Insólito rumor no oráculo de gelo

Ice Cube, observatorio de neutrinos © Moreno Baricevic, IceCube/NSF

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Capturar neutrinos requer audiofones de estrema sensibilidade, acordes com a exígua materialidade da partícula. A massa do neutrino nom supera a milionésima do quase imaterial electrom, carece de carga eléctrica, e move-se à velocidade próxima à da luz

A sede de conhecimento do ser humano é insaciável. Divagávamos na anterior entrada deste blogue sobre o denodado esforço empenhado em captar o imperceptível eco das ondas de frequência muito longa emitida por misteriosos pulsares nascidos do catastrófico colapso de longínquas supernovas há tempo desaparecidas.

Nesse estranho zoo de fenómenos nascidos no profundo do cosmos chamavam a nossa atençom as ondas gravitacionais de frequência muito baixa perdidas na imensidade do cosmos que abrem umha inesperada janela ao estudo das pregas que enrugam e desenrugam sem trégua o subtil tecido espaço temporal que nos acolhe.

O instrumental apromtado para auscultar as ondas gravitacionais de frequência ultra lenta é tam aparatoso como estremada é a debilidade do sinal captado: todo um macro sistema detector denominado matriz observacional formado por umha rede coordenada de observatórios num consórcio mundial: o International Pulsar Timing Array.

Mas, há no cosmos criaturas mais estranhas e esquivas ainda como o fugidio neutrino. Capturar neutrinos requer audiofones de estrema sensibilidade, acordes com a exígua materialidade da partícula. A massa do neutrino nom supera a milionésima do quase imaterial electrom, carece de carga eléctrica, e move-se à velocidade próxima à da luz. O neutrino nom parece interactuar com nada e pode atravessar impunemente qualquer corpo por massivo que ele seja. Os neutrinos, parentes próximos dos electrons, apresentam-se ademais em três variantes ou disfarces que os físicos denominam sabores: neutrino electrónico, muónico e tauónico, que ademais podem mutar entre si mediante oscilaçons comandadas polo bosom W. Todo um estranho zoo de acesso reservado aos contados arúspices da geografia quántica.

A existência do neutrino fora proposta por Wolfgang Pauli em 1930 para tentar explicar a aparente perda de matéria e energia na denominada desintegraçom β dos neutrons que descompom estes em protons e electrons segundo a equaçom:

CC-BY-SA Praza Pública

A partícula compensatória postulada para respeitar a conservaçom da massa e a energia deveria possuir umhas propriedades tam estranhas que raiavam no incrível. Umha vez mais, um postulado científico particular devinha numha nova partícula verificável certificando mais umha vez a misteriosa capacidade do cérebro para adaptar-se e compreender o mistério do cosmos. O cérebro, esse estranho instrumento fabricado com pó de estrela defuntas, revela-se capaz de explicar a essência da própria matéria da que está feito numha maravilhosa concordância harmónica preestabelecida e auto-referencial que parece desafiar a hipotética independência da consciência humana que gostamos dar por suposta.

Porém, o escorregadio neutrino hipotético acabou confirmando-se como um elemento fundamental da matéria à par do electrom, o foton e a tribo dos quarks: arriba, encanto, acima... Estamos debruçados nos fundamentos mesmos da matéria que conformam o modelo standard actualmente vigente onde palpitam os componentes fundamentais da matéria presididos por essa deidade evanescente conhecida como o bosom de Higgs, H.

Modelo estándar de partículas elementais © enriquereina.blog

A ninguém pode surpreender que a caçaria do elusivo neutrino se tenha convertido num imperativo obsessivo da física. Todo ser vivo reconhece a existência e efeitos dos fotons mas nada sabe desse fluxo etéreo e inconsistente que atravessa o universo material sem lei nem freio que vaga polo espaço. Como detectar partícula tam elusiva?

A primeira cautela ensaiada para detectá-lo foi tentar separá-lo do ruído ambiente que inunda o espectro observável mediante barreiras insuperáveis para todas as partículas que careçam de umha materialidade tam exígua e subtil como os neutrinos. As minas abandonadas a grande profundidade podem ser o observatório idóneo. Umha mina de ouro em Dakota do Sul abandonada em 2022 foi um dos lugares seleccionados1, como também a mina Mozumi na cidade de Gifu, no Japom2, objecto ambas de dispendiosas arranjos e cuidadoso equipamento para tentar obturar ao máximo qualquer sinal competidor que ali pudesse chegar. Receptáculos semelhantes afundados nos gelos eternos era outra possibilidade altamente prometedora por quanto o frio extremo freia o movimento molecular. No zero absoluto, - 273,15 ºC, congela-se todo movimento como sabemos. Meios extraordinários aprontados para tentar apreijar o Santo Graal do mistério do Cosmos: explicar onde pode ocultar-se esse oceano de antimatéria gerada no Big Bang que deveria igualar o da matéria observável, único material conhecido no Universo. Um arcano impenetrável. Onde se esconde a antimatéria que duplica toda a matéria conhecida?

A estrutura concebida para caçar o rasto dos neutrinos é umha imponente construçom submersa nos gelos antárcticos de quase dous quilómetros e meio de profundidade

A estrutura concebida para caçar o rasto dos neutrinos é umha imponente construçom submersa nos gelos antárcticos de quase dous quilómetros e meio de profundidade que se estende desde umha grade hexagonal superior da qual penduram 86 cordas até a base inferior. As 86 cordas portantes penduradas tenhem 125 metros de longitude e som complementadas por outro feixe de cordas mais compacto e profundo denominado DeepCore. Das referidas cordas pendem 5.160 módulos ópticos digitais (DOMs), providos de cadanseu tubo fotomultiplicador e outros componentes electrónicos desenhados para captar e amplificar os sinais recebidos. Em 18 de Dezembro de 2010, a última das 86 cordas do IceCube era lançada à profundidade do gelo antárctico.

O entrambilicado tecido de cordas e sensores que configuram a Estaçom Pólo Sul Amundsen-Scott supera os seus companheiros de Dakota do Sul e Gifu em complexidade e ambiçom no objectivo de verificar a existência e procedência dos neutrinos e de mapear a sua geografia no Universo. Trata-se de explorar a distribuiçom dos fluxos de neutrinos cósmicos para tentar desenhar o seu mapa-múndi. Umha complexa madeixa de teoria física, inferência estatística, cuidadoso mapeado das observaçons, hipóteses de procedência e inteligência artificial conformam o programa desenhado para esclarecer a natureza e distribuiçom dos raios cósmicos. Aguardamos impacientes os resultados que sem dúvida hao-de chegar.

Observatorio de neutrinos Ice Cube © Ice Cube Neutrino Observatory

O projecto IceCube converteu um quilómetro cúbico de gelo antárctico transparente num detector Cherenkov apto para observar neutrinos de alta energia vindos de além de nossa galáxia. Um impetuoso fluxo de raios gama de alta energia e origem extragaláctica.

As primeiras vagas de neutrinos cósmicos de alta energia fôrom-nos revelado há apenas dous anos, em 2013, abrindo umha janela imprescindível à observaçom da radiaçom de cósmica de alta energia chegada do fundo do universo3. Desprega-se agora ante nós um imponente espectro de frequências que vai das microondas de rádio, da radiaçom infravermelha, dos raios X e gama até os neutrinos e os raios cósmicos. Um diagrama energia-distáncia, medida em electrom-vóltios em abcissas e distáncia galáctica em ordenadas, expressada em megaparsecs, Mpc4, conforma agora o fascinante mapa do universo que convidamos a todos a contemplar. No mesmo informe o leitor interessado pode consultar um diagrama energia-distáncia complementar descritivo das trilhas —sendas, rastos, cascadas— como se descrevem as observaçons registadas. Podemos observar aí a poderosa trilha detectada em 2019, rodeada de cascadas detectadas no tramo de escala espectral de 10^13 a 10^15 electrom-vóltios como também um poderoso chuvasco de partículas por efeito da ressonáncia Glashow produzida polo choque de antineutrinos electrónicos com electrons a um nível energético descomunal registado em 2021. Fenómenos extremosos até agora vedados revelados polo IceCube. Defrontamo-nos a um território incógnito, o reino fulgurante dos raios cósmicos.

Mapa de raios cósmicos do universo © Ice Cube Neutrino Observatory

A actualidade científica deparou-nos umha gratificante surpresa tecnológica que potencia e complementa o programa científico do IceCube. O 1 de Julho de 2023 a Agência Espacial Europeia comunicava o lançamento da estaçom espacial Euclides desde Cabo Cañaveral, rumo ao Ponto de Lagrange2 onde irá operar em científica harmonia com o poderoso olho dourado JWST e o observatório Gaia. Umha concorrida pousada cósmica esta da que estaremos pendentes em adiante.

A missom encomendada ao observatório Euclides é o da exploraçom do universo escuro escondido em longínquas galáxias primordiais nos cofins da fronteira de 10.000 milhons de anos-luz para tentar construir o mapa 3D mais exacto possível do universo incógnito que é ao memo tempo umha viagem à origem do tempo. Pretende-se documentar a distribuiçom da matéria no universo para compreender a sua história original e tentar explicar o mistério da energia escura e os mesmos fundamentos da gravidade. Gélida cámara do IceCube, olho insone do Euclides perscrutando os confins e origem do cosmos. Desmesurada aventura de Prometeu desencadeado pola ciência, sede insaciável de saber quem somos desde a nossa inverosímil vida passageira empenhada em compreender como emergiu tudo do caos original.

Notas

1 https://www.publico.es/ciencias/gigantesco-laboratorio-neutrinos-dakota-sur-kilometro-medio-profundidad.html, ver também http://neutrinos.ciemat.es/es/dune-es

2 https://www.xataka.com/investigacion/50-000-toneladas-agua-tamano-edificio-15-plantas-asi-super-kamiokande-super-observatorio-neutrinos-1, ver também https://t2k-experiment.org/es/t2k/

3 https://icecube.wisc.edu/science/research/

4 1 parsec = 3,26 anos-luz, 1 Mpc = 3,26 milhons de anos-luz.

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