"Não ajuda pressupor a marginalização das autoras nem dizer que as mulheres agora dominam a literatura"

Lorena López CC-BY-SA Praza.gal / Cedida

A visibilidade da literatura escrita por mulheres avançou, apesar de que não possa falar-se ainda de paridade. Mas ficam pontos cegos no processo de canonização da narrativa de autoria feminina relacionados com a escolha de uma normativa reintegracionista ou de géneros literários minorizados, por uma banda, ou com o questionamento, pela outra, por parte de uma literatura de focagem feminista, de alguns aspetos do discurso nacional, junto com o tratamento de questões polêmicas do mesmo, como a luta armada. Esta é a tese de Lorena López em Ainda invisíveis? Narradoras e margens na literatura galega contemporânea (Através).

O livro começa falando do “boom das narradoras”, que em realidade é uma correção incompleta de uma situação inicial de grande desequilíbrio. Por que não podemos falar sobre paridade ou igualdade em geral?

Embora a situação tenha melhorado muito, os dados não mostram que haja paridade no número de publicações. A visibilidade e a forma como é gerida são mais difíceis de medir, mas ainda existem miragens na questão da visibilidade das autoras. Em todo o caso, a presunção de que ser escritora implica automaticamente entrar na margem literária não ajuda o debate atual também. Felizmente, existem exemplos que provam o contrário.

A abordagem que escolhes é a da invisibilidade, apesar de tudo, de certas narradoras. Partes do conceito de margem. Como se relaciona esse conceito de margem com a oposição centro/periferia ou hegemonia/subalternidade?

“A questão nacional foi canonizada no campo literário galego de forma que esquiva conflitos e problemas que questionam o quadro político autonómico”

Que não seja possível fazer essa equivalência imediata entre as escritoras e a margem, não significa que não existam dinâmicas sócio-literárias que as afetem em particular. No entanto, o conceito de margem, tal como o desenvolvo no livro, não se refere a um espaço único ou homogêneo. Uma das chaves da minha leitura, seguindo Helena González, é que essa visão já é insuficiente quando se fala da situação das narradoras no campo literário galego atual.

Acredito que é preciso entender as margens mais como um conceito dinâmico, constantemente em tensão, que não se dá apenas na dicotomia centro/periferia ou hegemonia/subalternidade. Com essa ideia, entendo essas invisibilidades como pontos cegos que também podem existir naqueles discursos e repertórios que ocupam posições centrais. Por exemplo, a questão nacional ocupa uma posição central, mas há abordagens literárias que permanecem fora dessa área visível. A questão nacional foi canonizada no campo literário galego de forma que esquiva conflitos e problemas que questionam o quadro político autonómico.

Capa de 'Aínda invisíveis?' CC-BY-NC-ND Através

A ideia de partida é que existem pontos cegos no processo de canonização da narrativa de autoria feminina, basicamente por quatro motivos: a escolha de uma normativa reintegracionista, a escolha de um género minorizado –a ficção científica–; uma literatura feminista e experimental que questiona certos aspetos do discurso nacional ou uma literatura que trata de questões polêmicas do mesmo, como a luta armada. Por que esses quatro casos? 

A escolha de casos e pontos cegos é significativa, mas não exaustiva. Deve ainda ter-se em conta que esta análise se aplica a umas coordenadas temporais e isto implica que devemos fazer um seguimento da evolução de todas estas questões. Não têm por que ser as mesmas no futuro.

O estilo vanguardista, experimental e hermético de Margarita Ledo, explicas, não encaixava com o discurso da normalização, com o qual ela própria é crítica. Em que sentido isso explica, em parte, a posição marginal de sua obra como escritora?

A receção crítica que teve a sua narrativa foi limitada ou mesmo virulentamente negativa e alguns dos aspetos criticados tiveram a ver, precisamente, com essa abordagem vanguardista. Na época do incipiente discurso de normalização, as dinâmicas literárias foram fortemente influenciadas por ele e procuravam sobretudo ampliar o mercado do livro em galego e aumentar o número de pessoas leitoras. A escrita que privilegia uma maior experimentação formal não costuma servir a esse propósito, mas cumpre outro papel no campo literário.

Mas a outra razão, segundo explicas, é a crítica de Margarita Ledo ao discurso nacional oficial que os setores conservadores do galeguismo tentaram estabelecer. Em que consistia esta crítica? Que tem a ver com a resposta à beatificação da figura de Otero Pedrayo e a crítica ao papel repressor do galeguismo culturalista sobre outros coleguismos?

“O fictício Otero Pedrayo é retratado como um vampiro, em parte por causa da sua natureza híbrida entre o progressismo republicano e o conservadorismo católico. Moreda, por sua vez, aparece como uma figura brilhante que foi condenada ao ostracismo após os expurgos no Consello da Mocedade”

Nos seus dois romances, Ledo Andión centra-se em duas figuras masculinas do nacionalismo galego numa perspetiva feminista. Há questões de género e classe na crítica que faz ao galeguismo conservador através de um transunto de Otero Pedrayo no primeiro romance, também com a reabilitação da figura marginalizada de Antón Moreda no caso do segundo. Nessa crítica aparece, entre outras coisas, o potencial inexplorado pelo galeguismo culturalista destas duas figuras. O fictício Otero Pedrayo é retratado como um vampiro, em parte por causa da sua natureza híbrida entre o progressismo republicano e o conservadorismo católico. Moreda, por sua vez, aparece como uma figura brilhante que foi condenada ao ostracismo após os expurgos no Consello da Mocedade.

Em que sentido a escrita de Margarita Ledo questiona a masculinidade hegemônica e o seu papel no galeguismo conservador? De que maneira aborda o que hoje chamamos queer?

Na sua narrativa há um trabalho muito interessante com as masculinidades, nela já existem personagens e relações que hoje identificaríamos como queer, que fogem da performatividade tradicional do masculino e que fogem da heteronorma. Especificamente, nos romances que já mencionei, há uma poderosa desmistificação da masculinidade nacional, tanto por meio de uma exposição íntima das personagens que contrasta com a construção da autoridade pública tradicional, quanto na crítica aos valores patriarcais e de classe que nela predominam.

Mas acho particularmente fascinante o trabalho literário que ela faz em torno do desejo do protagonista em Trasalba ou Violeta e o militar morto, como se relaciona com esse vampirismo e se constrói como um espaço múltiplo, onde a bissexualidade e a experimentação têm espaço em oposição a uma heterossexualidade predatória, a qual também retrata.

Lorena López CC-BY-SA Praza.gal / Cedida

No caso de Patricia Janeiro, a posição marginal seria explicada pela sua abordagem no tratamento da luta armada. Embora existam poucas obras literárias que tratem do assunto, porque é que o livro de Patricia teve menos impacto do que outros sobre o mesmo assunto, como Xelamonite?

“Na perspetiva desde a porta, aparece nem só a luta armada, mas também a repressão do Estado, em particular contra o movimento independentista do século XXI”

O seu tratamento do assunto é fundamental para entender isso. Na perspetiva desde a porta, aparece nem só a luta armada, mas também a repressão do Estado, em particular contra o movimento independentista do século XXI. Ou seja, não aborda a violência no conflito nacional como um recurso de uma das partes, mas amplia a imagem da fotografia para apresentar um contexto político mais amplo e no qual o problema não está fechado, algo que si ocorre em outras obras literárias sobre o assunto. Não esqueçamos que hoje ainda há pessoas presas e em processo judicial que têm a ver com tudo isso.

Em A perspectiva desde a porta também há uma abordagem feminista que aponta a mentalidade patriarcal presente na militância que participa da luta armada. Em que sentido o livro de Patrícia Janeiro difere, nesse aspeto, dos anteriores que tratam do assunto?

“Na trama, surgem situações em que atitudes patriarcais ficam evidentes em áreas como o ativismo político, o trabalho ou a esfera pessoal”

Patricia A. Janeiro aborda o tema a partir de uma perspetiva antiépica que entrelaça o pessoal e o político; abordagem que também observamos em Rastros, de Roberto Vidal Bolaño, por exemplo. No entanto, este romance aborda muitas outras questões através de uma perspetiva feminista transversal. As protagonistas são duas mulheres militantes nacionalistas, mãe e filha, em dois momentos históricos diferentes. Na trama, surgem situações em que atitudes patriarcais ficam evidentes em áreas como o ativismo político, o trabalho ou a esfera pessoal. E entrelaçado com tudo isso, temos também a questão da maternidade. O jogo temporal que apresenta permite comparações entre as atitudes sociais de diferentes momentos de forma sutil e mostra como algumas dinâmicas patriarcais persistem de formas distintas.

A perspectiva desde a porta questiona o papel da média, as estruturas do Estado herdadas da ditadura e também o papel do próprio nacionalismo em relação à luta armada como um assunto incômodo. Em que sentido questiona todos esses aspetos?

Isso coneta com o que disse acima sobre a violência do Estado. A parte da trama que se passa nos primeiros anos da Transição mostra a continuidade daquelas estruturas da ditadura e evidencia que não foi um processo modelo e pacífico. O romance tece uma imagem sociopolítica muito elaborada, onde também há uma crítica ao papel da média e onde os conflitos internos do próprio nacionalismo são representados em torno desta questão.

No caso de Cris Pavón, tanto Limiar de conciencia quanto Sangue 12 continham elementos que os tornavam considerados obras "pouco aptas para o mercado". Em que aspetos se afastam da tradição literária galega, tanto pela abordagem da autora da tecnologia como do vampirismo?

“A literatura fantástica, entendida grosso modo, foi promovida como consubstancial à criatividade galega pelo grupo Galaxia dos anos cinquenta, mas seguiu caminhos muito diferentes daquela linha internacional”

A ficção científica e o género vampiro, considerados géneros populares no contexto anglo-saxão, entraram no campo literário galego de forma limitada e, diria também, muito direcionada. Tem havido uma certa tendência a desviar este tipo de género e temática para o público juvenil e penso que ainda existe um certo preconceito na hora de perceber o perfil do público leitor deste tipo de literatura, talvez com exceção da distopia. No entanto, nem sempre os conteúdos desses livros se adequam a esse público mais jovem e muitas vezes não são vistos como opções adequadas para incluir como leitura no ensino.

A literatura fantástica, entendida grosso modo, foi promovida como consubstancial à criatividade galega pelo grupo Galaxia dos anos cinquenta, mas seguiu caminhos muito diferentes daquela linha internacional. Nele não cabe a subversão que Cris Pavón faz do género vampírico ou sua formulação otimista da evolução tecnológica, onde além da empatia com as máquinas conscientes há uma alta carga de conteúdo técnico.

O caso de Cris Pavón e mesmo o de Patricia Janeiro talvez também mostram como, quando um sistema literário é muito precário, acabam acontecendo coisas quase por acaso. Um livro pode começar, por exemplo, sendo ignorado e depois ganhar repercussão pela polêmica que cria a sua não publicação –sem que a autora esteja por trás dela. Haverá que levar em conta, a esse respeito, também o acaso como fator?

A questão aqui seria se essa visibilidade mediada pelo conflito funciona da mesma forma que aquela que destaca uma obra como um artefato literário sem mais. Seria de se perguntar se alcançam a mesma distância, se usam os mesmos critérios e se duram. Essa mudança de foco geralmente resulta em uma simplificação que presta menos atenção às qualidades literárias dessas obras.

No caso de Teresa Moure, seria a escolha da norma reintegracionista a que explicaria o passo de ser uma autora quase "na moda" a ocupar uma posição marginal no sistema, em paralelo também com uma procura de autonomia em relação á cultura institucional e ao mercado. Em que sentido foram estas duas dinâmicas complementárias ou dependentes entre si?

“Interessa-me particularmente o discurso literário e autoral de Teresa Moure porque ao longo dos anos tem evidenciado múltiplos conflitos em relação à dinâmica da visibilidade das narradoras, por um lado, à perceção das suas obras, por outro” 

Esta pergunta é complexa e não creio que tenha uma resposta unívoca. No livro analiso a mudança de rumo que supõe para a carreira literária de Teresa Moure a escolha da ortografia reintegracionista, quer no que tem a ver com as dinâmicas do campo literário, quer no que afeta ao seu próprio discurso enquanto escritora. Na minha abordagem, entendo essa decisão como uma posição autoral consciente que transcende a questão linguística porque, também nesse debate, há muitos fatores envolvidos.

No entanto, para além disso, interessa-me particularmente o discurso literário e autoral de Teresa Moure porque ao longo dos anos tem evidenciado múltiplos conflitos em relação à dinâmica da visibilidade das narradoras, por um lado, à perceção das suas obras, por outro, e também refletiu sobre a própria conceção da autoria. Nesse sentido, um dos aspetos que me parece mais sugestivo é como ela transfere isso para a obra literária, tornando-o uma ferramenta criativa.

Por que, como se diz nas conclusões, temos de questionar a ideia de invisibilidade?

Considero necessário manter os instrumentos de debate e análise constantemente atualizados porque a realidade social e o campo literário também mudam. Pressupor sem mais a invisibilidade ou a marginalização da produção das autoras não ajuda a entender a situação atual, assim como também não ajuda o discurso falaz de que as mulheres agora dominam a literatura. Mas também temos de perguntar em que termos se produz a visibilidade quando ela existe. O questionamento é o que move a pesquisa.

Há um fator relacionado com a invisibilidade de certas obras que, na verdade, afeta todas elas, que é a contração de espaços para dar visibilidade à literatura –as áreas da cultura na prensa estão quase desaparecidas, por exemplo. Ajudaria também a explicar por que a obra de algumas autoras passa de ter certa visibilidade a não ter quase nenhuma?

A redução dos espaços para a literatura na média, e até mesmo das condições materiais de como é feito o trabalho de crítica, edição, etc., pode impactar negativamente nos processos de visibilidade. No entanto, quando são identificados padrões sistemáticos, precisamos ir além para entender por que é que algumas ausências/presenças ocorrem e outras não, uma coisa que nos permitirá ser mais conscientes das dinâmicas do campo.

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