Centésima página e um epílogo para cerimónias de despedida

A Casa Rolão (Braga) ©

Esta é a minha centésima página em Praça Pública, essa comunidade digital aberta, sem mensagem incorporada nem mais norma que um mínimo respeito entre os interlocutores, ou mesmo sem ele caso o discrepante sofra de ataque passageiro de auto-suficiência ou notoriedade, que de todo há de haver.

Esta é a minha centésima página em Praça Pública

O interveniente em Praça renuncia ao indulgente asilo de um blogue persoal por gosto do juízo casual, concordante ou discordante, e pola crónica fugaz, essência do jornalismo. Praça é umha ágora de tempero galeguista e integrador desde 2012, apta para o troco de ideias em convocatória aberta. Aquele ano em que Rajoy alcançava o poder a cavalo da crise e aplicava a receita amarga da reforma laboral, o mesmo ano em que o rei folgava em Botsuana e Artur Mas fracassava no intento de alcançar a maioria absoluta, que lhe foi negada, para abordar um processo de independência que afinal seguiu rolando até o dia de hoje a impulso de magia telúrica e o agravo ancestral.

Centésima Página é também umha encantadora livraria de Braga que eu gostava de frequentar quando as pernas ainda tinham conta de mim. Estoutra centésima página ocupa o baixo de um formoso edifício bracarense do século XVIII conhecido por casa Rolaõ (1758-1761), lá em plena Avenida Central da cidade, quase ao pé do Convento dos Congregados. Umha encantadora livraria, multiplicada em inesperados recantos e rematada ao fundo por um pequeno jardim e exíguo refeitório onde petiscar ou tomar um copo enquanto folheamos o livro eleito ou em processo de exame.

A casa Rolão tem esse inequívoco ar do barroco português que eu qualificaria mais bem de rococó; tam próximo aliás do austríaco, povo amante também, como o português, da pastelaria repenicada e coincidente ainda em presumirem ambos de ter sido governados nalgum momento por todo um senhor imperador. Volvendo ao rococó, lembro ter visto em guias portuguesas qualificarem um estilo similar de rocaille, palavra francesa, alusiva ao ornato grotesco, com rochas caprichosas, conchas ornamentais e animália fantástica por vezes. Um sentido da teatralidade muito afastado da severidade da estética castelhana. O mestre Unamuno nom era muito partidário dessas excentricidades portuguesas e nom vou ser eu quem lhe leve a contrária. O barroco compostelano já é outra cousa.

Cem artigos nascidos de um berço comum de leituras metabolizadas, releituras prazenteiras, ou da pura evocaçom

Cem artigos nascidos de um berço comum de leituras metabolizadas, releituras prazenteiras, ou da pura evocaçom. Quando um frequenta umha praça pública parece aconselhável nom extra limitar-se em reiterar manias persoais e limitar-se mais bem aos limites que impom a conversa tolerante de cunho británico, embora os ingleses, excêntricos impenitentes, tenham inventado o famoso Speakers' Corner para esbardalhar sem tino nem mesura sem se importar ninguém. Algo disso deveria ter também umha praça de livre acesso e para isso serve o comentário, identificado ou com disfarce pudoroso.

A única ordenança em vigor que pretendo respeitar na praça pública que frequento desde 2012 é a de evitar a pregaçom maçante, prática, aliás, sem muita audiência nos tempos de descrença que correm. Um cento de artigos é um número grave se bem se mira. Por centos contamos os anos e por centos contavam-se as sardinhas antes de estas se converterem em alimento escasso de ignota procedência e venda por unidades.

Somos umha naçom cultural, disso nom há dúvida, e é por isso que o labirinto da identidade galega, a começar pola língua que nos identifica, inspirasse umha mancheia de artigos a começar polo primeiro que viu a luz: Aonde chega o fume da casa? Um refrão sapiencial dos velhos de algum dia inspirou este primeiro percurso na Praça: Aonde chega o fume da casa é sempre terra de primeira. O fume da nossa casa, de emigrantes destemidos, sonhadores mais tarde numha Galiza emancipada, tem na actualidade limites dilatados, os do idioma onde aprendemos a dizer “eu” e “nós”.

Na verdade, nom andamos sobrados de mitos fundacionais

Há quem arrenegue de metáforas identitárias e vindique a disciplina do discurso político nítido e concreto, desinfectado de estéreis vaguidades comemorativas. Persoalmente nom podo concordar, acho que nom é preciso renegarmos da Alba de Glória para vindicarmos o Sempre em Galiza é que a severidade do logos bem pode conviver com a fantasia do mithos. É questom de equilíbrio.

Na verdade, nom andamos sobrados de mitos fundacionais. Catalunha é um assombroso caso de identidade nacional, elaborada com esmero e proclamada com fervor; o Onze de Setembro de 1714, símbolo de resistência e renascimento, é um mito mobilizador. As vozes ancestrais som, em essência, um sortilégio tribal para abalar um presente detestável, na medida em que acreditemos nele. O certo é que os galegos, somos parcos em mitos e cerimónias cívicas, em datas patrióticas e lugares de memória. Será cousa talvez do tempero céptico com que a história nos leccionou.

E contodo, nom faltam datas cívicas adormecidas em espera do afloramento. Em 25 de maio de 1891, um clamor cívico e popular, que ecoou de Cuba a Compostela, trouxe a Bonaval os restos quase esquecidos de Rosalia. A pergunta é, nom mereceria essa data memorável a honra da evocaçom renovada? Rosalia é o primeiro mito nacional galego, acolhedor, matriarcal e indelével. Porquê nom revive-lo cada ano, em chave matriática e feminista, com umha velada poética em Bonaval a maneira de prólogo íntimo à vozearia patriótica do 25 de julho?

Em 25 de maio de 1891, um clamor cívico e popular, que ecoou de Cuba a Compostela, trouxe a Bonaval os restos quase esquecidos de Rosalia. A pergunta é, nom mereceria essa data memorável a honra da evocaçom renovada?

Mas, temos antes um vazio a encher mais premente ainda: como celebrar a despedida de um prócer cívico, de umha amizade singular, quando a morte decreta o ponto final inevitável? A despedida espida, respeitosa e íntima, ao pé do sepulcro acolhedor de Boisaca, do Santo Amaro de Corunha ou Pontevedra, de Pereiró, nom demanda às vezes um rito evocador da memória compartida?

Observamos com inveja o talento catalám para dignificar actos de memória cívica. Admiramos a potência taumatúrgica da música para suscitar a comunhom comovida. Os cataláns elegérom para os actos de despedida El cant dels ocells, essa belíssima cançom popular de Natal vertida a nobre romança para violoncelo por Pau Casals. Canto fúnebre para despedir ou comemorar a grandeza extinta. Algo mais que o ramilhete de rosas ou camélias ofertadas ao que nunca mais vai voltar. Música e poema entranhados no património cultural comum; único presente digno para umha despedida definitiva ou umha comemoraçom.

A cultura comum dos galegos pode ser parca em épica mas é pródiga em poesia e música comovente. A inspiraçom prodigiosa de Joám Montes conseguiu fundir no crisol da perfeita beleza um alalá ventureiro apanhado na Cruz do Íncio com o poema mais comovedor da Cantora: a Negra Sombra. Umha versom para violoncelo da pungente salmodia de Montes bem poderia converter-se em hino de despedida colectivo na galaica naçom. Música e poema fundidos, como prelúdio ao ingresso do finado inesquecível no cortejo incessante da Alba de Glória da Galiza redimida. Porquê nom converter a amada salmodia da saudade mais pungente em apaziguador hino de despedida?

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