pronunciava eu ao princípio que ele aproveitava para apontar o seu gozo por conservarmo-nos nós os galegos essa característica queda do ele intervocálico que eles, aló no Alentejo há tempo perderam.
Chama a atençom a apaixonada polémica que suscitou a crónica do meu encontro com Venâncio publicada em Praça, reflectida nos comentários, incluído o de Venâncio que aproveitou para insistir no seu desdém sobre o reintegracionismo cuja defesa nunca foi fácil em Galiza.
Por aqui, na minha casa, aparecera um dia no carro do seu fiel amigo Marcos Neves, condutor e confidente. E assi fum eu entrando na sua vida singular, no seu passo polo Seminário e os seus estudos de teologia, na sua fuga dos país para fugir do alistamento militar em plena guerra colonial, na sua apresada fugida através de Espanha para evitar o seu alistamento, mos seus estudos de linguística na Universidade de Amsterdam para começar dous anos depois do seu remate a leccionar como professor de português em diversas Universidades holandesas até assentar-se na de Amesterdám para leccionar língua e cultura portuguesa ao mesmo tempo que começava a colaborar em diversos jornais e revistas que acabárom por assentar o seu reconhecido magistério na crítica linguística e a história do português.
Por fim, em 2019, dava a luz o seu muito esperado livro Assim Nasceu uma Língua que o trouxe a Compostela. Umha apaixonada síntese do seu percurso polos caminhos do idioma que enchera os seus desvelos intelectuais
Por fim, em 2019, dava a luz o seu muito esperado livro Assim Nasceu uma Língua que o trouxe a Compostela. Umha apaixonada síntese do seu percurso polos caminhos do idioma que enchera os seus desvelos intelectuais. Um livro fulcral da história e desenvolvimento desse idioma que partilhamos galegos, portugueses e brasileiros com congolenses e moçambicanos. Nom podo deixar de matinar no fascínio que o livro teria produzido num Carvalho Calero e mesmo em Castelao que deixou aberta, a maneira de manda testamentária, o horizonte do português como plenitude dum galego finalmente reconciliado.
De génio vivo e temperamento polemista, as discussons com Fernando Venâncio nunca estavam isentas de acessos de impaciência mal-humorada segundo o tempero e ánimo do momento. E porém, quanta atençom às raízes galegas do idioma partilhado desde a mesma descriçom da sua ubicaçom geográfica nas primeiras páginas do livro: “Vivo em Mértola, onde nasci, no sul do Alentejo, a 200 quilómetros de Sevilha, a 230 de Lisboa, a 750 de Compostela ... Estão feitas as apresentações”. Sevilha, Lisboa, Compostela. Pola minha parte figem-lhe notar que no escudo de Mértola luzia um orgulhoso cavalheiro santiaguista, lembrança dum passado inevitavelmente entretecido com fios comuns.
A sua posiçom a respeito do reintegracionismo experimentou alteraçons ao longo da sua vida como se pode comprovar, mas, ao final, e desde logo quando eu o conhecim, a sua valoraçom do movimento passara a um rejeitamento intransigente
Assim Nasceu uma Língua parte desde o seu mesmo princípio da preeminência do galego como fonte e fundamento do idioma. O uso do mapa da Galecia Major de J. M. Piel sustenta o papel matricial do galego; umha preeminência que sem embargo nom lhe permitia concordar nas poderosas razons que serviam de aval ao movimento reintegracionista que eu professo. Galega por berço, portuguesa por desenvolvimento; umha língua partilhada de princípio a fim.
A sua posiçom a respeito do reintegracionismo experimentou alteraçons ao longo da sua vida como se pode comprovar, mas, ao final, e desde logo quando eu o conhecim, a sua valoraçom do movimento passara a um rejeitamento intransigente com a correspondente atitude benevolente e acrítica com a posiçom oficialista do establishment ILG-RAG. O meu apreço decidido polo labor linguístico de Carlos Garrido e de Valentim Fagim foi objecto de debate recorrente entre nós. A comum adesom a umha norma ortográfica actualizada e tecnicamente congruente com o universo da lusofonia, nunca foi compreendida por Fernando Venâncio.
A polémica, desenvolvida entre ambos em 2019, rejeitava sem margem para qualquer acordo as teses reintegracionistas. “Espero que o meu livro —daquela em projecto de publicaçom imediata— ajude a AGAL, mais (sic) o fundamentalismo, a ver a estranha aliança que mantêm com o reaccionarismo linguístico português (Malaca Casteleiro, Laborinho) e brasileiro (Bechara), todos também imensamente espanófilos, além de patrocinadores do estúpido AO90”insistia. Do seu desprezo sem matizes polo AO90 é boa prova o artigo que publica em 2016 no diário Público que ele gostava citar como referência. As trincheiras de Fernando Venâncio dentro e fora de Portugal fôrom sempre inexpugnáveis fortins em implacável defesa das suas teses. Nom deixa de intrigar nestas circunstáncias que Assim Nasceu uma Língua leve como subtítulo assi naceu ũa linga que mais parece umha piscadela à escrita reintegrada.
Descansa em paz amigo, arrolado já para sempre polos ecos da nossa língua de onde se vê sempre o mar como nos ensinou Vergílio Ferreiro e também o nosso Meendinho. O mesmo mar, o mesmo idioma
As filias e fobias de Venâncio fôrom arcanos indecifráveis para mim por parte de quem foi um detractor radical do Acordo Ortográfico do português de 1990, cego á sumptuosa achega lexicografia do meu admirado terceto virtuoso: Alonso Estraviz (1935), Álvaro Iriarte Sanromán (1962) e Carlos Garrido Rodrigues (1967). Nom houve maneira, o professor nom admitia razons na matéria e terminou por abraçar sem matizes o engado académico e institucional do ILG-RAG apesar das suas flagrantes incongruências Lástima nom poder polemizar já com o meu amigo de Mértola acerca dos últimos episódios da polémica. A contundente diatribe de Carlos Garrido acerca da incompetência linguística do Presidente da Real Academia Galega.
Fica sem embargo a sua alegria polos passeios por Mértola com o ligeiro cajado, a bengala, que ele apreçava e eu lhe traspassei encantado, ou o seu entusiasmo polo comentário ao grande Zeca Afonso em Ó tirana saudade que ele me pediu para difundi-lo nas suas redes sociais.
Descansa em paz amigo, arrolado já para sempre polos ecos da nossa língua de onde se vê sempre o mar como nos ensinou Vergílio Ferreiro e também o nosso Meendinho. O mesmo mar, o mesmo idioma.