O Mercado de Santiago, arcaísmo e modernidade

Mercado de Abastos de Compostela ©

A Ernesto Vázquez Sousa, argonauta amigo

 

O santoral compostelano deveria reservar um lugar de honra, penso eu, ao criativo arquitecto ovetense Joaquin Vaquero Palacios (1900-1998), compostelano adventício engaiolado polo espírito románico e pétreo da cidade que conseguiu plasmar na sua icónica Praça de Abastos

O meu preguiçoso vagabundagem por lugares físicos ou literários levou-me no passado mês de Junho ao Mercado de Santiago, ou, para ser mais preciso, á dilatada comarca compostelana de cinco léguas de raio com centro no tal mercado imaginada por Lucas Labrada1. Como expunha naquele artigo, o ilustre economista ferrolano tivo a feliz ocorrência de tomar o mercado compostelano como protagonista de umha fábula didáctica sobre os efeitos benéficos de umha ampliaçom da área de subministro dos alimentos sobre o seu preço no mercado. A maior superfície de cultivo ao dispor dos consumidores, razoava Labrada, mais baixo o nível de preços no mercado, suposta garantida umha rede de caminhos adequada para conectar a área em cultivo com o mercado de destino. O razoamento foi desenvolvido como sabemos com um oportuno modelo quantitativo desenvolvido embora com surpreendente torpeza. Um encantador relato fisiocrático aliás bem adaptado à sociedade setecentista galega onde o estado da rede de caminhos e a abastança de alimentos constituíam o desvelo fundamental. A rede de caminhos ou as rotas fluviais cumpriam em certa maneira o papel alegórico da actividade mercantil, chave indiscutida do progresso.

Por essas casualidades habituais, a pouco de publicar o artigo, chegou-me aviso de umha singular reportagem audiovisual sobre o Mercado de Santiago que nem pintada para repensar a engenhosa fábula mercantil de Labrada. A reportagem a que aludo é produto dum exemplar trabalho colectivo com amplo mecenato de visionado inescusável. Encareço aos leitores mergulharem-se na brilhante liçom de arte e história desenvolvida em apenas 36 minutos2. Conforta comprovar a permanente vitalidade das mil histórias que a Galiza guarda.

O santoral compostelano deveria reservar um lugar de honra, penso eu, ao criativo arquitecto ovetense Joaquin Vaquero Palacios (1900-1998), compostelano adventício engaiolado polo espírito románico e pétreo da cidade que conseguiu plasmar na sua icónica Praça de Abastos. O singular sabor proto-románico que a caracteriza evoca em nós a depurada inspiraçom artesanal de um William Morris e demais patrocinadores do movimento Arts & Crafts que acabaria cristalizando nas beneméritas escolas de Artes e Ofícios que tanto iam contribuir a difundir os saberes artesanais na vida quotidiana. Como é sabido, as artes decorativas e o movimento art déco acabariam impondo a sua refinada estética artesanal a partir da Exposiçom Internacional de Paris de 1925. A primeira guerra mundial acabaria arrasando para sempre aquele efémero refinamento refugiado agora em museus e tendas de antiguidades.

O atractivo urbanístico de Compostela é o resultado da integraçom harmónica da sua monumentalidade heterogénea —mosteiros e paços urbanos, parques e miradouros, edifícios civis e praças singulares— no recoleto tecido urbano da cidade

O primeiro Mercado da cidade fora desenhado por Agustín Goméz Santamarina em 1870 em ferro forjado e vidro seguindo o cánone da época. O edifício envelheceu mal no pertinaz orvalho compostelano mas demorou bastante em ser substituído polo actual de Vaquero Palacios a causa da guerra civil e as suas sequelas e, de facto, houve de esperar até 1945 para encontrar substituto, ou mesmo até 1954 em que finalmente foi inaugurada a icónica torre central que preside o Mercado. Entre o Mercado de Goméz Santamarina e o de Vaquero Palacios fracasou o intento de materializar um projecto de Jenaro de la Fuente e Constantino Candeira de um estilo que eu acho enfático e grandiloquente, muito da época, pouco ajeitado estilisticamente, segundo eu vejo, ao singular perfil estético da cidade.

A tortuosa história do Mercado até o seu afortunado remate foi narrada com manifesta simpatia e inegável competência pola arquitecta Núria Prieto, ponferradina de nascimento e galega de residência e formaçom3, de muito recomendável leitura. 

O atractivo urbanístico de Compostela é o resultado da integraçom harmónica da sua monumentalidade heterogénea —mosteiros e paços urbanos, parques e miradouros, edifícios civis e praças singulares— no recoleto tecido urbano da cidade. Nele, a Praça de Abastos ocupa um lugar preeminente pola sua capacidade para mimetizar-se com a alma feirante, popular e granítica da cidade. O seu feitio románico é umha amável piscadela ao peregrino que já visitou a Catedral e vai atopar nele umha inesperada réplica de sabor popular.

A Praça de Abastos ocupa um lugar preeminente pola sua capacidade para mimetizar-se com a alma feirante, popular e granítica da cidade. O seu feitio románico é umha amável piscadela ao peregrino que já visitou a Catedral e vai atopar nele umha inesperada réplica de sabor popular

O encanto arcaizante do Mercado de Santiago evoca na minha memória outro monumento visitado por mim há tempo, a Bolsa de Comércio de Amsterdam, similar em intençom retrospectiva e estética revivalista. No caso holandês o monumento evoca o espírito empreendedor que floresceu em guildas e grémios comerciais que alicerçárom o admirável poderio da Liga Hanseática. A estética historicista que impregna o recinto pretende honrar esse glorioso passado.

O Mercado de Santiago participa desse mesmo empenho comemorativo desde coordenadas próprias: a memória viva da feira rural, a economia de auto-subsistência que sustentou o país, a persistente raiz campesina da cidade do Apóstolo que chega a equiparar a Feira de tratantes e campesinos da Ascensom com as mesmíssimas Festas do Apóstolo. A solene ordenaçom das oito naves do recinto, o seu feitio románico e funcionalidade prática pode ser interpretada como cordial homenagem à sociabilidade rústica que impregna Compostela consagrada na totémica vaca sonhada por Castelao. “O dia que emitamos papel-moeda estamparemos nele a figura de umha vaca como símbolo da nossa economia humanizada, honrá-la-emos num monumento em bronze dourado”, dissertava o mestre rianjeiro no Sempre em Galiza desde o seu exílio bonaerense.

Interior da Praza de Abastos de Compostela ©

O Mercado de Santiago espelha-se na Bolsa de Comercio de Amsterdam4 como brilhante contraponto. Obras ambas de intençom comemorativa: guildas, grémios e companhias que florescérom no império comercial holandês na Bolsa de Amsterdam, denso tecido humano formado polo campesinado auto-suficiente e o inquieto feirante no Mercado de Santiago.

O encanto arcaizante do Mercado de Santiago evoca na minha memória outro monumento visitado por mim há tempo, a Bolsa de Comércio de Amsterdam, similar em intençom retrospectiva e estética revivalista

Há subtis semelhanças e diferenças entre os projectos de Hendrik Petrus Berlage e Joaquin Vaquero Palacios, ambos afrontárom desafios técnicos similares com olhada historicista e semelhante instrumental: um depurado revivalismo programático que em nenhum caso obnubila a desinibida modernidade conceptual e executiva do projecto.

A manifesta modernidade brota em liberdade em ambos casos na potente cobertura desenhada para culminar ambas as respectivas obras: atrevidas cerchas —caibros ou treliças, diríamos em galego-português— na diáfana cobertura da Bolsa de Petrus Berlage; potente abóbada de canhom de formigom armado aberta á luz por umha série de generosas janelas perimetrais no Mercado de Vaquero Palacios.

Umha e outra cobertura rendem devota homenagem à respectiva tradiçom arquitectónica. A obra de Petrus Berlage reproduz a etérea cobertura de madeira da Igreja Velha, a Oude Kerk amesterdanesa5, de obrigada leviandade por estrita exigência construtiva: a fragilidade estrutural da estrutura palafítica que sustenta a Oude Kerk, obrigada a adaptar-se ao fundo lamacento que a sustenta. Ao invés dos airosos caibros da Bolsa amesterdanesa, as sólidas abóbadas do Mercado de Santiago rendem devota homenagem à poderosa abobada da Catedral de Santiago ou talvez à que cobre a Colegiata de Santa María do Sar com os imponentes contrafortes externos exigidos para assegurar a integridade da basílica. Ingrávidas estruturas de leviana madeira em Amsterdam, compacta abóbada portante em Santiago; diferentes as partituras, semelhante o virtuosismo compositivo.

Monumentos à vida quotidiana de arquitectos quase esquecidos capazes de conceber símbolos intemporais que parecem ter nascido no lugar que hoje ocupam

As abóbadas do Mercado compostelano potenciam a imagem románica pretendida por Vaquero Palacios. Formam arredor, generosas bancadas para a gente e os cestos incessantes descansar, estratégicos pousadoiros intercalares prestes a receber molhos de grelos ou cestas de patacas e castanhas, tentadores cubículos interiores onde loze toda a riqueza do mar e das agras e cortinhas no espaço interior. Um poderosa cofre granítico acogulado de vitalidade e abastança.

Mercados que evocam realidades evanescentes, cidades que tentam glorificar passados fugidios, arquitectos demiurgos possuídos de poderes capazes de materializar a alma das cidades, monumentos à vida quotidiana de arquitectos quase esquecidos capazes de conceber símbolos intemporais que parecem ter nascido no lugar que hoje ocupam.

 

Notas

1 https://praza.gal/opinion/o-malogrado-modelo-economico-de-lucas-labrada

2 Disponível em youtube: https://www.youtube.com/watch?v=7I3fthU70b0

3 https://tectonica.archi/articles/el-mercado-de-abastos-de-santiago-de-compostela-una-obra-de-joaquin-vaquero-palacios/

4 https://es.wikipedia.org/wiki/Beurs_van_Berlage

5 https://nl.wikipedia.org/wiki/Oude_Kerk_(Amsterdam)

Interior da Beurs van Berlage CC-BY-SA bMA

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