‘1968’ (Laiovento, 2018) e ‘Palavras a Espártaco’ (Através, 2015) são dous livros imprescindíveis para compreender a poética de Vítor Vaqueiro. Falamos com ele de ambos nesta entrevista, que o seu autor respondeu pelo correio electrónico. “Em geral”, diz ele, “a minha motivação essencial, em qualquer tipo de escrita, é a pesquisa, a aquisição de conhecimento, a procura da precisão, o esclarecimento de feitos e a expressão das cousas da minha contorna, as que ficam perto de mim, fazendo-o da maneira o menos convencional possível”. Com um estilo moi particular do que também falamos nesta conversa.
Ricardo Gurriarán fez a crônica de ensaio mais conhecida de 1968 em Santiago. O que ti propões em ‘1968’ é uma crônica poética não só da Galiza, mas dum movimento que atravessou diferentes partes do mundo. Como surge '1968' e qual o papel da memória nela?
‘1968’ apareceu como aparecem todas as cousas neste mundo: da relação entre a realidade e a imagem que cada quem tem dessa realidade, da relação entre a contorna física e social, objetiva, e a nossa própria subjetividade, quer dizer, da fusão entre os mundos experimentados e o imaginário. Neste sentido, como podes supor, jogam um papel basilar as lembranças, e portanto a memória, uma vez que elas são o material direto sobre o qual agir.
E aqui penso que cumpre salientar o processo de recriação que a passagem do tempo impõe, ainda que não o desejemos. A memória, gosto lembrá-lo, é seletiva —lembramos o que achamos de maior interesse— mas também re-construtiva —o que lembramos é o que ocorreu depois de tê-lo submetido a um processo de re-criação—. Por isso, é o meu ponto de vista, acho que, como a vingança, as melhores evocações são aquelas que se servem frias. No caso de ‘1968’ o processo de arrefecimento durou quase meio século.
No limiar do livro, Álvarez Cáccamo ressalta que a principal novidade deste livro, na tua trajetória poética, é o registro da verbalização da intimidade. Concordas com esta idéia? Em que medida?
Não é fácil, do meu ponto de vista, que um autor, ou autora, opine sobre o seu próprio trabalho e, no meu caso, especialmente. Dito isto, e tentando dar resposta à tua pergunta direi que é possível que Cáccamo tenha razão. Acho que, à hora de julgar a minha poesia, existiu sempre um ponto de vista da crítica —com exceções, como é lógico— segundo a qual a minha escrita poética se caracterizava pola presença do elemento mítico, pola frieza e pola opacidade. Não vou negar que eu faça uma proposta que —para além das suas bondades ou maldades literárias— tem o seu grau de dificuldade. Tudo neste mundo é difícil, lembra-nos J. L. Borges e eu escrevo como escrevo, não sei fazê-lo doutra forma. Mas também penso que essa escrita, na que acredito, colhida no seu conjunto, é, também, profundamente autobiográfica, materialista, no bom sentido do termo, e ancorada no mundo real.
“Provavelmente o que acontece em ‘1968’ é que todo o texto, sem exceção, procede da experiência direta vivida”
Provavelmente o que acontece em ‘1968’ é que todo o texto, sem exceção, procede da experiência direta vivida. Foi vivido, em primeira pessoa, o acontecimento que para mim supus o processo da universidade naqueles anos, como o foi a guerra do Vietnã, que marcou fortemente uma parte, infelizmente escassa, das pessoas que vivemos essa época, as fotografias, que lembro, do Che Guevara morto, o seu cartaz feito desde uma foto de Alberto Korda, a da miúda vietnamita nua queimada polo napalm, de Nick Ut, a do assassinato dum guerrilheiro Vietcong, de Eddie Adams, o festival de Woodstock cujo filme vi, se mal não lembro, no Salão Teatro, a audição, uma e outra vez, da ‘Shosholoza’ de Pete Seeger, num piso da rua da Rosa, os graffitis, que ainda tenho fotografados, de Franco del Carro, o medo pessoal, o abandono amoroso, as visitas ao cemitério de Bonaval, a mulher serpente das festas da Ascensão, a música dos Creedence, de John Lee Hooker, de Zeca Afonso e de Quilapayun, escutadas centos de vezes, a feira na carvalheira de Santa Susana, o recital de Voces Ceibes no Capitol e muitas cousas mais. Esse é o material do que está composto ‘1968’, texto que tenta refletir esse caráter, como che dizia, de acontecimento, entendido este termo no seu sentido forte, no de circunstância que interrompe o devir cotiá, que interrompe a política e gera um novo rumo, uma nova perspectiva das cousas.
Assim que o livro começa, aparece uma referência ao Vietnã, seguida por um poema no que se encontram a Guerra do Vietnã, o 68 de Santiago, o assassinato de estudantes em Tlatelolco, (México), o 68 de Paris, a primavera de Praga, a luta da Baader-Meinhof na Alemanha ou os assassinatos do Che e Luther King. E esse procedimento de colagem, de acumulação (quase sem pontos, muitas vezes), de encontro de vários fatos análogos mais ou menos simultâneos, repete-se em todo o poemário, como já estava nos teus livros anteriores. É, de fato, uma das marcas da tua poesia. Saberias explicar por quê?
Na resposta que lhe acabo de dar à tua anterior pergunta mencionei um termo, materialista, que queria esclarecer, mas que (tenho esta cabeçinha ...) me esqueceu de fazê-lo. Este processo que, certeiramente, sinalas como de colagem corresponde a uma intencionalidade consciente, e desculpa-me a redundância, porque se é intencional é consciente. Essa intenção quer ser a posta em cena dum vetor, seja este o que for, que seja comum a toda a Humanidade. No caso que citas (Vietnã, México, Alemanha, Bolívia, etc.) trata-se de pôr de manifesto que a luta contra a injustiça é algo global, algo que se produz onde seja que exista a injustiça.
“Trata-se de pôr de manifesto que a luta contra a injustiça é algo global, algo que se produz onde seja que exista a injustiça”
O mesmo poderia ser a existência do amor ou a luta pola conservação do planeta, feitos universais que, mediante um procedimento que quase se poderia dizer dialético, tento apresentar baixo o que efetivamente são, processos globais. Isso é o que sugerem referências ao feito de que Angela Davis caminhe pola rua de Entremuros, que o alarido de Cuauhtémoc ecoe na praça do Toural ou que a face de Guevara se enxergue na carvalheira de Santa Susana. Nesta mesma linha encontra-se o emprego dos topónimos, que já aparecem, de maneira balbuciante, em ‘Lideiras entre a paisagem’, do ano 1979. Todos estes procedimentos que, como che dizia, tentam ser de caráter dialético, estabelecem uma relação entre o Particular, o Nós a nossa Singularidade, e o Universal, querendo salientar ao tempo a nossa pertença à Humanidade, mas também a nossa especificidade e o nosso contributo à existência da Totalidade.
Há hendecassílabos e alexandrinos —como nos teus livros anteriores, verso livre, prosa poética, prosa perto do ensaio ... E uma disposição de poemas que combina a data — como se fosse um diário— com a formação de séries. Como achaste essa estrutura? Algum motivo especial para a preferência por hendecassílabos e alexandrinos?
Em realidade essa estrutura à que te referes, responde a um desejo de solucionar determinadas questões. Em primeiro lugar, a de reconduzir, entre aspas, redefinir o tempo. Ainda que o livro leva por título ‘1968’, verdadeiramente a sua temática abrange vários anos, os da minha estância como estudante em Compostela. É certo que alguns eventos notáveis pertencem estritamente a este ano, como, por exemplo, a morte de Martin Luther King, a luta contra o encoro de Castrelo de Minho, a ofensiva do Tet desenvolvida polo FNL em Vietnã, o massacre de Tlatelolco ou a morte do torturador Melitón Manzanas.
Mas outros são anteriores, por exemplo o assassinato de Ernesto Guevara, ou posteriores, como o festival de Woodstock, e mesmo existem alguns que, pertencendo à paisagem compostelã ou a outras mais amplas, se alongam no tempo sem terem data fixa, como a visão das Marias, a lembrança de Eduardo —“o judeu”, o livreiro da Rua do Vilar— a repressão franquista ou as minhas visitas, nas noites sem chuva, à praça da Quintana. Como já tenho sublinhado, o título do livro deveria apontar em direção a algo como ‘Tempo do 68’ ou semelhantes, porque desta maneira seria mais fiel ao seu conteúdo.
Mas considerei que ‘1968’ tinha uma claridade da que outras fórmulas adoeciam, para além de afastar-se de títulos como ‘Tempo de silêncio’ de Luis Martin Santos ou ‘Tempo de Compostela’, de Salvador Garcia-Bodaño. Optei, polo tanto por uma fórmula que, com efeito, condensa os acontecimentos de vários anos num único, 1968, que ademais apresenta a vantagem de possuir uma pegada histórica e mítica importante e essa, chamemos-lhe, condensação poderia refletir-se numa estrutura que lembrasse um diário e que tivesse a duração de um ano ordenada cronologicamente.
“No que se refere ao emprego de hendecassílabos e alexandrinos, trata-se de metros clássicos, mui utilizados, dos que gosto especialmente, nos que me acho cómodo”
E, em segundo lugar, essas datas procuravam a ancoragem de feitos à sua estrita temporalidade, de tal maneira que o poema do 4 de abril corresponde, justamente, a data do assassinato de Luther King, o 25 de julho ao dia de 1968 que o nacionalismo político galego pendurara uma faixa com a reivindicação nacional na Alameda, o 11 de agosto ao dia que segue à morte do membro da CIA Dan Mitrione polos Tupamaros ou o 3 de dezembro (neste caso de 1970) ao fechamento na catedral, a mesma data que a ditadura começara o processo de Burgos contra militantes independentistas bascos.
Outros textos, além de data, levam um título relacionado com o seu conteúdo. No que se refere ao emprego de hendecassílabos e alexandrinos, trata-se de metros clássicos, mui utilizados, dos que gosto especialmente, nos que me acho cómodo e que, depois de anos de exercício da poesia, quase posso dizer que cheguei a interiorizar e que, do meu ponto de vista, outorgam-lhe ao texto um ritmo que acho satisfatório.
Nos poemas mais diretamente biográficos, aqueles que reconstroem as tuas lembranças estudantis em Santiago, há alguns personagens que são muito repetidos: da Voz Afrautada aos representantes da repressão, naquel tempo em que muitas vezes nos diziam que a repressão já era uma coisa branda. Queres falar sobre eles?
Efetivamente há menções específicas aos personagens chave do franquismo, como é o caso da Voz Afrautada, óbvia referência ao ditador, ao tempo que contem, igualmente, alusões aos colaboradores do regime, quer importantes —como o reitor Garcia Garrido ou o decano de Ciências, Joaquin Ocón, dous personagens solidários com a repressão— quer secundários, como o bedel-policia Zabala, sobre o que se ironiza comparando-o com Lord Nelson, por mor do uniforme de fasquia militar na sua versão marinha que Zabala vestia em dias solenes o qual poderia fazer lembrar o almirante britânico. O uniforme, por dizê-lo em palavras de hoje, era absolutamente patético e faria-nos alucinar em cores.
“A repressão, por suposto, não era uma cousa branda, senão um dispositivo que se ia avultando na mesma medida que cresciam os movimentos de protesta ou reivindicativos”
E a repressão, por suposto, não era uma cousa branda, senão um dispositivo que se ia avultando na mesma medida que cresciam os movimentos de protesta ou reivindicativos. A prova está nas pessoas às que se lhes abriu expediente a começos do curso 1968-69, que foram expulsas da universidade de Santiago ou que se viram na situação, por culpa duma repressão indireta, levada através da própria universidade, como foi o caso do tristemente célebre departamento de Engenharia Química, de terem que adiar o final das suas carreiras durante longos anos. Isto por me cingir só ao âmbito universitário, porque em outros casos, pensemos em Ferrol, teríamos de falar já especificamente de mortes.
Outra cousa é o “relato”, a versão que temos daqueles tempos, relato construído desde o Poder que querem transmitir a mensagem de que a ditadura era nos últimos tempos, em realidade, uma ditabranda, da mesma maneira que se tentou disfarçar de “transição modelo” o que foi um processo com centos de mortos causados pola urdume de forças de segurança de Estado e polas bandas para-policiais que nunca recebeu uma soa condena.
O livro tem muito de retrato do Terror, e em geral da violência, da época. Mas de certa forma também se conecta com a atual violência das "democracias" capitalistas. Em que sentido este livro também fala da violência presente?
Claro, porque a época era violenta e essa violência, bem como o medo que a violência gerava, está refletida, ainda que muitas vezes seja de maneira indireta, através da peneira literária, nas páginas do texto. Não sei se dizer que a violência está inserida no gênero humano até a raiz, mas acredito que qualquer sociedade arranjada em camadas e categorizada em função da classe social à que cada quem pertence, gera inevitavelmente desigualdade. Essa desigualdade gera, pola sua vez, protestos nos setores sociais mais desfavorecidos e nos mais conscientes que, por vezes, não são precisamente os mais desfavorecidos.
“Não sei se dizer que a violência está inserida no gênero humano até a raiz, mas acredito que qualquer sociedade arranjada em camadas e categorizada em função da classe social à que cada quem pertence, gera inevitavelmente desigualdade”
O poder, em geral o Estado, que se atribui gratuitamente o monopólio da violência, em troca de reagir escutando esses protestos, analisando o que neles há de justiça, reage com violência, o qual agrava o problema, gera mais frustração e afasta a solução. Neste sentido, as atuais democracias, que eu prefiro chamar “sistemas de liberdades formais”, com “formais” sublinhado, respondem perfeitamente a este esquema, utilizando intermitentemente, quando se precisar, a violência física e de maneira ininterrupta o que poderíamos qualificar, usando a nomenclatura do poder, “violência de baixa intensidade”, concretizada na pressão constante dos “meios de dominação”, não de comunicação, porque o que se diz comunicar, pouco comunicam, limitando-se, em qualquer caso e atendendo à sua própria definição, a porem em circulação o que é comum.
Além da constante construção de “relatos” antidemocráticos, os meios de dominação de massas falsificam a realidade com manipulações, mentiras e após-verdades. Neste sentido a série “A voz mais alta / The loudest voice”, reflete magnificamente, através da análise da figura de Roger Ailes, que foi agressor sexual e diretor de Fox News —carregos que desenvolvia simultaneamente com grande solvência— o processo posto em marcha pola direita “democrática” norte-americana para se perpetuar no poder e torcer as vontades, como demonstra paradigmaticamente hoje o presidente Donald Trump.
Como em ‘Palavras a Espártaco’, existem alguns conceitos que tornam, pondo-os em maiúsculas, constituindo-se em símbolos. Como o Tempo, o Anjo ... Servem para apoiar o relato de eventos políticos —o movimento social contra o terror, por exemplo— mas muitas vezes adquirem um significado que, para mim, é existencial (não existencialista): a passagem do tempo, a angústia, a consciência da morte ... Existe algo disso no poemário? (Eu também acho que há ai um significado individual e coletivo, talvez polo rumo tomado por aquela geração depois de 68, ou melhor, polo mundo depois de 68 ...)
Com efeito, Montse, assim é. Porque no texto, como antes sinalei, convivem aspetos que pertencem à esfera da objetividade, da política, da sociedade, feitos de cuja existência real temos conhecimento preciso, lugares, datas concretas, protagonistas com nome e apelidos, conjunturas que, por dizê-lo com as palavras do físico irlandês do XIX, Lord Kelvin, podemos contar, medir ou pesar. E, ao pé deles, existem outras circunstâncias que, sendo igualmente reais, pertencem ao território do pessoal afetivo, do intangível e são, portanto, projetadas através da subjetividade que precisam a articulação simbólica ou imaginária: o Tempo, o Anjo, o Clamor, o Silêncio, o Ocaso, o Horror.
“Não podemos contar, medir o pesar a intensidade do ódio, o amor, o medo, a amizade, a angúria, uma cheia de variáveis, como ti dizes, existenciais que só se podem deduzir por métodos indiretos, sendo passíveis de sofrerem erros de apreciação”
Não podemos contar, medir o pesar a intensidade do ódio, o amor, o medo, a amizade, a angúria, uma cheia de variáveis, como ti dizes, existenciais que só se podem deduzir por métodos indiretos, sendo passíveis de sofrerem erros de apreciação. Neste sentido, como che dizia antes, acham-se no livro as relações entre o coletivo e o pessoal, entre a reflexão em exterioridade e em interioridade, autobiográfica.
Não vejo, porém, como ti apontas, que a relação entre o individual e o coletivo tenha a ver com os rumos posteriores tomados polas pessoas daquela “geração” (utilizamos este termo para nos entender) nomeadamente porque a ficção que constitui ‘1968’ está escrita “como se” o Autor estivesse a viver, efetivamente, em 1968: o tempo é do presente (do “presente” de 1.968, entende-me) e fala-se dos acontecimentos que acontecem “ontem”, onde “os amores espargem-se”, “a Morte dorme o sonho [e] “moribunda, desvirgina cadáveres ou assassina espectros”, “o camarada presidente resume a Longa Marcha”, “nos valados emergem alfabetos herméticos” e assim por diante, com o verbo esmagadoramente sinalando o presente. Outra cousa é a avaliação que seja possível fazer das trajetórias posteriores dos membros dessa “geração”, em geral marcadas pola deserção, o abandono ou o interesse pessoal, mais isso já é farinha doutro saco.
Há bastante no livro da crônica da aprendizagem literária, que também era política. E o próprio diálogo que o livro estabelece com múltiplas referências culturais achega-o a isso que tendemos a entender como "culturalismo". Que pensas ti do adjetivo "culturalista" aplicado à geração de autores dos anos 80 e, em particular, à tua própria poesia?
Pois verdadeiramente, pões-me numa situação bem difícil, porque não sei que contestar. E não o sei porque estou profundamente confuso com o próprio emprego do termo “culturalismo”. Mas vejo-me na obriga de contestar a tua pergunta e vou tentar fazê-lo, provavelmente cometendo graves erros conceituais. Primeiramente, penso que haveria que pôr em quarentena o assunto de “geração” que, teimo, utilizamos para nos entender e para definir o conjunto de pessoas que começam a publicar a fins da década dos 70 e começos dos 80.
Porque, imos ver, que tem a ver Forcadela com Pexegueiro? Que tenho eu a ver com Ramiro Fonte?. Penso que a própria utilização do termo “culturalista” contem uma certa quota pejorativa, depreciativa, da mesma maneira que a tem o qualificativo de “venezianos” ou “barroquizantes” querendo, imagino eu, outorgar-lhe aos membros desse coletivo atitudes que têm a ver com o amaneirado, o esnobe ou a afetação. E agora que estamos a falar deste ano e com relação a isto, não seria mais preciso falar desse grupo de poetas como “geração do 68”?.
“Penso que a própria utilização do termo “culturalista” contem uma certa quota pejorativa, depreciativa, da mesma maneira que a tem o qualificativo de “venezianos” ou “barroquizantes”
Por outra parte, acho que as referências cultas são algo inerente a uma parte importante da poesia na que incluo, naturalmente, a poesia galega. Porque vejamos: Pondal é um poeta culto ou culturalista? E Álvaro Cunqueiro? A mim sempre me surpreendeu que a geração galega dos 80 fosse qualificada de “culturalista” e poetas da Europa ou América com uma matéria cultural e uns referentes culturais esmagadores na sua obra nunca se lhes qualificasse com esse termo. Seja como for, insisto, este é um tema que a mim particularmente nunca me interessou porque não o cheguei a entender mui bem, do que, como conseqüência, conheço pouco e do que, como che dizia, não tenho uma opinião demasiado formada porque acho que é, essencialmente, um debate nominalista.
Um dos elementos com os quais o livro trabalha é, claro, a História. Há uma grande quantidade de dados a esse respeito. No final, há um agradecimento a Milagros Becerra por permitir que ti consultasses o seu arquivo pessoal. Mas suponho que ti terás utilizado muitas outras fontes para lembrar feitos históricos. Quais são?
Bem, eu tenho, ignoro o porquê, renome de ser pessoa com memória prodigiosa, quando a verdade é que a minha memória, sem chegar a ser de peixe, acha-se infinitamente mais perto da vulgaridade que do prodígio. O único arquivo sistemático que li do 68 foi o de Milagros Becerra, que compartilhara aqueles momentos de há mais de meio século, e a quem nunca agradecerei bastante a generosidade de pôr ao meu dispor o seu arquivo, magnífico por certo, que contem as folhas informativas do estudantado de Ciências. Polo demais, não acudi praticamente a nenhuma documentação, tirando, como é lógico, as datas concretas.
“O processo de documentação que segui posso dizer que foi mínimo, porque preferi que a minha memória, seletiva como todas, lembrasse o que puder”
O processo de documentação que segui posso dizer que foi mínimo, porque preferi que a minha memória, seletiva como todas, lembrasse o que puder. Como compreenderás, vários anos de militância política, de estada numa cidade, de vivências pessoais, de ilusões e medos, fornecem, por pouca memória que um tenha, matéria de abondo para escrever um livro de poemas. Por outra parte, e esta é uma opção pessoal, tão discutível como qualquer outra, não sou partidário, nem em poesia nem em narrativa, de grande trabalho de registro e inventariado de circunstâncias e feitos que, em muitas ocasiões, ocultam a literatura substituindo-a polo arquivo, o documento ou a simples redação.
Essa mesma posição é com a que enfrentei o relato curto, como no caso de ‘Os xenerais de África’ ou a novela, quer ‘Os nomes da morte’, quer ‘Os espellos do tempo’. Ainda partindo, como che dizia, da minha escassa capacidade de resgate do passado e as lembranças do mesmo, confio que a minha mente não me atraiçoe até o extremo de esquecer dados essenciais. Depois, sobre o lembrado, acrescentando ficção, exageros ou, como sinala Álvarez Cáccamo no seu ajuizado Prólogo a ‘1968’, procedendo com ferramentas literárias que envolvem a metáfora, a alegoria, a colagem a que ti te referias, a identificação com outras figuras da literatura como Gregor Samsa, a invenção e transposição de circunstâncias ou lugares (o texto do ‘26 de setembro’ em realidade é uma anedota referida polo meu amigo da infância, César Sáenz, ocorrida longe de Compostela), ou a acumulação é como estão construídos os meus textos.
“O acontecimento de 1968 mudou radicalmente a minha visão do mundo e uma mudança tão radical constitui por ela própria, cinqüenta anos depois, quando se produziu um processo de decantação, de mitificação, de fascínio, material suficiente para ser convertido em matéria poética”
Poderá-che parecer surpreendente e, se calhar, estás a pensar que o que levo dito não faz mais que dar-lhe a razão a quem acredita na minha excelente memória, mais devo dizer que o acontecimento de 1968 mudou radicalmente a minha visão do mundo e uma mudança tão radical constitui por ela própria, cinqüenta anos depois, quando se produziu um processo de decantação, de mitificação, de fascínio, material suficiente para ser convertido em matéria poética. Esta, como tenho afirmado, é a minha conceição da literatura e nela acredito. Não negarei que muitas destas propostas têm a ver com a imagem fotográfica.
De certos eventos ocorridos há meio século guardo apenas uma imagem, como se for uma instantânea, por dizê-lo em linguagem coloquial. Consciente, como assevera um teórico da imagem, Jacques Aumont, de que não há imagem sem linguagem, depois de constatar que o número de palavras escritas por mim só sobre fotografia deve andar ao pé do meio milhão, reconheço que adquiri algum engenho para converter uma imagem em texto, nomeadamente se essa imagem foi vivida por mim e ajudado, claro está, por isso que chamamos o “ofício”
Diz Xabier Paz no limiar de ‘Palavras a Espártaco’ que as túas 'obsessões' poéticas são a reconstrução do mito, a passagem do tempo, a injustiça inerente do poder, a rebelião como um correlato disso, e a morte. Todos eles podem-se atopar em ‘1968’, que foi publicado alguns anos depois. Concordas que estas são as tuas "obsessões" poéticas?
“Entre estes aspetos estão o que chamaria a preocupação pola língua empregada a qual vejo, no panorama atual, profundamente maltratada, até o ponto de existirem textos que se visam como se fossem escritos em espanhol”
Conviria precisar aqui que com Xabier Paz, amigo pessoal a dia de hoje, iniciei a amizade justamente nos tempos, já afastados, de 1968. Foi Xabier quem me animou a retomar a escrita, que eu começara à idade de 15 anos e abandonara por motivos que não são relevantes neste momento. Os dous, unidos pola militância poética e por outras, trocávamos poemas, entre outros lugares, num bar avarento da Avenida de Lugo, onde hoje toma o nome de Romero Donallo. Quero dizer com isto que Xabier Paz é uma das pessoas que melhor conhecem a minha escrita e as minhas preocupações —que prefiro a ‘obsessões’— poéticas e vitais e, nesse sentido, acho que tem muita razão, o mesmo que acho a lucidez do Limiar a que te referes.
Eu completaria a descrição acrescentando os aspectos formais aos que, em parte, há pouco me referi. Entre estes aspetos estão o que chamaria a preocupação pola língua empregada a qual vejo, no panorama atual, profundamente maltratada, até o ponto de existirem textos que se visam como se fossem escritos em espanhol e, depois, passados polas goelas dum tradutor automático de má qualidade, aspetos com os que a norma atual colabora eficazmente. Em segundo lugar, a busca de precisão conceitual, na esteira do pensamento de Christa Wolf ou do enunciado há já séculos por Confucio no sentido da necessidade de as palavras enunciarem com fidelidade o nosso pensamento.
“A literatura é, também, e isso é preciso tê-lo mui presente, uma questão formal ou por dizê-lo em palavras de quem temos falado nesta conversa, Pepe Cáccamo, uma questão de estilo”
A literatura é, também, e isso é preciso tê-lo mui presente, uma questão formal ou por dizê-lo em palavras de quem temos falado nesta conversa, Pepe Cáccamo, uma questão de estilo. Depois há algo que tem a ver com o ritmo da frase, seja poema em verso, seja em prosa, seja prosa poética, seja narração. O ritmo é uma questão essencial no texto literário. E, finalmente, para não te aborrecer, a preferência pola frase longa, que se contorce sobre si própria, com numerosas subordinadas, com um discurso que apresenta a fasquia do que não tem fim e que —intuo— aprendi da frase caudalosa de certa literatura alemã e dos vagarosos e intermináveis rodeios dos nossos camponeses —cujo tempo não se mede nas unidades habituais— e que, em certa medida, reproduz a minha própria maneira de falar, todo isso dirigido à consecução duma unidade textual compacta.
Denunciaras um problema de censura, por uma questão de normativa, em relação a 'Palavras a Espártaco'. Como foi?
Eu apresentara o meu livro ‘Palavras a Espártaco’ ao prémio Victoriano Taibo, escrito na norma do galego internacional, dado que as Bases do concurso não especificavam, como ocorre noutros prémios, qualquer normativa concreta. Dá-se a circunstância que a mim me une uma grande amizade, que se alastra ao longo de quarenta anos, com a pessoa que, na altura, dirigia o Instituto de Estudos Miñoráns, entidade que convocava o prémio.
“Do meu ponto de vista os problemas com que nos enfrentamos na questão normativa são dous: um de natureza democrática e ética e outro de feitio hipócrita”
Polas casualidades que a vida nos depara eu, o mesmo dia do falho, combinara com esta pessoa um encontro para falar, ainda que não estou certo, de alguma questão relacionada, penso, com uma palestra sobre fotografia no IEM. Na conversa, comentara-me o problema ao que se tinha que enfrentar o Instituto, já que o prémio (e agora penso que cito literalmente) “o ganhara uma pessoa com uma obra escrita em português (sic)”. Na seguinte convocatória o IEM mudou as Bases do prémio para impedir de maneira estrita a participação de qualquer pessoa que não seguisse a norma ILG-RAG. Eu procedi à denúncia publica num artigo publicado na imprensa digital.
Do meu ponto de vista os problemas com que nos enfrentamos na questão normativa são dous: um de natureza democrática e ética e outro de feitio hipócrita. O primeiro envolve o desprezo duma sentença do Tribunal Superior de Justiça de Galiza na que se especifica que ninguém pode ser discriminado pola grafia que emprega, cousa que não cumprem setores que repetem a eito que a lei há que cumpri-la. O segundo é, como não há muito escrevi na imprensa, que membros notabilíssimos de importantes editoriais galegas ou integrantes da própria Academia Galega pensam que a adoção da norma internacional só acarretaria vantagens para o galego, chegando a dizer nalgum caso, literalmente, que “a perspectiva reintegracionista tem razão”.
“Acho que a proposta bi-normativista é, de todas as possíveis, a saída mais democrática, aberta e que menos prejudica”
Eu não vou revelar nunca os nomes das pessoas às que me refiro porque as suas opiniões são o resultado de conversas privadas, mas se essas pessoas atuarem em conseqüência, fariam —penso eu— um grande favor a um idioma acossado, sem por isso prejudicarem o mais mínimo a norma atual que, do meu ponto de vista, trabalha incansavelmente para achegar o galego ao espanhol. Nunca vem mal a leitura do clássico de John Stuart Mill no que atinge a tolerância. Nesse sentido, acho que a proposta bi-normativista é, de todas as possíveis, a saída mais democrática, aberta e que menos prejudica. Que seja o tempo e o conjunto de setores implicados quem decidam o futuro da norma escrita do galego.
"Suicídas" mortos pola falta de morada na Grécia, imigrantes também assassinados polo abandono no deserto ou no mar, moradores de rua em Vigo, pessoas expulsas das suas casas polos bancos... Os protagonistas de 'Palavras a Espártaco' são os deserdados, os subordinados. E os deserdados dos titulares da imprensa atual (o livro é de 2015, mas a situação é a mesma), aparecem nos poemas ao lado dos heróis e mártires da História e da mitologia, da antiguidade até hoje. Suponho que é uma maneira de dizer que a exploração, o sofrimento e o abuso de poder são os mesmos, mália pensarmos que vivemos num mundo "civilizado". É assim? Por que essas conexões entre a atualidade, a História ou a mitologia?
Com efeito, como antes sinalei, qualquer sociedade disposta em camadas gera diferenças e, depois, sofrimento, depauperação e, no limite, morte. Embora o Poder e os seus os alto-falantes dizerem que a crise se acha em caminho de ser ultrapassada, em realidade as diferenças sociais aumentam e o projeto do capitalismo é instalar na sociedade uma crise contínua porque com a mesma, como se pode ver, os benefícios da banca e outros setores seguem a medrar.
“Embora o Poder e os seus os alto-falantes dizerem que a crise se acha em caminho de ser ultrapassada, em realidade as diferenças sociais aumentam”
Sobre a convivência no mesmo texto de heróis e mártires da História e da mitologia, não deixa de ter interesse o feito de a crise atual nascer na Grécia, nesse lugar onde, segundo afirma o lugar comum, nasceu também a nossa civilização. Neste sentido, resultava tentador e, acho, mesmo didático estabelecer paralelismos no que a heroísmo e a sofrimento se refere entre os antigos heróis, e heroínas, gregos e os atuais. A Grécia, um pais pequeno, combateu, derrotou e foi derrotado polo Persa e os topónimos de Maratona, Salamina ou as Termópilas ficam na história e, dum ponto de vista mítico, poético, é possível compararmos a Grécia atual enfrentada à troika e à União Européia e haverá topónimos, como a Praça Syntagma que ficarão para sempre na memória da resistência e do enfrentamento com os poderosos.
A Grécia clássica forneceu-nos de heróis incontestáveis, como Ulisses, Penélope ou Aquiles, mas também de personagens caracterizados pola sua, praticamente infinda, capacidade de sofrimento, na esteira dos heróis que atualizam cada dia a dor, como são os casos paradigmáticos de Prometeu ou Sísifo. Todas estas circunstâncias operavam em prol de estabelecer relações entre a antiguidade e a atualidade gregas. No que atinge a Espártaco, a sua figura, representando os escravos, os deserdados dos que ti falavas, que ousa desafiar a mais potente maquinaria bélica na altura, já alcançara valores míticos, em primeiro lugar pola reconstrução biográfica feita —no cárcere, paradoxos do destino— por Howard Fast e, mais tarde, no cinema, por Stanley Kubrik, para além da projeção da sua figura em distintas pólas da arte, como a música ou a escultura, ou da política, de cujo exemplo a Liga Espartaquista é um caso de renome.
Espártaco é neste livro símbolo da rebelião dos deserdados. Em ‘1968’ é o movimento social antifascista a força que se opõe ao Mal, que em "Palavras a Espártaco" também aparece simbolizado: o Rata, o Vampiro ... Nesse sentido, mesmo às vezes pode até parecer que "Palavras a Espártaco" é um livro mais otimista, no sentido de confiança no potencial da Rebelião, que '1968'…. Ou talvez seja a minha impressão, suponho que por causa das atmosferas opressivas, muitas vezes perto do pesadelo, que recria '1968'. De qualquer forma, quiseste transmitir uma sensação de confiança na revolta?
Começarei por isto último: partindo, como argumento preliminar, que, para mim, a forma é a que articula o meu compromisso ético com a literatura, eu sempre tento transmitir na minha escrita, seja esta a que for, poética, narrativa, ensaística, um conjunto de idéias, que mudam de intensidade ou importância segundo os casos e entre as quais sobranceiam: a necessidade de confiança nas próprias forças, a determinação na procura dum objetivo e, como conseqüência deste, a posta em prática do que se poderia chamar a ética da não cessão e a possibilidade, sempre, de vitória num confronto, seja este do tipo que for.
“Penso que a força da gente é infinita e que se não se concretiza numa sociedade mais livre, mais justa ou mais igualitária é quer porque a coletividade não está convencida deste feito, quer porque os indivíduos põem por diante princípios egoístas”
Penso que a força da gente é infinita e que se não se concretiza numa sociedade mais livre, mais justa ou mais igualitária é quer porque a coletividade não está convencida deste feito, quer porque os indivíduos põem por diante princípios egoístas e aplicam o célebre axioma de “o que venha detrás que arree”. Dito isto, tenho de reconhecer que os dous títulos dos que me falas, ‘Palavras a Espártaco’ e ‘1968’ são mui diferentes na sua formulação por motivos não tanto de texto como de contexto.
“Palavras a Espártaco’ é, essencialmente, um livro sobre a crise, a dor e a morte causadas por assassinos de luva branca e, polo tanto, reflete sobre a contemporaneidade, sobre o instante no que se está escrevendo.”
O primeiro é, essencialmente, um livro sobre a crise, a dor e a morte causadas por assassinos de luva branca e, polo tanto, reflete sobre a contemporaneidade, sobre o instante no que se está escrevendo. Um livro, segundo comentávamos há pouco, que começa, não por acaso, em Grécia, no desfiladeiro das Termópilas e termina avisando que o “Persa ameaça de novo” enquanto Espártaco, o fio condutor do discurso poético, caminha entre corredoiras, carvalheiras, peliqueiros, castros ou cruzeiros, quer dizer, sem sombra de dúvida, entre as terras da Galiza. É, como digo, essencialmente um texto, como se sinala no posfácio, norteado pola ira, a raiva, o ódio e o desprezo, que opta, formalmente, polo verso clássico alexandrino que se mantém da primeira à derradeira linha, querendo fornecer uma idéia de unidade, a qual se combina com a de universalidade, alicerçada nos quase 250 topónimos, de distintas geografias e épocas, que aparecem no texto. Um texto cuja redação demorou pouco tempo, uns sete meses, de não demasiada extensão, umas 6.000 palavras e de não excessiva complexidade.
Pola sua parte, ‘1968’ é um texto que rumina (emprego este termo intencionadamente) e debulha feitos ocorridos há meio século, em plena ditadura, feitos que vivera quem escreve e que operaram uma transformação profunda no seu interior e que se redigem, isto é importante, desde o passado que é, naquela altura, presente. Trata-se dum texto que combina poemas “strictu sensu” com poemas em prosa e textos estritamente narrativos, onde se superpõem escritas que lembram crónicas com outras de natureza lírica e mesmo algumas de feição quase filosófica que, por vezes, explicam distintas unidades do próprio texto, num exercício metapoético, um texto cuja redação demora mais de três anos e cuja extensão se situa por volta das 20.000 palavras. Para além do dito, existem as notas de rodapé que enviam a textos originais, fotografias, reportagens fílmicos, fragmentos de filmes, citações variadas, todo o qual converte ‘1968’ num texto mais complexo, que alguém caracterizou de ‘apos-moderno’.
Não sei se ‘Palavras a Espártaco’ é um livro mais otimista. Imagino que isso dependerá das distintas subjetividades quando se achegarem à sua leitura. Estou de acordo contigo que existem em ‘1968’ atmosferas opressivas, perto do pesadelo, concretizadas em situações sonolentas como aquelas onde o autor se identifica com personagens de Kafka, ou aquelas noites nas que espera, com angústia, a visita da Brigada Político-Social franquista ou quando, concretizada já a sua detenção, se acha numa cela, provida duma janelinha que periodicamente os policias abrem, fazendo que se sinta observado por olhos entomólogos. A questão basilar é que a ditadura construiu essa atmosfera de Terror, concebida, naturalmente, para as pessoas que se opunham a ela.
Também comenta Xabier Paz que talvez em ‘Palavras a Espártaco’ quisesses engadir claridade com respeito aos poemários anteriores. Nos versos há monarcas caçando elefantes, dignitários a passearem em iates com narcotraficantes, corvos do Vaticano, curas violadores, presidentes espanhóis criadores de guerras ... Assim, o mal é um símbolo, mas também é incorporado por personagens muito reconhecíveis. Foi uma tentativa de buscar claridade, ou não necessariamente?
Como che comentava antes, ‘Palavras a Espártaco’ é um texto que nasce do ódio, da ira e, em certo modo, da urgência e da necessidade expressiva criada por um período limite, por uma era que, do meu ponto de vista, mostra o esgotamento económico, político, social, cultural, ético e estético do capitalismo, sem olharmos uma perspectiva de mudança, de substituição do modelo. Isto último para mim não constitui obsessão nenhuma, porque os trocos, historicamente, não avisam, aparecem sempre sem serem esperados e são de qualquer natureza, agás a esperável.
“Palavras a Espártaco’ é um texto que nasce do ódio, da ira e, em certo modo, da urgência e da necessidade expressiva criada por um período limite”
Se me deixas fazer uma parêntese, mais bem o que a mim me preocupa é a posição duma fração mui ampla da esquerda que, até onde eu chego a ver, renunciou a reconsiderar a situação atual do capitalismo e a procurar, dentro da tradição histórica e de luta da própria esquerda, soluções para uma sociedade que mudou de maneira radical nos últimos cinqüenta anos e para a que, porém, seguem a se formular propostas antigas de mui escassa efetividade. Neste sentido acho de grande interesse um artigo de há algum tempo de Xavier Campos que recomendava a leitura do livro de G. Lakoff, “Politica moral”.
Independentemente da surpresa que hoje em dia causa que um político recomende a leitura dum texto político (cousa que deveria entrar no território do habitual) fiquei impressionado pola referência a Lakoff. Com efeito, Lakoff é um lingüista (a propósito, com um livro seu traduzido ao galego, “Non penses nun elefante”) que nos lembra feitos de importância: primeiro, como esse amplo complexo movimento norte-americano que vai da direita à extrema direita e que abrange do Partido Republicano á National Rifle Association e do Tea Party ao Ku Klux Klan, compreendeu, há mais de meio século, como as classes populares e trabalhadoras agem e votam, numa grande medida, em contra dos seus próprios interesses e, segundo, como fatores emocionais como a tradição, a família ou a identidade, quer dizer os territórios simbólico e imaginário, constituem uma parte essencial da escolha e ação política destes mesmos setores.
“O que a mim me preocupa é a posição duma fração mui ampla da esquerda que, até onde eu chego a ver, renunciou a reconsiderar a situação atual do capitalismo e a procurar, dentro da tradição histórica e de luta da própria esquerda, soluções para uma sociedade que mudou de maneira radical nos últimos cinqüenta anos”
Esse pensamento, essa dedicação à construção de “relatos” que com tanta habilidade constrói a direita (porque leva meio século estudando a sua construção) não tem, do meu ponto de vista, uma resposta ajeitada desde a esquerda, cujas receitas levam sem atualização décadas. Afastei-me da tua pergunta e volvo a ela. Não é que eu desejasse engadir claridade, senão que a minha subjetividade interagindo com uma situação social na que estavam a estilhaçar muitas cousas (o livro leva um subtítulo significativo, ‘Diálogos para um tempo de fratura’) produziu um resultado que, como sinala Xabier Paz, é mais claro. Penso que isto demonstra, mais uma vez, a fusão, a solidariedade existente nos textos entre forma e conteúdo. O conteúdo pareceu exigir-me essa forma e às avessas.
Quanto à forma, em 'Palavras a Espártaco' há um claro predomínio dos versos longos construídos por acumulação, por encadeamento de estruturas sintáticas que se repetem e produzem no leitor um sentimento não só de desacougo, mas de abafamento, de angústia ... É como uma tentativa de bater no leitor para espertá-lo, por uns instantes, do consentimento da injustiça, à qual também contribui. Essa escolha desse jeito de escrita tem a ver com isso ou não?
Como che comentara antes, formalmente ‘Palavras a Espártaco’ está alicerçado sobre uma única forma métrica, o alexandrino, que percorre os quase novecentos versos que constituem o texto no qual, como ti insinuas, multiplicam-se os encavalgamentos. A permanência deste metro ao longo de todo o texto confere-lhe unidade, de tal maneira que se poderia considerar o livro um único poema no que, se desejássemos, poderíamos considerar diferentes apartados, constituídos polos distintos poemas. Esta opção também procura construir, não sei se vou ser quem de explicá-lo, um contraponto, desde a forma, ao conteúdo.
“Tentei opor a um texto profundamente político uma forma, se me permites o jogo de palavras, profundamente poética, no sentido mais clássico do termo”
Quero dizer que tentei opor a um texto profundamente político uma forma, se me permites o jogo de palavras, profundamente poética, no sentido mais clássico do termo. Certamente, esta escolha também tem as consequências que ti enuncias: a repetição da fórmula alexandrina opera como uma ladainha —o qual, ao mesmo, tempo, fornece ao texto uma maior dose de narratividade— e possivelmente faça aparecer essas sensações de desacougo, abafamento e angústia das que falas.
Mas, se voltas atrás a aqueles dias, a situação era exatamente geradora desses sentimentos nas pessoas que tivessem um mínimo de sensibilidade: suicídios diários não só na Grécia. A terceira parte do livro —Antro(to)ponímia da imolação— passa revista a uns poucos lugares onde a gente se suicidou, a milheiros, Atenas, Penhafiel, Vigo, Córdova, Basauri, Barakaldo, L’Hospitalet, Alacant, Porto Garibaldi, Torino, Nápoles, Valência, Las Palmas e muitos mais, pessoas mortas por enforcamento, por arma de fogo, esnafradas da janela para o chão, lançadas aos trilhos do comboio, eletrocutadas, carbonizadas como bonzos, enquanto Mariano Rajoy fumava charutos, Rato roubava e a Gürtel e a Púnica, a Pokemon e a Campeón iam a toda máquina. Perante esta situação, que outra cousa poderia refletir o texto?
Um texto no final do livro explica que, em face da monstruosidade do Real, manifesta-se a incapacidade da palavra, e só fica a poesia (a metáfora), para expressar a raiva. Poderia ser um resumo do que é toda a tua poesia e não só deste livro?
Tem-se dito muitas vezes que a poesia é uma forma de dizer oblíqua, um tiro por elevação, um caminho indireto, como se a poesia tentasse a cotio a subversão do enunciado “a distância mais curta entre dous pontos é a linha reta”. Valente, a quem leio com paixão desde há quase meio século, afirma que ciência e poesia são duas maneiras de operar de maneira complementária sobre a realidade, sendo, portanto, a segunda um método de conhecimento baseado, contrariamente à ciência, num caráter único, não legislável, que pesquisa sobre a fugacidade e a não repetição, que não busca o enunciado de leis.
No texto final que citas de ‘Palavras a Espártaco’ refiro-me ao Real, no sentido que Lacan dá a este termo: aquilo que se resiste a ser definido, simbolizado, representado e, com efeito, a realidade que gera este Real, que é monstruoso, só fica a possibilidade de exprimi-la por meio do poema. Isto no que atinge à situação que emerge a partir da queda de Lehman Brothers e da crise de 2008, que produz uma paisagem onde existem, num extremo, desesperação, pobreza, fome, suicídio e, no outro, seguindo a Naomi Klein e à “teoria do choque”, enriquecimento, ledice, expectativas de negócio e esbanjamento.
“Em geral, a minha motivação essencial, em qualquer tipo de escrita, é a pesquisa, a aquisição de conhecimento, a procura da precisão, o esclarecimento de feitos e a expressão das cousas da minha contorna”
Dito isto, não penso que esta perspectiva de incapacidade da Palavra esteja presente em toda a minha poesia. Penso que, polas circunstâncias que concorrem na sua gênese e das que já falamos, é em ‘Palavras a Espártaco’, onde a ira é o motor que norteia a redação, o lugar onde se manifesta com maior claridade esta questão. Em geral, a minha motivação essencial, em qualquer tipo de escrita, é a pesquisa, a aquisição de conhecimento, a procura da precisão, o esclarecimento de feitos e a expressão das cousas da minha contorna, as que ficam perto de mim, fazendo-o da maneira o menos convencional possível. Essas são as minhas intenções, ainda que ignoro até que ponto sou quem de conseguir os objetivos que me proponho.